Paris - Enquanto Moçambique, sacudido por escândalos e enfraquecido pela queda do preço das matérias-primas, atravessa uma das mais graves crises de sua história, a morte misteriosa do presidente Samora Machel, ocorrida em 1986, assombra o debate público. Com o tempo, as línguas se afrouxam e a verdade começa a emergir…

Fonte: Diplomatique

ImageEm 19 de outubro de 1986, o primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Machel, de 53 anos, morreu num acidente de avião na encosta da colina de Mbuzini, no nordeste da África do Sul. Ele voltava, a bordo de um Tupolev 134A, de Mbala, no norte da Zâmbia, onde havia participado de uma cúpula regional. Dos 33 passageiros – na maior parte militares soviéticos –, nove sobreviveram.

Quase 31 anos depois, as causas desse acidente permanecem misteriosas. A versão sul-africana, que aponta erros cometidos pelos pilotos, domina nas chancelarias ocidentais. Mas para Moscou e Maputo, então aliados, o avião teria sido desviado de sua rota pelo sinal de uma baliza VOR (de Very High Frequency Omnidirecional Range), emitida na mesma frequência do aeroporto de Maputo, oportunamente mergulhado na escuridão naquela noite.

Imediatamente, a União Soviética e Moçambique exigiram uma investigação in loco. Membro, com eles, de uma comissão de investigação tripartite constituída após o desastre, a África do Sul tergiversou. Surda a seus protestos e àqueles dos consultores da Organização da Aviação Civil Internacional, ela só liberou as caixas-pretas um mês após o acidente.

Os documentos que tiveram o sigilo liberado pela França por ocasião do trigésimo aniversário do acidente, em 2016, reabilitam o país do apartheid. Eles revelam sobretudo o diletantismo da diplomacia francesa nesse caso. Um telegrama de 13 de julho de 1987, assinado pelo embaixador francês em Maputo, Gérard-Louis Cros, sugere, contra todas as evidências, uma negligência do presidente: “Machel tinha sido advertido a respeito da obsolescência dos aparelhos e das deficiências dos procedimentos de pilotagem dos soviéticos”.

Essas duas acusações não figuram no relatório sul-africano publicado em 9 de julho de 1987 sob a direção do juiz Cecil Margo. O ex-oficial da Força Aérea sul-africana sabia que o Tupolev 134A tinha sido construído em 1980 e era equipado com os mais modernos instrumentos. Quanto à suposta embriaguez dos pilotos, trata-se de uma invenção do ministro das Relações Exteriores sul-africano, Roelof Frederik “Pik” Botha, 24 horas após o acidente e antes de qualquer autópsia. O relatório sul-africano concluiu por um erro humano, o dos pilotos, mas se contradisse ao sugerir que o acidente “foi consequência de uma ação premeditada de um VOR em Moçambique mesmo”, acrescentando que… “a existência de uma falsa baliza não pode ser questionada no acidente”!

Para Pretória, era iniciativa demais

O juiz Margo tinha ele mesmo sido piloto de bombardeiros durante a Segunda Guerra Mundial, depois em 1948 em Israel, para onde tinha ido a pedido de seu amigo, o primeiro-ministro David Ben-Gurion. Sua carreira de investigador especializado em acidentes de avião começara em 1961, com o acidente do DC-6, que custou a vida do secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld, em Ndola, na Rodésia do Norte (atual Zâmbia). Sua investigação também havia concluído por um erro dos pilotos. Depois de alguns anos, essa versão foi contestada pelas Nações Unidas, que em 2016 solicitaram a reabertura do caso.1

No caso do acidente de Mbuzini, testemunhas vieram corroborar a tese de Moçambique e da Rússia, que em 1996 ainda reclamavam a abertura de uma investigação e a análise aprofundada dos destroços do avião – em parte levados por sul-africanos “como troféus de caça”, segundo os termos da viúva do presidente moçambicano, Graça Machel (que em 1998 se casou com Nelson Mandela em segundas núpcias).

