Luanda - Em 1995, Kundi Paihama foi transferido para a Huíla, onde eu era o chefe do escritório regional do UNICEF para o sul de Angola (Huila, Namibe e Kunene). Apesar dos Acordos de Lusaka e o GURN já em funções a situação era muito tensa, com muitos incidentes entre as tropas. Como resultado, era impossível levar ajuda humanitária às populações nas áreas sob o controlo da UNITA. Esta em retaliação, colocava minas nas colunas humanitárias que iam às zonas controladas pelo Governo mais ou menos seguras. Em resultado, tudo estava parado e as populações sofriam horrivelmente, sobretudo de sarampo, malnutrição sarna e outras doenças de pele. Foi essa a situação que ele encontrou: o Namibe, Kunene, centro e sul da Huíla eram mais ou menos seguros; o norte e leste da Huíla eram problemáticos.

Fonte: Novo Jornal 

Um dia recebemos um “recado” do meu primo general Mário Vatuva que era o comandante da Frente Sul da UNITA. Mandava dizer que se incluíssemos as zonas mais críticas sob o seu controlo, deixariam de colocar minas às colunas humanitárias. A sede das Nações Unidas achou boa a proposta. O problema era pôr o assunto ao novo Governador, conhecido como “o duro dos duros” do Governo e cuja animosidade a Savimbi e à UNITA assumia publicamente. Decidiu-se enviar uma delegação de colegas estrangeiros para falar com ele; eu devia então ir ter com ele para arranjar a audiência.


Por feliz coincidência, por essa altura cruzamo-nos numa actividade organizada pela Victória da Conceição, entãp Delegada Provincial do MINARS na Huila. Foi a primeira vez que interagimos. Felicitou-me por, com a idade que tinha (26 anos) ter já aquela responsabilidade – depois é que descobri que era uma das pessoas mais bem informadas do país. Disse que era um orgulho para Angola e que naquilo que pudesse “tudo farei para te ajudar a mostrar a esses estrangeiros que temos angolanos capazes”. Peguei a deixa e solicitei uma audiência; marcou-a para o dia seguinte. Na conversa – sempre ao jeito dele muito frontal – percebi uma coisa: se viessem os estrangeiros, não iria funcionar.


Gastei o resto do dia a convencer a sede em Luanda que era melhor ser eu a apresentar a proposta. Nisso tive a ajuda do chefe de base do PAM o zimbabweano Abdul Sumra. Havia o medo que ele não respeitasse um angolano e um estrangeiro africano. No final, fomos autorizados a ir.


Fomos inteiramente surpreendidos, tanto pela cordialidade como pela forma como acolheu a nossa proposta. Fez perguntas muito pragmáticas, e a primeira foi que garantias tínhamos que a UNITA honraria a sua parte do acordo. Disse-lhe sem hesitar que tanto o general Vatuva como grande parte da liderança da UNITA eram meus “mais velhos” e eles tinham-me contactado directamente com a proposta. Olhou-me nos olhos e disse; “Eu já tinha essa informação que eles só te querem a ti. Da minha parte não há problemas. As populações não são da UNITA nem do Governo. São do País…”.


Não contávamos com essa atitude. E não contávamos com a firmeza com que se manteve fiel aos compromissos. E não foi fácil. Primeiro teve que convencer e apaziguar aqueles que juravam que aquilo era uma manobra dilatória para abastecer as tropas da UNITA; depois teve que autorizar a Dra. Victória a deslocar-se conosco até uma das bases da UNITA para acertar os detalhes do programa de distribuição (messa altura, já éramos “compinchas”, íamos a sua casa jogar sueca ou futebol, participávamos em actividades conjuntas e eu já estava completamente rendido pelo charme do seu carácter). Ao seu jeito, quando autorizou a Victória a ir, foi avisando: “olhem lá, se alguma coisa lhe acontecer, vocês fiquem já lá. Mas avisem ao gajo do Vatuva que eu vou lhe buscar pessoalmente ao Km 50 (onde era a base da UNITA) e vou lhe matar a bornos”. Fomos e voltámos, de helicóptero escoltados pelos capacetes azuis.


