Luanda - 1. Para começar a reflexão, o pontapé de saída será do Papa Francisco, com um trecho da Carta Encíclica Laudato Si’ sobre os cuidados com a Casa Comum: “nos esforçamos para nos adaptarmos ao ambiente, mas quando ele é desordenado, caótico ou saturado de poluição visual e sonora, o excesso de estímulos põe à prova nossas tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz” (o sublinhado é nosso). É uma autêntica encurralada de que nos submetemos, enquanto coabitantes da Terra, tão logo nos esqueçamos que o desenvolvimento humano integral está condicionado à protecção do ambiente que comungamos.

Fonte: Club-k.net

2. Em 2019, por via do Observatório de Direitos Fundamentais Angolano (ODFA), reflectimos sobre uma omissão patente das entidades competentes para legislar e regulamentar em matéria ambiental relativamente à existência de freios suficientemente afinados para imobilizar, ainda que minimamente, o conjunto de acções que pela sua natureza corroem o direito fundamental ao ambiente sadio constitucionalmente consagrado no artigo 39.º da Constituição da República de Angola. Nessa pretérita reflexão, apresentamos a nossa preocupação quanto à insuficiência de instrumentos jurídicos capazes de evitar a poluição sonora mas avançamos que existem leis formais e materiais que se opõem claramente a este mal e que revelam a intenção do legislador de um dia (ou mais) tratar da matéria atinente ao ruído com mais seriedade, como a Lei n.º 5/98 de 19 de Junho – Lei de Bases do Ambiente, a Lei n.º 12/11, de 16 de Fevereiro – Lei das Transgressões Administrativas, o Código Civil, o Decreto Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro – aprova o Código de Estrada, o Decreto n.º 51/04, de 23 de Julho – aprova o Regulamento da Avaliação de Impacte Ambiental (revogado), acrescemos agora também o Decreto Presidencial n.º 194/11, de 7 de Julho – aprova o Regulamento sobre Responsabilidade por Danos Ambientais e o Decreto Presidencial n.º 117/20, de 22 de Abril – aprova o Regulamento Geral de Avaliação de Impacte Ambiental e do Procedimento de Licenciamento Ambiental.

3. Não faremos esforço excessivo de analisar todo o regime novo da AIA, emitiremos a nossa singela opinião sobre um regresso normativo presente neste regime, no que toca à subestima pública à poluição sonora, que constitui um mal que se esconde entre os mais graves problemas ambientais e de saúde pública. O esquecimento é tão patente que nos achamos tão protegidos e acabamos por nos tornar cegos quanto ao crescente nível de produção de som como causa camuflada do crescente número de infortúnios como os Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs), os enfartes, hipertensão e doenças de índole auditiva, o que nos é preocupante.

4. Para nós, a protecção ambiental tem o mais forte sustento nos princípios da precaução e prevenção ambiental. Baseado nos ensinamentos do professor português GOMES CANOTILHO, a precaução ambiental funda-se no “in dúbio pro ambiente”, um brocardo latino que nos transmite a ideia de que sempre que houver dúvida sobre o perigo que certa actividade pode representar para o ambiente dever-se-á decidir a favor do ambiente e contra o potencial poluidor, ou seja, aplica-se sempre que haja incertezas técnico-científicas sobre uma possível verificação do dano ambiental. Por outro lado, por força do princípio da prevenção plasmado na Lei de Bases do Ambiente, “todas as acções ou actuações com efeitos imediatos ou a longo prazo no ambiente, devem ser consideradas de forma antecipada, de forma a serem eliminados ou minimizados os eventuais efeitos nocivos”, como afirma ÉDIS MILARÉ aplica-se “quando o perigo é certo e quando se tem elementos seguros para afirmar que uma determinada actividade é efectivamente perigosa”. Em síntese, o que distingue a prevenção da precaução, no mundo jurídico-ambiental, é a (in)certeza do perigo.

Qual é então a novidade que trazemos em matéria de prevenção ambiental?

5. Como forma de manifestação do princípio da prevenção ambiental, surgem na legislação e na Política Nacional do Ambiente alguns meios de defesa do ambiente enquanto fim em si mesmo, enquanto direito humano, enquanto bem economicamente útil, é o caso da Avaliação de Impacte Ambiental (AIA). Trata-se de um procedimento administrativo que para RAUL ARAÚJO “se baseia na realização de estudos e consultas com efectiva participação pública e análise de possíveis alternativas que tem por objecto a recolha de informação, identificação e previsão dos efeitos ambientais de determinados projectos…”.