Fernando Manuel João, guarda-costas de Machel, um dos sobreviventes, que saiu em busca de ajuda, conta ter encontrado, ao voltar ao local, unidades de elite do Exército sul-africano, vários oficiais do alto escalão e membros do Executivo, entre eles o poderoso ministro da Defesa, Magnus Malan. Os militares vasculharam a aeronave em busca de malas diplomáticas, não hesitando em perguntar aos feridos quais lugares o presidente Machel e seus colaboradores ocupavam. Os primeiros socorros só chegaram oito horas depois. Muito tarde para alguns feridos…

Machel era o pai da independência de Moçambique, antes colônia portuguesa. Comandante da guerrilha lançada em 1963 pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), ele assumiu a liderança desta em 1970, um ano após o assassinato por meio de um pacote-bomba de Eduardo Mondlane, primeiro chefe da organização. Reconhecido por Lisboa como interlocutor único nas negociações realizadas após a queda da ditadura portuguesa em 1974, ele subiu ao poder em 25 de junho de 1975. Apoiado pela ala marxista da Frente, o jovem presidente de 42 anos estabeleceu as bases de uma economia socialista que rapidamente fez dezenas de milhares de ex-colonos fugirem. Ele lançou uma campanha voluntarista – até autoritária – de “racionalização” do mundo rural inspirada pela experiência tanzaniana dos vilarejos Ujamaa.2 Isso lhe valeu a oposição das chefias tradicionais do centro e do norte do país.

No entanto, não foi no campo que surgiu o principal movimento de luta contra a Frelimo. Criada pela burguesia e por ex-colonos brancos da vizinha Rodésia (atual Zimbábue), que acusavam a Frente de apoiar a guerrilha marxista de Robert Mugabe,3 a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo) reuniu mercenários e tirou partido do descontentamento no campo. Ela realizou suas primeiras ações de impacto a partir de 1977.

Após a independência do Zimbábue, em 1980, e a ascensão de Mugabe – que continua no poder em 2017 – ao posto de primeiro-ministro, a África do Sul assumiu a oposição a Machel, o qual decidiu acolher o Congresso Nacional Africano (ANC, movimento antiapartheid) no exílio. Pretória apoiou a Renamo por todos os meios, militares e econômicos. Com um PIB 25 vezes superior, na época, ao de Moçambique, a África do Sul já era a principal potência da África subsaariana. Muito dependente de seu vizinho, sobretudo pelo tráfego do porto de Maputo, Moçambique se viu esgotado em alguns anos. Os ataques da Renamo entravavam qualquer esforço agrícola; suas sabotagens das linhas de alta-tensão desde a barragem de Cahora Bassa privavam o país de eletricidade.

Machel buscou então um compromisso com Pretória. Em março de 1984, assinou com o presidente sul-africano, Pieter Willem Botha, o acordo de Nkomati (cidade sul-africana próxima da fronteira com Moçambique). Nesse pacto de boa vizinhança, os dois países se comprometiam a deixar de apoiar os movimentos de guerrilha que prejudicavam o outro parceiro e a retomar a cooperação econômica.4

Maputo rapidamente pôs o acordo em execução e colocou fim à liberdade de ação em seu território do braço militar do ANC, expulsando seus principais líderes – apenas os quadros políticos, na maior parte pesquisadores e universitários, permaneceriam em Maputo até o fim do apartheid. Já Pretória não respeitou sua parte do contrato, limitando-se a transferir para o Malaui, então um Estado-satélite, o essencial da logística operacional da Renamo. A partir daí, foi desse enclave que a rebelião moçambicana conduziu suas operações e reabasteceu suas bases.

Sem abandonar de forma alguma seus ideais marxistas e pouco preocupado com o avanço das ideias liberais em suas próprias fileiras, Machel contou então com a amizade que lhe demonstrou a primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher. A Dama de Ferro ficou grata a ele por sua contribuição no sucesso dos acordos de Lancaster House de 1979, que selavam a independência do Zimbábue na condição notável que certos direitos fossem garantidos para a minoria branca.5 Em setembro de 1985, um ano após o acordo de Nkomati, Machel foi recebido pelo presidente norte-americano, Ronald Reagan, que o felicitou pela “relação construtiva” empreendida com a África do Sul e as perspectivas econômicas que esta abria. Mas nem Londres nem Washington, então complacentes com o regime do apartheid, fizeram pressão sobre Pretória para que respeitasse o pacto de não agressão.

Alguns dias antes de sua morte, Machel reuniu uma minicúpula regional em Maputo com os países da “linha de frente” (Angola, Botsuana, Moçambique, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue). Ele exigiu do presidente do Malaui, Hastings Kamuzu Banda, que cessasse o apoio à Renamo, ameaçando fechar a fronteira, o que tiraria do país seu único acesso ao Oceano Índico. Os “Estados da linha de frente” eram uma coalizão regional informal nascida no fim dos anos 1960 com o objetivo de resistir às múltiplas pressões, econômicas e depois militares, do país do apartheid. Mas, para além da afirmação de uma solidariedade, a maioria dos membros dependia muito da África do Sul para tomar medidas firmes, como o boicote, em relação a seu poderoso vizinho.

