Luanda - A partir desta data, nestas minhas reflexões, passarei a adoptar o epíteto de “Cão Faminto”, para que os mentores dos que tentam assassinar a minha consciência percebam que, decorridos quase 45 anos de independência, o mínimo que um cidadão pode esperar de quem o governa, ou do partido que dirige essa governação, é o respeito ao seu bom nome, ao nome da sua família. É que, depois do ADN, o nome que recebemos à nascença, para além de referência de identificação, constitui o maior legado para os nossos descendentes. Logo, temos a obrigação de defendê-lo e mantê-lo limpo, para que possa seguir o ciclo natural da transferência honrosa para os herdeiros. E se há quem não pense assim e até se acha confortável no meio da lama em que mergulhamos, não é o meu caso. Portanto, esse é o meu “Grito de Epiranga” contra os que, há dias, tentaram misturar-me com a ‘igualhagem’, parafraseando o mais-velho Agostinho Mendes de Carvalho, Wanhenga Xitu, de quem guardo boas e gratas recordações.

Fonte: Club-k.net

A CAMARILHA QUE NOS ACOMPANHA

Parece-me que está a faltar aos novos guardiões do templo, tal como nos de ontem, bom senso para aceitar, como referiu Confúcio, que “não corrigir as nossas falhas é o mesmo que cometer novos erros”, contrariando o que tem sido alguma postura do Chefe.


Ao Ramiro Aleixo, meus senhores, não compete a defesa ou tecer elogios ao Presidente João Lourenço. Goste-se ou não, o seu exercício deve ser permanentemente escrutinado, porque apesar de todo o respeito que nos merece e é devido, ele é o mais alto servidor público, é o Chefe do Executivo. Por isso, volvidos quase 45 anos de independência, pergunto se é correcto e patriótico um cidadão passar de humano a cão, e ainda por cima, faminto, por ter usado o seu direito constitucional de criticar o que poderia ser um desvio das competências do Presidente da República, aliás, corrigido como noutros casos? E se o cão é faminto, a culpa é do dono do cão que come tudo, ou do cão que não é alimentado? Qual é a qualificação que se atribui a uma governação ou a um partido que paga, com o dinheiro dos contribuintes, assassinos da honra e da consciência de cidadãos eleitores, e deixa que os seus cães morram à fome?


Na política, como na vida, não vale tudo porque ao contrário da crença popular, ela não é suja e deve ser séria. Por isso, embora não acredite que tenham directamente qualquer relação com a fabricação das ofensas que me foram dirigidas por pessoas que integram órgãos criados pelo Sistema, acho-me também no direito de perguntar ao Presidente (da República e do MPLA) João Manuel Gonçalves Lourenço, ao General Fernando Garcia Miala, à Luísa Damião, ao Albino Carlos, ao Luís Fernando, e muito particularmente ao Norberto Garcia - porque de entre os seis alguém responde pelo órgão que emprega e que paga esses assassinos de consciência desta nova era - se essa é postura que dignifica a Nação angolana, se assim seremos capazes de discutir, de forma inclusiva e aberta, os problemas do País tendo como primado que ele é pertença de todos nós e não apenas vossa? Isso é fortalecimento da unidade nacional e respeito à diferença? Querem mesmo “mudar o que está mal” e não conseguem ver o “que se faz mal”?


Para que conste, quando, logo após a proclamação da independência, ainda miúdo, este "cão faminto" iniciou as suas lides profissionais no Jornal de Angola, acompanhou diferentes delegações de alto, médio e baixo nível do MPLA e dos governos de então. Desde Agostinho Neto, Lúcio Lara, Iko Carreira, Pedro Maria Tonha (Pedalé), Pascoal Luvualo, Lopo do Nascimento e... o longo cortejo prosseguiu no mandato de José Eduardo dos Santos, percorrendo o País de Cabinda ao Cunene e do mar ao Leste.


Seria fastidioso enumerar todas as figuras e tantas jornadas, por vezes ao sol, à chuva, com fome, com sede e também enfrentando todos os riscos. Tempos, em que era obrigatório, da parte dos órgãos públicos de comunicação, porque também não havia privados, o acompanhamento integral, a gravação e a reprodução dos discursos de todos os membros do Bureau Político e do Comité Central do MPLA, ministros, mas também dos membros dos comités e comissários provinciais. E no Jornal de Angola, onde nasci e cheguei à chefe do Departamento de Informação quando decidi sair, tirei de rudimentares gravadores e corrigi até noite dentro, horas e horas de discursos proferidos por todos eles. O que diziam, tinha mais força que lei. Fomos nós, Victor Aleixo, Gustavo Costa, Quim Pereira de Almeida, Teresa Victória Pereira (Teca), Sara Fialho, Maria Dolores (Lola), Paulo Pinha e outros que entraram depois, quem deu corpo à estatura de muitos dos tais ‘heróis’ vindos das matas, alguns dos quais mal sabiam ler e escrever.


