Luanda - Um torneio em Moçambique e dois longos estágios (um na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e outro na localidade portuguesa de Vila Nova de Gaia) marcaram o início da caminhada vitoriosa de Angola no CAN de Andebol feminino, na final disputada a 21 de Julho do longínquo ano de 1989, em Argel.

Fonte: JA


A vitória do Ferroviário de Luanda, na Taça dos Clubes Campeões, dois anos antes, em Owerri, Nigéria, foi um sinal claro da ascensão competitiva do "sete" nacional que, depois do CAN de 1985, em Luanda, saiu definitivamente de mero animador da prova, assumindo - se como sério competidor, até chegar ao papel de principal protagonista no Continente.

O Jornal de Angola revive hoje a “odisseia” das senhoras que encheram a nação de orgulho, num exemplo de superação sem precedentes. Ícones do desporto nacional, como Elisa Webba “Lili”, Maura Faial , Graça Bandeira, Carla Silva entre outras, contam na primeira pessoa como foi possível sair da cauda das competições africanas e atingir o topo.

Por conta da emoção, ou porque algumas recordações se foram esbatendo pela acção inexorável do tempo, não há concordância nos relatos de todos protagonistas, pelo que nos retratamos antecipadamente, por eventuais imprecisões. Ainda assim, a proeza está bem viva na mente das heroínas e os lapsos de memória vêm apenas provar a premência de relatar para a posteridade essa importante conquista.

A vitória sobre a Costa do Marfim por 20-18, na final, inaugurou um percurso dourado que relegou a segundo plano quer as costa marfinenses quer as congolesas, que detinham a hegemonia da disciplina na época.

Os protagonistas

A caravana que regressou de ouro ao peito partiu de Vila Nova de Gaia com o então secretário- geral, Mário Rosa de Almeida, como chefe de delegação. O presidente da Federação, José Cardoso de Lima, esteve em Argel, mas não pode permanecer no palco da competição até ao final da mesma, por imperativos de ordem professional.

Juca Figueiredo “ti” Juca, esteve igualmente à frente das delegações masculina e feminina de Angola, desempenhando funções ao nível da Confederação Africana de Andebol CAHB.

Beto Ferreira e Fernando Moreira (já falecido) dirigiram tecnicamente o combinado nacional. Estava sob sua responsabilidade a obrigação de provar que a vitória do Ferroviário, em Owerri, dois anos antes na Taça dos Clubes Campeões, fora um sinal consistente da progressão das jogadoras.
Rivalidade clubística à parte, ambos treinadores sabiam que, embora a vitória do clube Ferroviário,tivesse sido significativa, era da selecção que mais se esperava.

Sem um médico na equipa técnica, os cuidados de saúde do grupo ficram a cargo da fisioterapeuta Maria Augusta. “Tia Gugú”, como era chamada pelas jogadoras, foi uma das heroínas incógnitas que a partir dos bastidores deu lustro ao brilho das estrelas.

Antigo praticante da mo-dalidade no Inter de Luanda, Gabriel Armando Deolinda “Gabi” guardou muitos dados e imagens históricas que hoje apresentamos.Estatístico de confiança dos treinadores, colectava os dados de forma rudimentar, mas eficaz para a época, lançando informações que influenciavam o rumo da orientação técnica dos jogos.

Defenderam a baliza da selecção Bernardeth Rodrigues “Bida” e Elisa Peres, com a mais jovem Luzia Umba “Be-lita” de reserva. Mais a frente, Balbina Ceita “Bininha” e Esperança Domingos “Panchita” actuaram na ponta es-querda, enquanto Ana Paula Silva e Carla Silva estavam escaladas para a ponta direita.

Como pivôs representaram a selecção Elisa Webba “Lili” e Liliana Mesquita, aliando a juventude da primeira à veterania da segunda. Angola contou com uma primeira linha de luxo com Beatriz Ceita “Bibia” e Graça Bandeira ao centro. Palmira Barbosa “Mi-rita”, Fábia Raposo, Luzia Be-zerra “Prazeres”, Luísa Dias “Luizinha”(falecida) e Maura Faial desfilaram nas alas.

“Objectivode âmbito nacional teve o condão de nos unir”

Dirigente de elevado dinamismo, muito conhecido nas lides andebolísticas por percorrer a cidade de Luan-da montado na motorizada “Simson”, tanto para acompanhar os jogos e levar a in-formação às rádios e jornais, como para contactos com as entidades governamentais e muito mais, Mário Rosa de Almeida liderou a carava-na nos estágios em Vilnius (Lituânia) e em Vila Nova de Gaia, Portugal.

