Luanda - O mês de Junho ficou marcado como aquele que registou um aumento exponencial do número de casos de COVID-19 em Angola, tendo sido notificados 181 casos,representando 68% do total de 267 casos identificados desde o início da pandemia no país.

Fonte: JA

Destes 181 casos confirmados no mês de Junho, 30 foram classificados como casos importados,118 como sendo casos de transmissão local e curiosamente os restantes 33 casos, entraram numa nova categoria denominada de “vínculo epidemiológico por se esclarecer”, nova expressão introduzida no léxico epidemiológico da Covid-19 em Angola. Estranhamente, mesmo depois devolvidos vários dias em análise pela equipa do MINSA, o esclarecimento do vínculo não apareceu o que suscitou variadíssimas reacções por parte dos cidadãos.


Ante a subida exponencial do número de casos, o estabelecimento desta nova categoria de casos “vínculo epidemiológico por se esclarecer” levantou entre os cidadãos fortes desconfianças sobre os dados quotidianamente apresentados pelo MINSA, questionando estes sobre uma possível omissão ou mesmo negação por parte do MINSA em assumir, desde já, uma circulação comunitária do coronavírus.O MINSA, por seu turno, foi tentando justificar esta alteração, na perspectiva de tranquilizar a opinião pública. Segundo aquele órgão, os 33 casos enquadrados nesta nova categoria não poderiam ainda configurar uma “transmissão comunitária ou sustentada”na medida em que foram notificados em diferentes conglomerados e que cada um destes não tinha o número suficiente de casos que pudessem preencher os critérios que a OMS definiu como “transmissão comunitária ou sustentada”que só pode ser considerada como tal, quando existem evidências de grandes surtos, ou seja, um número elevado de casos confirmados em que as respectivas cadeias de transmissão não podem ser identificadas.


Tendo em conta que, desde o início da pandemia no mundo, foi difundida a definição que considera “transmissão comunitária ou sustentada” quando os casos confirmados são resultantes de contacto com indivíduos infectados que não tenham estado em países com circulação comunitária do vírus, isto é, quer o transmissor, quer o receptor da infecção, ambos não devem ter histórico de viagem recente em locais com a doença em curso, esta mudança no conceito pelo MINSA apenas introduziu mais confusão e acentuou as suspeitas sobre a qualidade da informação quotidianamente levada ao público pelo MINSA.


Como profissional de saúde considero que o mais importante não é nos entretermos com o assunto da já existência ou não da “transmissão comunitária ou sustentada”, porque até, temos muitos factores de confusão que nos impedem de analisar os factos com objectividade. Um dos grandes factores de confusão que podemos destacar é a nossa fraca capacidade de testagem, pois, já se passaram mais de 90 dias desde o início da pandemia no país, e até o momento só estamos a contabilizar cerca de 20 mil testes realizados, num universo de cerca de 70 mil pessoas que estiveram em quarentena (quer domiciliar,quer institucional), perfazendo apenas cerca de 30% de cobertura de testagem para um grupo com indicação extrema para tal. Isto é só para não falar da testagem aleatória que devia ser feita nas comunidades a fim de se procurar possível circulação do vírus. Face a estas limitações entendo, que o mais importante seria ajustarmos já as medidas para uma situação de “transmissão comunitária ou sustentada” e não perdermos mais tempo com esta discussão estéril. A questão que nos leva a refletir em torno deste assunto é: porque razão o MINSA teria dificuldades em assumir que os 33 casos de “vínculo epidemiológico por esclarecer” sejam mesmo resultantes de uma transmissão comunitária já em curso em Luanda?


O primeiro ponto que devemos ter em conta é que, em caso de transmissão comunitária do coronavírus, a definição de caso suspeito de COVID-19 deve mudar, o que se repercute acintosamente no plano de contingência que se altera completamente, elevando consideravelmente os custos.


Caso se declare “transmissão comunitária ou sustentada”,passarão a ser considerados casos suspeitos todas as pessoas que apresentarem sintomas respiratórios tais como tosse, dor de garganta ou dificuldade respiratória, acompanhada ou não de febre, independemente de ter ou não contacto com casos confirmados, sendo mandatório a realização de testes nestes casos. Consequentemente,no plano de contingência devem alterar-se as estratégias de mitigação da pandemia, no sentido de reduzir a transmissibilidade e garantir a gestão adequada dos casos leves na rede de cuidados primários de saúde (centros médicos e hospitais municipais) e dos casos graves na rede dos hospitais de referência provinciais e nacionais. Para os casos leves ou assintomáticos, o isolamento no domicílio por um período máximo de 14 dias, será a solução. No entanto, a operacionalização destas estratégias pode levar o Estado a incorrer em gastos muito acima do que se tem registado até ao momento, uma vez que, deverá haver maior disponibilidade de testes, maior quantidade de material de biossegurança que seja suficiente para todas as unidades hospitalares, maior mobilização de recursos humanos para a gestão de casos a nível das comunidades e melhoramento das infraestruturas sanitárias.


Portanto, com tudo o que foi descrito acima, vê-se claramente que não é fácil para um governo declarar “transmissão comunitária ou sustentada”, pelas enormes implicações que esta evolução tem na estratégia nacional de resposta a Covid-19. Porém, esta fuga para a frente que o MINSA procura protagonizar, retardando a declaração de “transmissão comunitária ou sustentada” não é a melhor forma de enfrentar a pandemia. É avisado reconhecer e assumir a “transmissão comunitária ou sustentada” e tomar as disposições necessárias para conter a propagação do vírus neste novo contexto antes que se se chegue a uma situação insustentável e de difícil controle. O MINSA parece ter optado por arrastar a situação para um ponto de mais difícil abordagem em vez de jogar na antecipação como de resto fez na contenção de casos importados que, de certo modo, tem resultados visíveis.


Em suma, a “transmissão comunitária ou sustentada” do SARS-Cov-2 em Angola tornou-se um facto que não pode ser escamoteado como apontam claramente os dados da pandemia no país divulgados no mês de Junho. Diante deste facto irrefutável a discussão já não deve ser se estamos ou não perante esta vaga de propagação da doença, mas sim como fazer os ajustes necessários para manter a resposta de Angola a pandemia em níveis adequados ao contexto que tende a emergir. Este ajuste deve ser extensivo a qualidade de comunicação que o MINSA estabelece com a sociedade nesta fase. Quantos mais ruídos forem expurgados deste canal de comunicação mais fácil será mobilizar a participação cidadã da sociedade no esforço nacional de mitigação da pandemia da Covid-19.

* Médico especialista em Pediatria