Luanda - Um dia depois da celebração do seu quadragésimo quinto aniversário, a Televisão Pública de Angola (TPA) veio a público demonstrar por A+B o porquê que o serviço de utilidade pública seria bem melhor servido se a noite anterior, marcada com festa de celebração com toda a pompa e circunstância, fosse substituída por um momento de reflexão interna sobre os principais desafios daquela estação rumo a prestação do mínimo dos mínimos que se exige de uma televisão pública: informar com verdade. Trata-se da tamanha demonstração de incoerência editorial dada no principal serviço de informação televisivo do país, o Telejornal das 20 horas, de 19 de Outubro, data em que a Direcção de Informação da TPA decidiu trazer como manchete daquele serviço noticioso os protestos contra violência policial em curso na Nigéria.

Fonte: Club-k.net


Estava em frente da televisão, como habitual. A voz do jornalista Mário Vaz a anunciar aquela manchete levou-me para um lugar incerto de muitos questionamentos. As imagens, em contraste, entretanto, reportavam-me para um momento muito semelhante. Muito próximo. Uma linha assustadoramente comum.

 

Após o choque da leitura das “notícias de capa” do telejornal, recusei-me, durante algum tempo, em acreditar que aquilo que vira e ouvira era aquilo mesmo que estava a pensar. Bebi um bocado de água para empurrar o início de vômito causado, talvez, pelo embrulho no estômago. Resultou! Um resultado cujo efeito só durou até a “ficha” ter caído e uma segunda chamada no noticiário ter confirmado que sim: a Direcção de Informação da TPA decidiu noticiar os protestos contra a brutalidade policial na Nigéria no seu Telejornal principal do dia 19 de Outubro de 2020, quando há dois meses, no dia 12 de Setembro, foi incapaz de conceder uma palavra que fosse nos rodapés das notícias para reportar os vários protestos que aconteceram em várias partes de Angola exactamente pela mesma razão: a brutalidade policial.


12 de Setembro: Uma história ocultado pelos mídia públicos

 

Apesar do esforço desprezível empreendido pelos mídia públicos no sentido de tapar o sol com a peneira, a determinação e sentido de missão de quem saiu às ruas naquele sábado memorável não permitiu com que as suas vozes fossem ocultadas nem reprimidas por quem quer que fosse.

 

Várias idades, vários cartazes, distintas vozes, em variados pontos não só da capital, mas do país, marcaram aquele dia com uma única mensagem: #NãoÀBrutalidadePolicial.

 

Os protestos organizados por distintos movimentos, em cerca de cinco províncias do país, aconteceram coincidentemente em simultâneo e tinham todos um mesmo denominador comum: dizer chega aos constantes abusos policiais em Angola, muitos dos quais terminam em morte de cidadãos indefesos, como de resto temos acompanhado durante os últimos meses.

 

Ainda assim, apesar da grande mobilização que resultou em certa agitação em algumas cidades do país naquele dia (só a capital, Luanda, por exemplo, acolheu 3 manifestações ao mesmo tempo) nada, absolutamente nada, se ouviu sobre estes actos na mídia pública. Nem uma imagem na TPA sobre o assunto, tão pouco uma palavrinha que fosse no Jornal de Angola.


O silêncio conivente

Este silêncio da mídia pública sobre actos públicos de interesse público praticados por cidadãos - a que somos obrigados a chamar de censura - só pioram com o silêncio mais ensurdecedor ainda, e, portanto, conivente, a que se remetem os órgãos gestores da mídia pública do país quando questionados sobre o porquê que estes mesmos não concedem espaço de “antena” à acções de cidadania que devem ser tidas como normais, sobretudo num sistema que se diz estar a viver um “novo paradigma”.

 

Falando em novo paradigma… não consigo ver de que maneira é estas práticas, tidas por alguns como exclusivas do tempo da outra senhora, ajudam o “líder” a sustentar a bandeira de “maior liberdade de imprensa” quando continua a existir aqui uma clara incapacidade de se dar voz ao interesse público, pois, ao que parece, por aqui servir os “interesses primários” continua a ser a grande prioridade que se sobrepõe a tudo e qualquer coisa.

