Luanda - “Conheci o Savimbi nesta época, na fase em que ele estava no inicio da criação do seu partido, que chegou a enviar angolanos para a China para serem treinados. Conheci-o entre os anos de 1964 e 1966, discutimos sobre os problemas da revolução em Angola da revolução no resto da África”, revelações de Carlos Moore, respeitado cientista político Cubano numa entrevista conduzida e gentilmente cedida por Cláudio Ramos Fortuna

* Por Cláudio Ramos Fortuna
Fonte: Club-k.net


Quem é o cidadão Carlos Moore?


Eu chamo-me Carlos Moore, de nacionalidade cubana, sou etnólogo e cientista politico, neste momento estou a viver no Brasil com a minha família, estudei em França. Em 1979 fiz um doutoramento em Etnologia e, em 2003 fiz um outro doutoramento em Ciências Humanas, que engloba Antropologia, História, Sociologia, ou seja, é um doutorado especial que eles lá têm, que é chamado doutorado de estado feitos na universidade de paris 7, portanto eu tenho dois doutoramentos feitos em França.



Em termos académicos, tem estado a dar aulas em que universidade?


Eu fui professor da Florida International University, que é uma grande universidade internacional, onde leccionei durante dois anos, fiquei na universidade do Caribe francês durante três anos e depois mais seis anos na University of the West Indies.

 

Em que circunstâncias é que sai de Cuba?

 

Eu saí  de Cuba por motivo duma discussão interna dentro da sociedade cubana, em relação ao papel que a cultura afro-cubana desempenhava na sociedade, era uma discussão interna, não era algo que tinha a ver com o conflito entre os Estados Unidos e Cuba, era uma questão interna a propósito da qual eu simplesmente discordei de certas opiniões oficiais e então pensei que não era possível ficar dentro do meu país se eu não pudesse expressar as minhas opiniões de uma maneira aberta. Saí de Cuba e fui para o Egipto onde fiquei um ano. Depois fui para a Europa onde fiz a minha formação, depois da qual saí da Europa e fui viver na África, onde estive na Nigéria, trabalhei por lá, a convite do governo nigeriano, depois recebi um convite do grande cientista senegalês Cheikh Anta Diop e trabalhei com ele cerca de seis anos como assessor, isto é de 1975 ate 1981, depois voltei para a Europa, onde trabalhei como jornalista em França, pela Agence France-Presse quatro anos, como jornalista politico, e para o jornal Jeune Afrique, tambèm como analista politico.


Gostaríamos que nos falasse um pouco mais da figura do Cheikh Anta Diop, de repente nos lembramos do Dr. Mário Clington, um angolano que em 1975 teve o mérito de ter uma obra literária prefaciada pela figura academicamente consagrada, o que nos pode dizer sobre este gigante?


Fui eu quem fez precisamente o contacto para que isto fosse possível, porque trabalhava com ele e conhecia bem o Mário Clington, conheci-o em Paris. O Mário tinha-me dito que gostaria que fosse o professor Diop a prefaciar o seu livro e eu falei com o Cheikh Anta Diop, expliquei-lhe quem era o Mário Clington, ele leu o manuscrito do Mário e concordou, fez o prefácio efectivamente. Quanto a Cheikh Anta Diop, ele foi um dos mais brilhantes cientistas africanos do século XX. Seus trabalhos tiveram um impacto no mundo inteiro, e têm impacto ainda neste século. Eram trabalhos científicos que resgatavam uma memória histórica africana num período muito longo, dos últimos cinco mil, seis mil, sete mil anos e por ai além, e as premissas que estavam assentes nas suas pesquisas, que tiveram inicio em 1947/48, transformaram-se em obras em 1954/ 55. A sua primeira obra foi “Nações Negras e Cultura”, que foi uma tese rejeitada pela academia europeia, que hoje è tida como perfeitamente verdadeira, Cheick Anta Diop foi o primeiro a dizer que a humanidade surgiu em África e que não havia outra possibilidade, a humanidade era de pele negra e as outras raças eram raças derivadas, e hoje a genética tem estado a demonstrar isso nos últimos cinco anos.


