Luanda - Há tantas coisas que sucedem no meu querido país, Angola, e sempre que algumas delas, me cruzam a mente, deixam-me tão revoltado, que no meu sentimento de impotência e, ao constatar que mesmo as mais pequenas insuficiências não podem ser resolvidas num país tão abençoado pelas riquezas que dele dimanam, prefiro refugiar-me na auto distração, para evitar explodir, travando assim um pouco a minha língua.

Fonte: Club-k.net


Mas nestes últimos dias veio à tona um tema que rompe com a minha resistência, e por isso peço que me deixem só desafogar um pouco o que sinto em momentos como este. Estou confiante que nessa humilde, mas preocupada voz, encontrarei sempre alguma alma que ficará talvez, também a reflectir nisso e pouco a pouco ver, se podemos ter esperança de ver essas preocupações ultrapassadas.


Da mesma forma que no seu momento, me enjoou a história da construção em Luanda, de um hospital ou clinica para dirigentes há tempos ventilada, não me agradou para nada ouvir que se pretende levantar um imponente edifício para sede da Comissão Nacional Eleitoral, quando a actual cabeça desse mesmo corpo foi ali colocada no meio de tanta polémica, a espelhar, o já em si mau estado de saúde desse organismo. É claro que num momento de tantas dificuldades como este, para nada servirá a imponência de um edifício, se os órgãos internos forem uns enfermos cuja cura é afinal a necessidade imperativa e prioritária, se queremos de facto construir uma democracia que até aqui não tem sido senão, uma palavra vã, por todo o historial que enche as páginas do que tem sido o papel desse órgão central.


Mas, tanto a clinica como o edifício da CNE não são o tema que me impulsa a deixar aqui as presentes linhas .


O meu desagrado parte de fotografias publicadas nos últimos dias em alguns meios e redes sociais, a acompanhar noticias sobre o tema “Regresso às Aulas Divide a Sociedade” com data de 20/06/2020 e outras, comentando entre outras, a falta de água num bom número de estabelecimentos escolares, uma realidade que claramente, coloca os pais das crianças, no dilema de protegerem a saúde dos seus filhos ou atirá-los ao sabor de uma ameaça tão grande como é a falta de meios mínimos para higienização das suas mãozinhas com água e sabão, um elemento crucial no combate a pandemia que assola todo o Mundo.


Essas imagens, que esperava estivessem já extintas ou ao menos em vias disso no país, trouxeram à minha memória o que presenciei nas duas mais recentes viagens que fiz pelo interior profundo do país onde, ao longo da estrada Huambo/Luanda e mais precisamente entre Bailundo e Quibala, podiam ver-se meninos percorrendo grandes distancias para ir e vir da escola, carregando, além da sua mochila de livros, uma lata ou uma cadeirinha de plástico, porque na escola para onde iam, não existe esse elemento de acomodação. Não menos grave, é que crianças de tenra idade, marchavam ao longo da via asfaltada, entre um movimento de veículos, minimamente suficiente para pôr as suas vidas permanentemente em perigo de serem atropeladas por esses veículos que por eles passam a grandes velocidades.


Noutras imagens, vejo uma “escola” a céu aberto algures num município da província da Huila, debaixo de uma arvore já sem o mínimo de folhas para dar qualquer tipo de sombra, e uns paus desajeitados e desalinhados, a configurar afinal, o que são os assentos para os alunos dessas supostas salas de aulas, que contam nas estatísticas do sector da Educação da Republica de Angola do século XXI.


O espetáculo das cadeiras sobre as costas dos meninos não é o primeiro que eu vejo. Já o tinha visto por mais vezes noutros sítios do país, e até em plena zona urbana. Mas o último e também triste espetáculo que já testemunhei encontrei-o a menos de 7 kms do centro da capital do Bié:


Há uns três anos, visitando velhos amigos num dos bairros periféricos da cidade, deu-me na cabeça aproximar-me a um edifício que diziam ser a escola primária do bairro. Como não estava fechada, tive o privilégio de entrar. Não quis acreditar no que encontrei la dentro:

-uma sala cujo vazio só era atenuado, pela presença de meia dúzia de pedaços de adobes já desgastados, em jeito de assentos. Não havia nada mais e muito menos estrado ou qualquer espécie de mesa para o professor e pior de tudo, em tarde de sábado que foi a visita, já o local estava praticamente transformado em depósito de lixo e pátio de diversão onde, os excrementos de cabritos, de cães, de porcos mas também humanos, faziam um desagradabilíssimo coktail.


