Luanda - O processo constituinte em curso em Angola revela a deriva autoritária, o apego ao poder e a cumplicidade de elites intelectuais corruptas e predadoras. Trata-se de um indiscutível caso de desonestidade… Para tornarem possível a consagração de uma forma de eleição do presidente da república aberrante, e ao arrepio de regras previamente estabelecidas, é preciso negar a existência dos limites materiais do poder constituinte originário e subverter a lógica dos sistemas de governo existentes e cientificamente descritos, que obedecem a princípios tidos por indispensáveis. Todavia, essa pretensão de negar a existência dos limites materiais do poder constituinte não tem respaldo na experiência histórica do constitucionalismo liberal democrático e as correntes doutrinais ou teóricas que a quiserem defender não têm base de sustentação empírica.


Fonte: SA


Jorge Miranda diz que «[o]s limites materiais da revisão não se confundem com os limites materiais do poder constituinte (originário): estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição, aqueles apenas o órgão de revisão constitucional; estes são constituintes ou, se preferir, constitutivos do ordenamento; aqueles constituídos» (Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 5.ª ed., 2003, p. 227). Não confundamos, pois, o poder de revisão constitucional com o poder constituinte originário. O primeiro altera, modifica, uma constituição existente. O segundo faz uma nova constituição. Contudo, ambos estão sujeitos a limites materiais, com maior ou menor intensidade, de acordo com as experiências constituintes de cada comunidade política. No contexto da experiência constituinte angolana, eles foram estabelecidos pela Constituição provisória de 1992.

 

Que não se continue a pensar «[..]que o poder constituinte equivalha a poder soberano absoluto e que signifique capacidade de emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é poder soberano absoluto – tal como o povo não dispõe de um poder absoluto sobre a Constituição – e isso tanto à luz de uma visão jusnaturalista ou na perspectiva do Estado de Direito como perspectiva da localização histórica concreta em que se tem de pronunciar o órgão nele investido. O poder constituinte está sujeito a limites» (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 5.ª edição, 2003, p. 124). Donde vem então essa ideia de o poder constituinte, o poder de fazer uma nova constituição, ser um poder não sujeito a limites? Advém de um mito desenvolvido no contexto da Revolução Francesa.

 

Jorge Bacelar Gouveia (2005) afirma que a tese do poder constituinte criada pelos doutrinários da Revolução Francesa, segundo a qual o poder constituinte originário não estaria sujeito a nenhum tipo de controlo «é uma concepção ultrapassada porque o poder constituinte foi necessariamente absorvendo as exigências impostas pelo Estado de Direito em que foi congeminado, concebendo-se, pelo contrário, um poder constituinte: - democraticamente legitimado; - materialmente limitado; e – culturalmente situado.» (Manual de Direito Constitucional, p. 628). Quer dizer, o poder constituinte originário tem de ser democraticamente legitimado, no sentido de que a feitura de uma constituição definitiva deve ser informada pela participação dos cidadãos e pelo método democrático. O poder constituinte é materialmente limitado, quer dizer que o poder que faz a constituição deve respeitar determinados princípios (determinado conteúdo). Que o poder constituinte seja culturalmente situado, quer dizer que se exerce no quadro de uma cultura política. E esta é a cultura da limitação do poder político por via do constitucionalismo liberal democrático.

 

Gomes Canotilho diz expressamente que existem correntes doutrinais que captam o fenómeno da «jurisdicização e evolução» do poder constituinte (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª edição, p. 81). Tal quer dizer que o exercício do poder constituinte, desde a Revolução Francesa, tem estado sujeito à regulamentação. Regulamentação através da criação de normas jurídicas escritas que balizam as formas, procedimentos, o modo do exercício do poder constituinte. E regulamentação através de normas jurídicas escritas que lhe impõe princípios (conteúdos) que necessariamente por ele devem ser consagrados na Constituição. Não é, pois, possível silenciar as experiências constituintes de mais de dois séculos, que atestam a existência dos limites formais e materiais do poder constituinte originário, incluindo o processo revolucionário francês do século XVIII.


A Constituição provisória de 1992 (Lei Constitucional) estabelece dois tipos de limites materiais, os limites materiais do poder de revisão constitucional e os limites materiais do poder constituinte. Primeiro, reza que «as alterações à Lei Constitucional» têm de respeitar os princípios nela elencados. Ora, o poder de alterar a Constituição chama-se poder de revisão constitucional. Segundo, reza que «a aprovação da Constituição de Angola» tem de respeitar, igualmente, os princípios nela consagrados. O poder que tem capacidade para aprovar uma nova constituição designa-se por poder constituinte. Os limites materiais do poder de revisão constitucional e os limites materiais do poder constituinte são os seguintes: «a) a independência, integridade territorial e unidade nacional; b)os direitos e liberdades fundamentais e as garantias dos cidadãos; c) o Estado de direito e a democracia pluripartidários; d) o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares efectivos dos órgãos de soberania e do poder local; e) a laicidade do Estado e o princípio da separação entre o Estado e as igrejas; f) a separação e a interdependência dos órgãos de soberania e independência dos tribunais».


O artigo 159.º, que consagra os limites materiais do poder de revisão constitucional e os limites materiais do poder constituinte, é direito constitucional vigente e como tal deve ser respeitado! Tudo o resto é desonestidade…