Os discursos de boa parte, depois de peneirados e arranjados por nós para que tivessem sentido, serviam de estudo nas frentes de batalha e aquartelamentos militares, em células e demais órgãos do movimento que, “sob o olhar silencioso de Lenine”, transformou-se em partido, pisoteou-nos, tomou conta de tudo, de todos e até das nossas consciências. E como o disco duro de um computador infectado por um vírus, perdeu a memória, a sua identidade e anda por aí errático.


Nas minhas andanças com os que vieram das matas para tomar conta do nosso destino, viajando na maior parte das vezes por terra, por centenas de picadas, empoeirado, entrando e saindo de trincheiras onde vi ‘restos’ humanos abandonados de jovens arrastados para uma guerra que nunca foi deles, com vários colegas de outros órgãos fomos certo dia dar à cidade de Malanje, acompanhando uma figura de proa do MPLA.


Por regra, essas visitas eram preenchidas com reuniões que se estendiam até altas horas e terminavam sempre com grandes comícios, fosse dia normal de trabalho ou fim-de-semana. Tudo parava para saudar as delegações dos libertadores. E dessa vez, também não foi excepção. A praça, transformada em palco da revolução, apresentava-se engalanada com flâmulas amarelas, pretas e vermelhas, e com grandes dísticos fazendo menção à trechos de discursos de Agostinho Neto. Desde manhã cedo, no meio de apertadas medidas de segurança, militantes das suas organizações de massa e a população foram chegando aos magotes, provenientes do centro e da periferia.


O comício decorria as mil maravilhas, até a entrada em cena do activista animador, que faria a apresentação das figuras de destaque sentadas na larga tribuna, suportada por tubos de andaime. Tratava-se de um comissário político também forjado nas matas. Apesar do seu fraco nível de escolaridade, destacava-se entretanto como autodidata, e parecia que tinha decorado o conteúdo de todas as cartilhas do Marxismo/Leninismo.


Com grande fervor, depois de entoado o hino, gritou com todo o ar dos pulmões as palavras de ordem que eram moda, numa cadência de emoção que contagiou todos nós que acreditávamos nos salvadores da Pátria “das garras do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo”. E depois de algum ‘suspense’, retomou o fôlego e virando-se para a tribuna e para a assistência, anunciou, numa voz que ribombou por todo o largo:
- E agora, camaradas, vamos apresentar o camarada... e a camarilha que o acompanha...


Intrigados, nós, jornalistas, olhamos uns para os outros meio assustados aguardando por uma reacção de reprimenda que não chegou, deixando parecer que ninguém percebeu o significado da expressão “camarilha” (ou até perceberam?). Só já noite dentro voltamos a lembrar-nos do episódio. Soube entretanto que, o tal comissário morreu cerca de um ano depois, vítima de um acidente de viação mesmo no centro da cidade de Malanje. Era uma figura respeitada pela sua eloquência, mas também pelos seus constantes laivos aportuguesados ao bom estilo de “Mestre Tamoda”. Só que, em vez de formatado por folhas rasgadas nos dicionários de um juiz desembargador da baixa de Luanda, o nosso comissário político era uma versão mal acabada das bases de guerrilha não denunciadas pelo pioneiro Augusto Ngangula.


Apenas nos últimos anos, interpretei, de facto, o verdadeiro sentido da apresentação daquele comissário político: “o camarada... e a camarilha que o acompanha...”. Afinal, vinha do convívio e da vivência com os camaradas na mata, e conhecia bem a “camarilha”.
Próximos da comemoração dos 45 anos de independência, olhando para todo esse percurso, inúmeras vidas perdidas e sonhos desfeitos, destruição, perseguições, assassinatos, assalto e delapidação de recursos públicos, deficiente assistência social, desemprego, prostituição, miséria, faltas de respeito... alguém em sã consciência terá dificuldade em concluir que fomos mesmo dirigidos por uma “camarilha”? Mas ela ainda está aí, bem presente. Com o passar dos tempos, os sobreviventes e herdeiros dessa grande família de cortesãos que nos dominam tornaram-se apenas mais refinados. Continuam aí, à mesa do banquete, donos e senhores do País e até nos têm como “cães famintos”. Mas também, porque nós queremos, porque nós temos medo da mudança. Porque, incompreensivelmente, adiamos o nosso desejo e vontade de mudar.


E eu que cheguei a pensar que o tal comissário político saído das matas, era ignorante. Enganei-me redondamente. À ti guerrilheiro, esquecido pelos teus, tiro o meu chapéu.


Continuarei...
29.07.2020