Os cientistas encontraram os genes responsáveis pelo surgimento da pele branca,  da pele negra, e da pele amarela, ou seja a humanidade foi de pele negra até há oito mil anos antes de Cristo, pois não havia peles brancas nem peles amarelas, está geneticamente comprovado, e várias das teses de Cheikh Anta Diop, que eram hipóteses para a época dos anos 50, agora estão a ser demonstradas como correspondendo a uma verdade cientifica. Ele foi um génio, um cientista ímpar no campo das ciências humanas, porque ele era físico e bioquímico, e fez a primeira fusão entre estas duas ciências com as ciências humanas, e desta fusão saíram teses que eram tão usadas que assustaram todo o mundo académico ocidental, o que demonstra que um intelectual verdadeiro não pode deixar-se intimidar pelo mundo político ou académico, porque um intelectual é um intelectual, um cientista é um cientista, se ele descobre algo ele deve ser fiel a sua descoberta.

 

Quanto à sua formação, o Cheikh Anta Diop, era Físico e Bioquímico, e a ligação histórica era apenas fruto da investigação da pesquisa do autodidatismo ou teria uma formação no domínio da História?

 

Não, ele teve uma formação como Antropólogo, como linguista, dominava qualquer coisa como oito a nove disciplinas diferentes. Ele era Egiptólogo, Antropólogo, Linguista, formou-se em várias disciplinas, foi alguém que possuía uma mente extraordinária, para mim foi um privilegio ter sido convidado para ir trabalhar com ele no Senegal. É claro que não hesitei em lá ir com toda minha família.


Mas... como é que conheceu, exactamente, o Cheikh Anta Diop?

 

Conheci Cheikh Anta Diop, em termos de obra ainda em Cuba. Na altura foi um diplomata guineense que me deu a obra de Cheick Anta Diop, mas já tinha ouvido falar dele em 1961 por um grande economista Haitiano que o havia conhecido em Paris, que tinha lido as suas obras e estava em Cuba a trabalhar como assessor. Foi a primeira pessoa que me falou realmente do Cheikh Anta Diop e me falou das suas teses, mas eu não tinha o livro, foi este diplomata que finalmente um ano depois pela primeira vez pôs nas minhas mãos “Nações Negras e Cultura”. Quando eu li este livro que estava em francês, já eu tinha o domínio do francês como é obvio, foi absolutamente uma bomba para mim, e quis logo que as autoridades cubanas introduzissem esta obra no sistema do ensino, e eles não estavam de acordo, também foi uma das razões do conflito que havia entre mim e o Ministério da Educação e as autoridades cubanas, porque eles consideravam que eram obras racistas, e não eram, era a verdade cientifica, e isto motivou muitas disputas e finalmente eu tive que sair de Cuba por causa destas disputas..

 

Quais foram os africanistas com quem teve a oportunidade de conviver, e também gostaria que nos falasse do nosso amigo Abdias do Nascimento?


O Abdias do Nascimento é um amigo pessoal, eu conheço Abdias há muito tempo, somos amigos pessoais, somos aliados políticos, sempre lutámos juntos, durante todo tempo que ele ficou no exílio. Ele entrou no exílio em 1966, durante aquele tempo que ficou no exílio até à data do seu regresso para o Brasil sempre tivemos uma parceria politica, combatendo todo problema do racismo na América Latina. Abdias é um dos melhores e mais velhos amigos que eu tenho. Quanto aos dirigentes africanos, eu tive a  oportunidade de discutir com o presidente da Tanzânia, Julius Nyerere,  em 1975, discutir sobre os problemas da raça os problemas étnicos em África, uma serie de problemas neste sentido. Fora de Nyerere, eu nunca tive contacto directo com chefes de Estado, mas sim com outros dirigentes africanos, muitos. Praticamente eu diria que os países onde eu tive os maiores contactos foram Angola, Congo, Senegal, Nigéria, Ghana, Tanzânia, e África do Sul. Estes foram os países africanos com os quais eu tive maior interacção com os seus dirigentes políticos.