6. Criticávamos outrora a lista (taxativa) de actividades sujeitas à Avaliação de Impacte Ambiental expressa no Decreto n.º 51/04 de 23 de Julho – sobre a Avaliação de Impacte Ambiental – por ter havido um esquecimento evidente de algumas actividades que estão inicialmente vocacionadas a produzir som e a partir desta produção emanar um número elevado de prejuízos ao ambiente por via do ruído. É o caso dos bares, discotecas, salões de festa, entre outras.

7. O Decreto n.º 51/04, de 23 de Julho, acabou sendo expressamente revogado este ano pelo Decreto Presidencial n.º 117/20, de 22 de Abril – aprova o Regulamento Geral de Avaliação de Impacte Ambiental e do Procedimento de Licenciamento Ambiental – e neste Regulamento já se citam algumas actividades sujeitas à AIA que não eram antes, uma inovação boa ou má. Alguns estabelecimentos outrora esquecidos foram tidos em conta neste novo regime, entre outros, os salões de beleza, barbearias, churrasqueiras, bares etc.

8. O novo Regulamento de AIA traz uma nova sistematização que em certa medida ajuda a graduar o impacto nocivo ambiental e conduz a sanções objectivamente mais justas todavia julgamos que o “puzzle” foi indevidamente completado. Estão previstas no novo regime cinco categorias (A, B, C, D e E), todas elas em um anexo específico do Regulamento. As actividades constantes nas Categoria A e B são as sujeitas ao Estudo de Impacte Ambiental, as constantes na Categoria C são sujeitas ao Estudo Ambiental Simplificado, já as constantes da Categoria D ficam isentas do procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental e de Licenciamento Ambiental, ao passo que as actividades constantes na Categoria E são as consideradas como as relacionadas com questões fatais.

9. A isenção das actividades constantes da Categoria D justifica-se (na nossa óptica) pelo facto de se entender na leitura do Regulamento que estas actividades provocam impactos ou efeitos negativos irreversíveis, insignificantes ou mínimos (numa combinação com o texto do Anexo IV do Regulamento). Nesta categoria encontram-se, entre outros estabelecimentos, as churrasqueiras e bares. Eis o demérito deste diploma.

10. Ao considerar que as actividades acima referidas provocam danos “insignificantes” o Regulamento inaugura uma afronta radical à natureza pois estes estabelecimentos desempenham em Angola (ao lado dos salões de festa) actividades não muito simpáticas ao Ar e à Saúde Pública, e cuja intensidade de som emanada dessas actividades obriga a uma exposição ao som consideravelmente mais reduzida, facto que representa a já referida subestima pública, a desvalorização dos efeitos terríveis da poluição sonora e da possibilidade dessa ser a causadora dum sem-número de doenças que antes as verificávamos com pouca frequência, como os Acidentes Vasculares Cerebrais em pessoas mais jovens.

11. Ao lado desta situação, é importante ainda que se aprove com a celeridade necessária o quadro normativo redutor do ruído (com o advento do Regulamento Geral do Som Urbano ou Ruído, como melhor se preferir) e que sejam públicas as técnicas de avaliação do impacto das actividades sujeitas ao procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental ou de Estudo Simplificado sobre o Ar.

12. Mais do que previsão legal de uma lista de actividades sujeitas à AIA, o grito de socorro é a favor de uma regulação efectiva (de facto e de iure) das formas de protecção do meio ambiente no que respeita ao som, com a criação de regulamentos mais precisos sobre a limitação de produção sonora, níveis permitidos e proibidos (tendo em conta os estudos já elaborados nacional e internacionalmente), com a especificação de alguns outros regulamentos excessivamente abstractos e parcialmente ineficazes, tudo em nome de um direito ao sossego (por nós já teorizado), ao ambiente sadio e à segurança jurídica dos indivíduos.

13. Para terminar, mais um alerta moral do Papa Francisco extraído da mesma Carta: “As leis podem estar redigidas de forma correta, mas muitas vezes permanecem letra morta. Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as normativas relativas ao meio ambiente sejam realmente eficazes? Sabemos, por exemplo, que países dotados duma legislação clara sobre a protecção das florestas continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação”, à parte a existência de diplomas, recomendamos a atenção real das situações aqui levantadas, pois é este caminho (anunciado pelo Papa) que tememos seguir depois de termos leis bem redigidas (e contextualizadas).

Por uma Angola melhor!