Luanda - Em 45 anos de independência e 18 de paz efectiva, não há memória de uma única entidade pública que tenha apresentado um balanço negativo no final do ano fiscal ou de um qualquer exercício económico.

Fonte: Club-k.net

Haja recessão durante um quinquénio inteiro, inflação descontrolada, aumento de preços para níveis proibitivos, desvalorização acentuada da moeda, endividamento insustentável, enfim, faça sol ou faça chuva, os balanços têm sido invariavelmente positivos.

Não sendo possível produzir uma realidade aumentada que traga de volta o país ilusoriamente dolarizado que embriagou as elites e anestesiou as massas, os artífices do discurso oficial não hesitam em aguçar a imaginação para dourar os números, manuseando as estatísticas como cartas de um baralho viciado.

Na recta final do ano mais calamitoso de todos os tempos, será que o balanço tem de ser obstinadamente positivo, com a pandemia a pique e a economia em queda livre, com as instituições públicas e privadas apresentando défices sufocantes e com a maioria das famílias na penúria, devido ao eclipse dos postos de trabalho e à erosão dos salários?

Em meio a uma crise sem fim à vista, qualquer tentativa de maquilhar a informação, na hora do balanço, será sempre um exercício inglório. Por mais preocupantes ou pouco abonatórios, os números oficiais não podem ficar muito longe da verdade dos factos, visto que não são apenas simples dados estatísticos armazenados num computador, numa drive ou numa nuvem. Não.

São pessoas humanas, cidadãos com direitos consagrados na constituição, homens e mulheres que corporizam as empresas e demais instituições, assim como as hordas de indigentes que disputam com cães vadios o manjar dos contentores de lixo, em plena cidade capital.

Qual seria o peso orçamental de uma campanha de recolha maciça de animais errantes na via pública? Não será mais oneroso travar um eventual surto de raiva que poderá ceifar a vida de pessoas inocentes em várias localidades?

De volta às estatísticas, nos primeiros três anos do primeiro mandato do Presidente da República, foram desalojados e empossados três governadores da província de Luanda, que é tão somente a principal praça financeira, o maior parque industrial e o mais importante círculo eleitoral do país. Mas não foi divulgado qualquer balanço do desempenho dos ex-governadores.

No mesmo período, o país conheceu três ministros da economia e planeamento, o último dos quais não fez sequer três meses no cargo. Também houve qualquer explicação.

Na senda das exonerações e nomeações, que se tornaram a marca registada do Titular do Poder Executivo, o país conheceu dois ministros das finanças, dois ministros das relações exteriores, duas ministras da educação, dois ministros da indústria e comércio e duas ministras rebaixadas à categoria de secretárias de estado.

A caneta do exonerador implacável, hoje com muito menos fôlego do que há três anos, também ditou o destino de dois PCA's da Sonangol e dois presidentes do Tribunal Supremo. Esta foi uma substituição imposta ao PR por uma avalanche de suspeições que ameaçavam enlamear todo o poder judicial.

Os resultados dessas remodelações são questionáveis mas, como diz o velho ditado, só não erra que não trabalha. De qualquer modo, esta verdade de "la palice" não deve atenuar o escrutínio permanente a que o governo deve estar submetido, nem pode conferir imunidades acrescidas a quem quer que seja.

Em democracia, as crises exigem dos governos maior comprometimento, melhor comunicação e muito mais rigor, para que os governantes nunca se esqueçam das cláusulas do contrato firmado com os eleitores.

Por esta e por outras razões, o discurso sobre o estado da Nação, na actual conjuntura pandémica, não se pode basear em números arredondados ou redundantes, intenções benfazejas e projecções superavitárias, que contrastam com os recuos e as derrapagens resultantes do défice de realismo e bom senso.

Para que se torne efectivamente no principal instrumento orientador, o discurso sobre o estado da Nação deve reflectir uma imagem autêntica do país real, agregando os elementos necessários para se inaugurar um novo ciclo de governação participativa (de facto e de jure), assente no princípio sagrado segundo o qual a chave da transparência é a prestação de contas.

Só assim os cidadãos serão encorajados a encarar os desafios do presente e do futuro com um sentimento de pertença, podendo consentir mais sacrifícios, desde que se sintam envolvidos directamente na monitorização dos escassos recursos disponíveis, com base num modelo de governança em que todos saibam onde e como são aplicados os fundos públicos.

Estando o país numa encruzilhada, com as mãos estendidas a ocidente e os pés atolados na dívida contraída a oriente, o discurso sobre o estado da Nação deve ser cirúrgico, realista e inspirador para dar resposta às inquietações de milhões cidadãos dos mais diferentes quadrantes, muitos dos quais com ideias claras e uma vontade genuína de dar o seu contributo.

Caso contrário, ninguém poderá mudar tão cedo a percepção generalizada de que a Nação está, irremediavelmente, em muito mau estado.