Entre as muitas tarefas que tinha em mãos destacou-se, sem dúvida, a missão de manter os dois treinadores rivais, Beto Ferreira e Fernando Moreira, focados no objectivo comum. “Era voz corrente que o falecido Fernando Moreira tinha uma leitura mais apurada e era mais astuto do ponto de vista da liderança da equipa em competição.

O Beto Ferreira estava mais abalizado nos pressupostos inerentes à condição física e forma desportiva das jogadoras. O objectivo comum, em prol da nação, levou-os a coabitar bem, com o líder da equipa técnica a manter o comando, potencializando o mérito do colega”, explicou.

“Na verdade, o mais difícil foi manter a coesão desta dupla, depois de atingirmos o êxito. Tivemos ainda um Campeonato do Mundo e um Pan -Africano. Tinha relação privilegiada com ambos, e isso naturalmente ajudou a aproximação. Mas, assumo que não foi mérito meu. O momento e o objectivo é que nos aproximaram. Percebemos todos que era necessário estarmos unidos”.

“Marketing: aliado importante”

O actual membro da Comissão Executiva do Comité Olímpico Angolano (COA) revela ainda que “houve um detalhe fundamental e muito significativo para a época: se repararem na camisola que a selecção usou no CAN, com a qual Angola conquistou o primeiro título, poderão ver que tivemos pela primeira vez publicidade estampada”.

“É nesta vertente que a ponta final do estágio foi paga por uma empresa sedeada na Casa dos Desportistas de Luanda, sobretudo com base em troca de serviços. Depois da conquista, tivemos o privilégio de passarmos a deslocar-nos com o avião presidencial”, regozijou-se.

Em relação ao triunfo na prova, Mário Rosa explicou: “Desde a prova que Angola organizou, em 1985, fomos capacitando o grupo que sofreu a partir daí poucas alterações. Tivemos muitos estágios (com um mês ou mais de duração) e participações em torneios, sobretudo nos países do então bloco socialista”.

“O primeiro título é sempre diferente”

Beto Ferreira, antigo seleccionador nacional, teve o privilégio de trazer o primeiro título ao nível de se-lecções à Angola. Destaca os estágios no exterior do país, onde “disputamos muitos jogos de controlo, que consolidaram a nossa confiança para a vitória.

As equipas com as quais jogamos eram de qualidade superior. Em algumas partidas equilibramos os resultados e noutras, na ponta final do estágio, ganhamos. Desde 1987 evoluímos e nos aproximamos das outras selecções.

Havia motivação de querer atingir o pódio, mas a um nível mais alto, ou seja, o primeiro lugar. Por este motivo trabalhamos muito e incentivamos sempre as jogadoras”.

Relativamente às dificuldades vivenciadas destacou as selecções da Costa do Marfim e do Congo. “As congolesas tinham ganho quatro campeonatos consecutivos, sendo na altura rotuladas como as melhores de África. Nesse campeonato de 1989 confirmamos a quebra da hegemonia delas e fomos campeões com bastante mérito”.

Trinta e um anos depois, o treinador que soma mais títulos africanos à frente da selecção feminina mostra-se orgulhoso do trabalho realizado pelo grupo: É uma grande honra. O primeiro título é sempre diferente dos outros.

Foi possível com o trabalho em conjunto realizado no Petro, Ferroviário e o pequeno núcleo da selecção de junior, sempre a pensar na selecção. Foi desta forma que vencemos o Campeonato Africano”.

Entre a crise congolesa e a ascensão costa marfinense

Depois de uma prestação pouco auspiciosa no CAN que Luanda albergou em 1985, Angola continuou com prestação modesta na prova seguinte, no Reino de Marrocos em 1987. Em terras marroquinas, ficou assinalada a queda do Congo Brazzaville que vinha de vitórias consecutivas, nas quatro edições anteriores. As congolesas foram derrotadas pela Costa do Marfim, selecção que em Luanda havia sido finalista vencida.

Entretanto a vitória do Ferroviário na Taça dos Clubes Campeões, com uma mescla de jogadoras desse clube, do Petro e da BCR, deixara pistas importantes à federação, sobre o caminho a seguir.

A partir daí a preparação foi mais cuidada, com recurso a acessoria de um treinador russo.

Foi pois neste cenário em que as atenções estavam voltadas, sobretudo para aquelas duas nações, que Angola se intrometeu, deixando para trás o habitual quinto lugar, para ocupar o topo da classificação.