No dia do acidente, chefes de Estado da “linha de frente” reunidos na Zâmbia, com Machel na liderança, queriam que Mobutu Sese Seko, presidente do Zaire (que se tornaria em 1997 a República Democrática do Congo), deixasse de apoiar a guerrilha da União pela Unidade Total de Angola (Unita), o outro movimento financiado pela África do Sul. “Para Pretória, era iniciativa demais. Foi aí talvez que o país decidiu matar Samora Machel ou, pelo menos, assustá-lo”, explica Colin Darch, pesquisador sul-africano da Universidade do Cabo e autor de diversos livros sobre Moçambique.6

Em Maputo, crescia o rumor de um ataque iminente da África do Sul. A explosão de uma mina na fronteira, atribuída ao ANC (que desmentiu), feriu soldados sul-africanos. Em represália, Pretória suspendeu o recrutamento dos trabalhadores moçambicanos em suas minas de ouro; quase um ato de guerra em relação a um país com os cofres desesperadamente vazios e com 100 mil cidadãos regularmente empregados no país vizinho, sem contar os 170 mil trabalhadores clandestinos.

“Antes do acidente de avião, as relações entre os dois países tinham atingido seu nível mais baixo”, lembra-se Andre Thomashausen, professor da Universidade de Pretória, na época próximo de vários líderes da Renamo que recebiam formação política na África do Sul. “Moçambique estava desgostoso com a intensificação da rebelião da Renamo desde Nkomati, e a África do Sul tinha reunido provas suficientes do apoio da Frelimo ao ANC.” Mas esses acontecimentos também produziram consequências em matéria de política interna. “O fracasso do acordo de Nkomati e da política de Machel”, prossegue o universitário, “favoreceu a derrota da ala reformista do Partido Nacional, representada pelo ministro das Relações Exteriores, Pik Botha. Os ‘securocratas’ tinham então tomado o poder.”

O acordo jamais respeitado

Os ultras conduziram uma campanha odiosa contra Moçambique, exagerando os estragos causados pelo apoio ao ANC, como revelam processos instruídos em 1994, após a queda do apartheid, contra os assassinos das Forças Especiais, como Eugene de Kock. Durante uma das audiências, Pik Botha admitiu que importantes decisões do governo sul-africano foram na verdade tomadas com base em mentiras. “O acordo de Nkomati nunca foi respeitado pelos elementos ultras das Forças Armadas e de Segurança de Pretória. Machel havia sido objeto de várias tentativas de assassinato que tínhamos conseguido impedir a tempo”, confia-nos Sérgio Vieira, ministro moçambicano da Segurança na época do acidente.

Em 1996, a Comissão da Verdade e da Reconciliação (CVR), instalada sob a presidência Mandela para os crimes cometidos durante o apartheid, recolheu vários testemunhos sobre o acidente do Tupolev. “O fato de o feixe de suspeitas da Comissão envolver o Exército sul-africano, a inteligência militar e as Forças Especiais justifica a abertura de uma nova investigação judicial”, declarou em 1998 o chefe de investigações da Comissão, Dumisa Ntsebeza. Reabertura que não ocorreria, apesar da promessa solene feita por Mandela no décimo aniversário do desastre. “Perguntas permanecem sem resposta em relação à viagem que terminou com a morte de um dos maiores líderes da África”, declarou ele no local do acidente, antes de acrescentar: “Não pouparemos esforços para descobrir e revelar a verdade”.

A imprensa sul-africana evocou por vezes a hipótese de uma cumplicidade moçambicana, sobretudo na alta hierarquia militar.7 “É o caso de proteger alguém na África do Sul ou alguém em Moçambique?!”, pergunta Colin Darch. “Se houve um complô, o que considero provável, ele envolveu muita gente.” Hoje parece certo que pelo menos dois técnicos da torre de controle do aeroporto de Maputo, Cornélio Vasco Cumbe e António Cardoso de Jesus, foram recrutados e pagos pelo agente sul-africano Craig Williamson, que está também na origem do assassinato de vários militantes antiapartheid refugiados no exterior, entre eles Ruth First, em Maputo, em 1982, e Dulcie September, do ANC, em Paris, em 1988. Cabe a uma investigação provar definitivamente a culpa de Pretória nesse acidente.

*Augusta Conchiglia é jornalista.