Luanda - Protesto: 1. O Direito e Justiça em Territórios das Comunidades Tradicionais

O Direito não se impõe a um povo ou sociedade. Ele é produto e parte da ordem social e cultural de uma sociedade ou civilização. Onde há uma sociedade, há direito e onde há direito, há sociedade. Ou seja, toda a sociedade constitui-se como um pacto, escrito ou não, de valores, regras e princípios. Portanto, não pode haver uma sociedade humana sem direito ou sistema jurídico. Não importa se se manifesta através da escrita na Constituição e leis, nos tribunais pela jurisprudência, ou não escrita, no Costume pela autoridade do poder tradicional.

Fonte: Club-k.net

OLHAR CRÍTICO E DE PROTESTO À REFORMA DO DIREITO E JUSTIÇA EM ANGOLA

Hoje, 45 anos depois da independência nacional o que importa questionar é: que direito seguimos? Ou de outro modo, o que seguimos é rectum (direito), conforme, ou ainda, responde à matriz civilizacional da nossa sociedade? As percepções e conhecimentos colhidos em trabalhos com as comunidades tradicionais apontam para uma justiça de segregação e sujeição preocupada mais com a propriedade do que comprometida com a dignidade da pessoa humana. O Estado-colonial trouxe uma civilização e, por conseguinte, um direito que se sobrepôs ao direito e ao sistema jurídico tradicional. O direito passou a ser do Estado colonial que impôs uma nova ordem social e, por conseguinte, uma nova ordem jurídica.


O Estado colonial não tendo instaurado um sistema e nexos de articulação ou complementaridade entre a ordem jurídica de racionalidade europeia e de matriz africana chamou a si a soberania absoluta e total. Ou seja, reconhece-se apenas uma única ordem jurídica, a imposta pelo Estado. Esta nova ordem jurídica e social reduziu o sistema jurídico tradicional a um mero costume submisso e condicionado à Constituição. De outro modo e seguindo a mesma lógica do epistemicídio imposto pela colonização, nada é civilizado, recto, justo e desenvolvido que não fosse da ordem social e jurídica do Estado colonial.


Portanto, estamos a seguir um direito que aponta para uma justiça que continua a legitimar a superioridade da cultura e civilização colonial. É este o caminho da justiça que herdamos da colonização e continua a cegar os fazedores do direito e da justiça em Angola. Não houve ruptura de paradigma o que representa um pesado tributo, sobretudo, em territórios das comunidades tradicionais. Em consequência:


1. Temos um direito e uma justiça que transformaram os territórios das comunidades tradicionais em espaços sem significado cultural, sem direito à memória colectiva, sem direito ao desenvolvimento. De espaços de vida passaram a espaços de humilhação e sacrifícios. Falta a justiça cultural e económica no campo;


2. Temos um direito e justiça que subtrairam das sociedades tradicionais o direito de propriedade sobre os seus territórios e recursos nele inscritos;


3. Temos um direito e justiça que impuseram desterros, usurpação de terras e permanente clima de insegurança de posse;


4. Temos um direito e justiça que negaram o pluralismo jurídico, ou a sã convivência entre as ordens jurídicas estadual e tradicional;


Então, que direito teremos de pensar direito (rectum) quando a cultura jurídica que existe é de sujeição e dominação? Que direito para a justiça quando se mata uma civilização, uma cultura e uma história? Que direito é este que silencia as liberdades de opções de escolha e realização de interesses próprios das comunidades tradicionais? O reconhecimento constitucional da validade jurídica do costume como se depreende do disposto nos artigos 6o e 7o da CRA não é, como alguns pretendem interpretar, sinónimo de pluralismo jurídico em Angola. Antes, pelo contrário, é a redução do sistema jurídico tradicional, ou seja, dos Ngola Kanga e outros, ao simples costume condicionado à ordem constitucional de racionalidade europeia. Como é óbvio, isso condiciona a ordem social e o poder da autoridade tradicional que continuam reféns a uma autoridade soberana absoluta imposta de ressonância europeia incapaz de devolver a dignidade à história e identidades e significados culturais aos territórios das comunidades tradicionais. Seguiremos para sempre este direito de sujeição, dominação e epistemicídio?