 

Já  que nos falou, de Cheikh Anta Diop, gostaríamos de saber se terá tido contacto com o Presidente Leopold Senghor?

 

Olha, eu morei durante praticamente sete anos no Senegal, como assessor do professor Cheikh Anta Diop. Naquele momento, o professor Cheikh Anta Diop, era um opositor do presidente Leopold Sedar Senghor, eu também não concordava com a governação do Senghor, portanto eu não pretendia qualquer tipo de aproximação com a governação do Senghor, não acreditava na sua politica, que era uma politica totalmente assimilacionista, era uma politica que eu considerei na época e que ainda considero como tendo sido neocolonial, pelo que não me identificava com aquelas ideias, pensava que ele estava a perverter o conceito da negritude, que a negritude criada nos anos trinta, que defendia uma visão politica anti-colonialista, ele estava a castrar o aspecto politico, levando a negritude somente para uma cooperação com os países imperiais da Europa e uma assimilação de todo o país, por esta razão eu não me sentia a vontade com qualquer aproximação politica com o Senghor.

 

Mas o Senghor teve muitos méritos académicos, porque terá sido dos primeiros negros a dar aula na universidade francesa, existe uma expressão do próprio Senghor, que dizia que o facto de nós adoptarmos parte da cultura europeia não quer dizer que somos assimilados. O que tem a dizer sobre isto?

 

Sim, ele pode ter tido méritos pessoais, como académico, como professor, mas como dirigente politico do Senegal eu não vejo que ele tenha tirado o Senegal da situação neocolonial. Eu conheci o Senegal e lá morei pelo menos seis anos com a minha família, mais há uma coisa que tenho que reconhecer que aconteceu com Senghor e que não aconteceu em muitos lugares, é que ele nunca fez qualquer banho de sangue, não fez qualquer agressão aos seus opositores, nem tão-pouco levou as pessoas para as cadeias, eu próprio como estrangeiro que era, lá fiquei seis anos com a minha família e em nenhum momento tive qualquer tipo de incomodação da parte de Senghor, nem tentativa de me intimidar a mim ou à minha associação com o maior oposicionista do país. Ele tinha um certo respeito pelas instituições democráticas, e acho que o Senghor neste sentido se distinguia dos outros. Quanto à natureza da política que ele seguia, eu não tenho dúvidas de que era uma politica neocolonial.

 

Quanto ao africanista Abdias do Nascimento, a questão do Zumbi dos Palmares, o caso ligado as reivindicações contra o racismo, o que nos tem a dizer sobre o assunto?

 

Ele é o único dirigente ainda vivo que participou em 1931-32 na criação do movimento da Frente Negra, no Brasil. Foi um movimento politico que a população negra teve para lutar contra o racismo e a exclusão lá no Brasil, e criou nos anos de 1940 outra organizaçao quando a frente negra foi banida pelo governo de Getúlio Vargas. Quando a frente negra foi banida eles tiveram que recorrer a outros meios para instrumentar a luta anti-racista no Brasil, mais como o governo impedia a criação de partidos negros no Brasil, ou de grupos políticos, Abdias do Nascimento criou um grupo sobre o rotulo cultural, que se chamou  Teatro Experimental do Negro (TEN), que era praticamente um partido politico mas que utilizava o teatro como escapatória. Foi uma outra frente de luta, tem a sua criação nos anos de 1940 durante a segunda guerra mundial, e assim continuara a criar militantes anti-racistas negros. Foi sobre a base de novos militantes negros, entre artistas, actores e pessoas ligadas à arte e outras profissões, que o Abdias participou também na criação, nos anos de 1970, do Movimento Negro Unificado (MNU), com lideres como a Lelia Gonzalez, Sueli Carneiro, Luísa Bairros e tantos outros. Hoje, com 95 anos, o Abdias do Nascimento é o único sobrevivente de todo o período da existência da Frente Negra. Ele é um dos maiores expoentes da luta anti-racista na América Latina, o seu trabalho é monumental.