Depois de ver agora estas fotos, parte das quais tive o cuidado de confirmar serem recentes, não tenho dúvidas de que a situação deve ser a mesma e por isso escrevo. Porque, sejam quais forem as dificuldades que temos no país, não consigo entender que 45 anos depois da nossa independência e dezoito depois da guerra, não se conseguem arranjar umas humildes mas cuidadas, protegidas e minimamente equipadas salas, pelo menos com tabuas bem arranjadinhas, uma mesa, uma cadeira para o professor e um quadro preto de tabuas pintadas, que um pequeno carpinteiro ali do bairro pode bem fazer, e acabar com esse vergonhoso espetáculo. Sei que não é a solução, mas na ausência de carteiras, ao menos esse mínimo.


Docente que fui durante uma parte da minha vida activa, tenho imensas dificuldades em compreender a forma como tratamos as nossas próprias crianças; estou solidário com os professores e não entendo como tratamos esses homens e essas mulheres a quem confiamos a formação dos nossos rebentos enfim, como tratamos do problema da educação na sua globalidade.


Muitas perguntas me ficam pelo ar: -Qual é o trabalho do Ministério de Tutela e com que meios reais estamos dotando essa entidade para garantir o mínimo de decência, segurança e productividade efectiva a uma área tão estratégica da nossa existência como Povo? Como são acarinhados, pelos nossos sucessivos governos, os quadros que se empenham nesse árduo trabalho da educação? E se são realmente acarinhados, porquê que não se lhes exige um trabalho de excelência? Será que ainda estamos na era em que víamos no professor alguém que se pensava que estava satisfeito e realizado, vendendo-lhe a crédito uma motorizada Yamaha como fazia o colono? O que é que se pode esperar de uma criança saída de uma escola com as condições descritas e cujas insuficiências prosseguem nos níveis superiores? Temos reflectido nisso tudo, quando vemos os lugares que ocupam as nossas universidades no conjunto das universidades africanas ou do mundo? Que informações se passam aos governantes do topo?


Não seria necessário alertar a quem de direito, que a forma que considero tão negligente como estamos a tratar essa área da nossa vida como país, está na base do que vemos, até na qualidade de simples documentos administrativos saídos das repartições do nosso país?


Será isso uma estratégia bem definida da parte de alguma elite neocolonial, destinada a manter o nosso povo na ignorância ou na mediocridade para que, em tempos de crises como COVID19, tenhamos que recorrer ao aluguer, ou à compra de médicos cubanos e humilhar os médicos angolanos na sua própria terra, por cujas ruas vão deambulando por falta de emprego, como se fossem umas cabeças ocas sem possibilidades de alimentar suas famílias?


Se tão demitidos das nossas responsabilidades estamos nós, os adultos deste país e em particular os que têm a tarefa de governar, surge-me a ultima pergunta:


Que tipo de gente somos e onde andamos, que ainda não ouvimos dizer que os outros povos estão fazendo reservas para irem passar férias na Lua? Talvez nós não necessitemos ir a Lua, tão linda e extensa é a nossa Angola. Mas… seria algum crime sermos mais ambiciosos e procurarmos um pouco de orgulho do que fazemos e apresentamos a este Mundo hoje globalizado, conquistando desta forma um pouco mais de respeito?


Lamento, mas sinto que é problema de todos e por isso preferi sair um pouco do silêncio a ver se todos juntos, podemos ir pensando sèriamente em alterar esse quadro para o futuro das nossas crianças, nosso país de amanhã.

Luanda, 25 de Junho de 2020

Virgílio Samakuva