2. O Impacto da Reforma da Justiça e do Direito em Angola nos Territórios das Comunidades Tradicionais


O Presidente da República de Angola criou uma Comissão de Reforma da Justiça e do Direito coordenada pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos. A referida comissão é integrada por alguns professores da UAN e individualidades que representam o Tribunal Constitucional, Tribunal Supremo, Tribunal de Contas, da Casa Civil do Presidente da República e da Ordem de Advogados de Angola. De entre outras atribuições e competências a comissão coordenará a estratégia da Reforma do Estado da Justiça e do Direito no quadro da reforma do Estado e acompanhar o processo de implementação da nova organização judicial. Essa Reforma de Justiça e do Direito é considerada por alguns como a mais profunda desde Angola independente.


Constata-se, desde logo, que trata-se de uma Comissão não-Inclusiva à semelhança do que aconteceu com as Comissões do Programa Minha Terra, sobretudo, tendo em atenção a profundidade dos diferentes significados e valores que o direito e a justiça representam numa sociedade que se ergue da consciência do colonizado. Ocorre, também, questionar o que é que a Reforma do Direito e Justiça em Angola trará de novo, sobretudo, em comunidades tradicionais ou territórios cujas populações estão sob a autoridade do poder tradicional? Enquanto espaços de vida e expressão de identidades e memórias das suas gentes as comunidades tradicionais pré-existem ao Estado angolano e têm os seus próprios sistemas de organização e regulação social e humana, cultural, política e normativa. Que tipo de reforma profunda se faz com uma Constituição que não reconhece a pluralidade jurídica fora da cerca estadual? A Reforma do Direito e Justiça em Angola trará de volta os sistemas jurídicos tradicionais e o direito à propriedade e ao desenvolvimento que o sistema jurídico do Estado colonial destruiu? Continuaremos com a hipocrisia académica ou com inteligências de ressonâncias que são cúmplices do epistemicídio que continua a notar-se em territórios das comunidades tradicionais onde o livro é a terra? Como se pode falar em justiça comunitária, sobretudo, na resolução de conflitos fundiários, condicionando ou fiscalizando que tipo de direito e justiça?

3. Protesto


A Rede Terra não pode compactuar com simulacros e recorrentes práticas de exclusão em processos que podem mudar o curso da história de um povo. A Reforma do Direito e Justiça reforma o próprio Estado. E isso não é um negócio ou privilégio de alguns. Trata-se de um trabalho de todos que a todos diz respeito. O diálogo epistemológico, assim, o exige. A questão do direito e da justiça não é propriedade de juristas. Os juristas estão longe de perceber a vida e seus significados em suas múltiplas dimensões. A Comissão Criada para a Reforma do Direito e Justiça em Angola representa um sério risco podendo mesmo encalhar, primeiro, se for apenas uma janela para o resto da sociedade, segundo, se não impuser ruptura com a ressonância colonial. Não ocorra o que aconteceu com o Programa Minha Terra criado pela Comissão Inter-ministerial para o Registo a Favor das Terras Rurais que terminou sem ter cumprido, efectivamente, com as suas obrigações. As comunidades têm direito ao respeito, à valorização e preservação da sua identidade cultural, e do seu património histórico ao que o sistema jurídico estadual tem respondido com hipocrisia desde a colonização. A Reforma do Direito e Justiça em Angola terá de responder para onde andará o sistema jurídico tradicional que a ordem jurídica estadual de racionalidade colonial matou. Um direito e justiça que não emergem e andam em permanente conflito e desarticulação com a milenar ordem social instituída em territórios das comunidades tradicionais, NÃO.


Bernardo Castro, Activista para a Justiça Fundiária e Climática e Director da Rede Terra, ONG