 

Ao silêncio dos responsáveis pelas áreas de informação dos mídia públicos, dos seus superiores do Ministério de tutela, junta-se só, e mais lamentavelmente, o total descaso da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERCA) que não tuge nem muge mesmo quando em cima da mesa estão casos de clara violação da lei que rege o exercício da actividade jornalística no país - a Lei de Imprensa -, como é o caso, por exemplo, da falta de reportagem dos protestos que aconteceram no país no dia 12 de Setembro do ano corrente.

A importância de um serviço público imparcial

Apesar de algumas pessoas ainda se demonstraram incapazes de compreender, é facto, portanto, inquestionável, o crucial papel que a comunicação social tem para a consolidação da nossa miúda democracia. Sobretudo num contexto como o nosso cujas desigualdades sociais tornam cada vez mais urgente a necessidade de um serviço de utilidade pública pronto a servir as reais necessidades do cidadão.

A verdadeira reforma tão badalada nos discursos políticos só será uma realidade quando o interesse da população se demonstrar maior do que o interesse de forças políticas. E como é que se faz isso no caso da mídia? De modo simples: concedendo real autonomia aos órgãos de comunicação social para que eles possam, de modo independente, tomar as suas decisões editoriais, baseando-se única e exclusivamente em princípios acadêmicos do jornalismo e não em sentimentos deste ou daquele.

Enquanto não chega a tão almejada autonomia, é preciso que a verticalidade dos executores fale mais alto e que não continuemos a engordar a falsa visão do país irreal produzido a cada vez que um político se propõe falar sobre os nossos pseudo-progressos. Não podemos continuar a embarcar em discursos do gênero “Ele é só um simples director de informação. Não decide nada que pode ou não passar no órgao x” sob pena de não sermos coniventes por conformismo. Porquê? Porque alguém que se mantém numa posição decorativa, com simples objectivo de agradar quem lhe tivera indicado para a cadeira, simplesmente não serve para enfrentar os desafios de um país que só será capaz de se melhor se contar com a ajuda de pessoas que coloquem a nação acima dos seus interesses pessoais e/ou de grupo.

É hora de deixarmos de nos iludir sempre que alegadamente subimos de posição em algum ranking internacional, pois não há barómetro melhor para avaliarmos a qualidade da nossa liberdade de imprensa do que a nossa realidade do dia-a-dia. E esta qualidade, meus senhores, não se mede se contando o número de pessoas da oposição que falam na televisão pública mas sim através de um trabalho diário que reflecte ou não, de modo imparcial, a realidade do país real, e não aquela mentira dos sonhos de certos dirigentes angolanos.

Censurando os protestos em Angola sobre a brutalidade policial e dando destaque aos protestos na Nigéria sobre o mesmo assunto, a TPA acaba de dar, talvez de modo inconsciente, - pois talvez já estejam tão acostumados a censurar que se esquecem que o fazem - um tiro no seu próprio pé. Um tiro que revela bem a incoerência de certas decisões editoriais daquela estação televisiva, reitero, e que diz muito sobre o quão distorcido é o conceito de ‘interesse público’ que a “televisão de todos nós” tem.

E não foi só mais um tiro. Foi um tiro daqueles. Que desmancha a hipocrisia de um problema sistêmico e nos põe a pensar na contribuição do nosso silêncio, conformismo, nesta equação. Que nos deixa calados e faz repensar o amanhã. Que nos leva ao coma e nos obriga a reflectir que tipo de serviço de informação nós, enquanto contribuintes, financiamos e, consequentemente, que tipo de país queremos e vamos ter.

É esta a TPA sem censura a que se referia o Sr. Ministro das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social de Angola, Manuel Homem, no domingo passado (18) aquando das celebrações da mesma?