Luanda - Interessados na História do Direito e da Justiça ou mesmo no âmbito mais largo da História Universal, já ouviram falar, certamente, do caso Dreyfus, que decorreu entre os anos de 1894 a 1904, em França.

Fonte: À Mesa do Café

Telegraficamente, para quem nunca ouviu falar: No cesto de papéis do adido militar da Embaixada alemã, em França, é descoberto, por uma empregada francesa, um documento suspeito de resultar de uma acção de espionagem contra o País. De forma quase aleatória, aliás, sob um critério no mínimo eivado de antissemitismo, é atribuída responsabilidade de tal actividade espiã, a um oficial francês de origem hebraica que funcionava num dos mais altos escalões da Forças Armadas, de seu nome Alfred Dreyfus.


Do coro de vozes daqueles que, em circunstância semelhantes, apresentam-se sempre como os mais autênticos guardiões do patriotismo e dos valores mais sublimes do País e pela aparente necessidade de a “culpa nunca dever morrer solteira”, à formalização judicial duma acusação gratuita, não foram muitos passos. Resultado: Dreyfus foi condenado ao degredo militar e prisão perpétua para uma ilha, ironicamente, chamada do Diabo. O homem só se livraria dessa situação (que deve ter inspirado o escritor Franz Kafka na concepção do seu, mundialmente, conhecido romance “O processo”) anos depois, por reacções persistentes da sociedade, ante evidencias tão claras de que Dreyfus não estava de forma alguma ligado àquele documento, nem à qualquer outro acto de espionagem, a favor da Alemanha.


Tenho razões para esperar que esta comparação, entre um caso de Justiça francesa, ancorada no foro militar, de finais do século XIX e princípios do XX, com o nosso caso “Tomás/CNC” (mesmo que por maioria de razão, este último mais escandaloso que o primeiro, se tivermos em conta que corre no século XXI e no foro civil de uma República em plena “nova era”) vai ser apodada, por alguns, como despropositada. E lá me cairá em cima mais uma saraivada de insultos e insinuações. Não se confunda, essa referência, com opiniões diferentes da minha, quer sejam de carácter técnico-jurídico (que vários juristas têm levantado porque tão fáceis de constatar) quer de outro tipo de avaliação.


Eu sou “forçado” a regressar a este caso (que, entre outros, abordei, apenas a título exemplificativo, em sede de uma tese de carácter mais geral, já consagrada em livro) numa altura em que tenho evitado intervenções mais assíduas, para contornar uma conotação promovida de que eu esteja a ser um factor de estorvo aos esforços da nova direcção do País, cuja emergência saudei, por nos ter dado sinais iniciais relativamente positivos.

 

É que no âmbito de mais uma oportunidade para a Justiça angolana puder emendar um soneto marcado por uma crueldade inaudita e, sobretudo, por um tratamento claramente desigual, não só a Augusto Tomás mas a todos os elementos do CNC (que, aparentemente, só estão ali porque o destino cruel os ligou ao antigo Ministro dos Transportes) se começa pressentir um “déjá vu” de informações e contra-informações.

 

Até, pasme-se, nessas informações e contra-informações, coloca-se em causa o engajamento de uma advogada, na defesa do seu próprio constituinte. Como se não fosse de lei fazê-lo. Já para não falar de uma estranha notícia (boato-desejo?) que refere eventual jubilado compulsivo do actual Presidente do Tribunal Constitucional. Já para não referir também, quiçá de mesmas estranhas fontes, a indução em erro que ocorreu em tempos, de que Tomás teria sido libertado, causando equivocado mal-estar em sectores da população que acredita, piamente, que o caso CNC/Augusto Tomás, se enquadra no âmbito de um processo justo, em sede do combate cerrado à corrupção.


Será que a nossa Justiça quer que este caso de injustiça tão evidente termine assim mesmo? E, sobretudo, será que essa crueldade (“in dubio contra reo”) se repetirá contra todos aqueles que se encontraram (se encontram) em situações semelhantes ou mais graves? Não vou aqui enumerar tais casos, alguns dos quais estão a correr no foro judicial, com ritmos claramente diferentes (reconhecido pelo PR) e relativamente mais consentâneos com os ditames legais.

 

Será da pressão dessas fontes de informação e contra-informação? O que significaria que na área da Justiça, neste país que parece ter galgado algumas distâncias positivas na área da Liberdade de Expressão e da Comunicação Social, continuaremos a ter casos Rafael Marques, William Tonet, Miala, 15+2, entre outros?

 

Para tudo parecer igual à “Justiça” dos últimos anos do consulado de José Eduardo dos Santos, só faltará a organização de algumas manifestações do partido no poder ou de algumas associações clamando: “nós somos milhões e contra milhões ninguém combate e quem combater será vencido; deixem a justiça fazer o seu trabalho”. Mais do que frustrante isso é para mim extremamente angustiante. Como seria interessante que jornalistas de investigação tentassem esclarecer se se trata do regresso do “Sr. Ordens Superiores” (rejeitado pelo actual PR), de simulação intimidatória consentida por algumas das próprias vítimas ou apenas antigos hábitos para tentar agradar os centros do poder, por tão ilustres dignitários do poder que nos deve julgar!?


Aberta está a discussão. Permito-me até que poderia ser um dos temas a ser tratado pela comissão recentemente criada pelo Presidente da República, para a Reforma da Justiça, que mais do que ocupar-se de estruturas e formalidades normativas, devia antes cuidar daquilo que, na minha opinião, mais tem corroído a nossa sociedade: atitudes lamentáveis dos nossos operadores políticos e judiciais, sempre afoitos em exibir a ideia do “agora é a nossa vez”.

 

E não se diga, à partida, que se deve olhar para este caso como apenas um entre muitos. Pela sua visibilidade e acinte este é um caso paradigmático. Quem maltrata uma árvore, logo ali à beira do próprio quintal, não garante que nos venha a tratar bem da floresta. Falo da Justiça e do Direito e do seu papel para consolidar as transformações positivas que pareciam estar a ter lugar.

*Jurista, Advogado, Professor Universitário, Autor e ex-Primeiro-Ministro de Angola e Secretário-Executivo da CPLP