Mas o compromisso dele ficou patente quando, a primeira coluna, que liderei pessoalmente, accionou uma mina a 12 quilómetros do quartel-general do general Vatuva no Km 50. O camião, que seguia logo atrás da minha viatura ficou quase totalmente destruída e as três pessoas que nela seguiam, feridas, tiveram que ser evacuadas à noite de helicóptero para o hospital dos capacetes azuis no Huambo. O general Vatuva jurava-me que era uma mina antiga. Eu só pensava que o general Paihama ia terminar o programa de vez. Disse isso mesmo ao “mano” Mário Vatuva. Ele deu.me uma resposta estranha que só entendi mais tarde. Disse-me: “olha, ó Minguito (meu nome de casa) vai dizer ao Governador Paihama que eu lhe juro em nome dos nossos tempos que era uma mina antiga”. Repeti o recado quando fiz o relatório. Perguntou-me “e tu o que achas? Era mesmo uma mina antiga?” Eu respondi-lhe que o general Vatuva me pareceu sincero. “Bom, o Kanhali sempre foi um bom gajo. É uma pena estar na UNITA. Mas está bem…” fiquei estarrecido. “Se estiver a aldrabar é mais um sapo. Mas é pelo povo” concluiu. Saí do gabinete sem acreditar que íamos poder continuar o programa que era uma questão de vida ou morte para aquelas populações.


Depois daquilo, nunca houve mais qualquer incidente. A região sul do país era aquela onde havia acesso livre a todas as populações necessitadas. Ao ponto que fui depois transferido para o Huambo para replicar o programa ali e no país (as capitais da UNITA erram no Bailundo e Andulo) ali já com a Dra. Lizete Pena, coordenadora das Ajudas Humanitárias e o general Gato, Secretário Geral.


Tornámos a encontrar-nos em 1999 já em Luanda, eu coordenador adjunto das operações de emergência e ele Ministro da Defesa. A guerra estava no auge e a sua vinda era um forte sinal de que o Governo tinha decidido levar a guerra até às últimas consequências. As Nações Unidas tentavam a todo o custo mitigar os efeitos devastadores nas crianças e mulheres e a pessoa com mais influência nessa altura era precisamente o general Kundi Paihama. Mas toda a gente tinha um medo terrível daquele jeito firme dele, confundiam-no com violência de carácter. Nós, porém e a minha colega Casimira Benge, já conhecíamos esse lado humano e humanitário, sensível ao sofrimento dos velhos mulheres e crianças. E dissemos que podíamos ir falar com ele a solicitar a abertura de corredores humanitários tal como tínhamos feito antes. Desta vez, só aceitaram que fôssemos acompanhando uma alta entidade que veio da sede em Nova Iorque de propósito. Suspeito que nos “states” queriam conhecer o famoso general Paihama. Pedimos a audiência (liguei directamente para o ajudante de campo) e recebeu-nos no seu gabinete, acompanhando pelo então capitão-de-mar-e-guerra Miau, então Director do Intercâmbio, salvo erro. Antes de dar a mínima à “entidade” deu-me um abraço caloroso, perguntou pela família e apresentou o Miau como conterrâneo nascido na Humpata…


Quando entrou na conversa com o enviado de Nova Iorque, deixou-o completamente espantado e confusão, como ele próprio confessou depois. Quando tentou introduzir uma agenda de cessar-fogo e eventual paz, era firme e inflexível, não, não e não. Mas quando se começou a tratar de corredores humanitários mudava totalmente. Era todo atenção, todo facilidades, até propunha se queríamos usar os Antonovs da Força Aérea (claro que não, estavam todos a cair) e até fez a ponte com o então Ministro Muteka que estava na Comissão Conjunta para as devidas negociações com a UNITA. Dali em diante, o Ministro da Defesa passou a ser o principal aliado das Nações Unidas na distribuição das Ajudas Humanitárias. Era só falar com o capitão-de-mar-e-guerra Miau e as coisas andavam. E a imagem que o Ocidente tinha dele mudou radicalmente. “He is a patriot and a charismatic believer” É o patriota carismático e homem de convicções.

Essas palavras podiam perfeitamente ser escritas como epitáfio na tumba do general Paihama; resumem o homem…