 

Quanto ao Zumbi dos Palmares, o que nos tem a dizer sobre esta matéria?

 

No Brasil, Palmares foi um Quilombo, um Estado independente criada pelos escravos oriundos de África. No século 18, eles lograram criar um Estado independente e manter a sua independência durante um século, bem antes da revolução do Haiti, porque a revolução do Haiti foi por volta de 1804. Aí temos o exemplo claro da própria vitória da luta dos escravos africanos, que lograram criar um estado independente até ao momento em que as forças coligadas com os holandeses, os portugueses e outras potências se juntaram para derrubar-lo.  Nos Palmares houve pessoas que nasceram e cresceram totalmente livres, houve gerações que estiveram nestas condições, e foi graças ao génio político de Zumbi que o Estado de Palmares se constituiu numa referência política até hoje. Zumbi foi um génio político e militar também. Assim, o Estado de Palmares é uma referência, não somente para os negros no Brasil, mas para os negros em toda a América e para os países africanos, porque para os países africanos é uma parte da história deles. Foram os africanos do Brasil que criaram esta parcela de África fora de África.

 

Vindo mais a para nossa realidade, gostaríamos de saber de si quais terão sido os primeiros nacionalistas angolanos com quem teve a oportunidade de partilhar ideias, e, sobretudo, as circunstâncias em que isso aconteceu?

 

Eu conheci muitos angolanos, mas vou falar pessoalmente daqueles que eu conheci bem, três deles foram meus amigos íntimos, o primeiro que eu conheci em 1964, no Cairo, foi Jonas Savimbi, um dirigente nacionalista muito apreciado pelos dirigentes africanos, como Abdul Gamal Nasser, presidente do Egito. Ele contava com a ajuda destas personalidades. É preciso ver que houve dois períodos do percurso político de Jonas Savimbi. O primeiro foi um período de esquerda, ele era da extrema esquerda, era amigo do Che Guevara e de Abdul Gamal Nasser; todos eles gostavam muito de Savimbi. Havia uma parte da esquerda europeia que o ajudava e os Chineses também gostavam muito dele.


Conheci o Savimbi nesta época, na fase em que ele estava no inicio da criação do seu partido, que chegou a enviar angolanos para a China para serem treinados. Conheci-o entre os anos de 1964 e 1966, discutimos sobre os problemas da revolução em Angola da revolução no resto da África. Ele tinha contactos com o Che Gevara e com muitos outros dirigentes que o apoiavam. Mas os dirigentes com os quais eu tive uma relação de amizade profunda foram, entre outros, o Viriato da Cruz, depois dos conflitos internos no MPLA. Ele exilou-se e isolou-se, teve um momento em que a sua situação se complicou muito quando decidiu ir para a China. Foi naquele momento que ele foi de forma clandestina para França e a pessoa que me apresentou o Viriato, que me falou que Viriato queria discutir comigo e o levou a minha casa, foi o Mário Clington, isto antes de ele ir para a China. Ele foi-me ver e disse-me que ninguém podia saber que estava ali, tinha receio que as autoridades francesas soubessem que ele lá estava. Ninguém sabia que o Viriato da Cruz lá estava. Ele esteve em França naquelas condições durante praticamente dois meses, e como tinha receio de ser envenenado pela Pide, então fazia as refeições na minha casa. Ele aparecia lá a partir das 9 horas da noite para conversar, na companhia do Mário Clington, que era seguramente um dos poucos que sabiam que o Viriato estava em Paris.  Então a partir dai surgiu uma amizade muito grande, porque era a minha esposa que se encarregava de preparar a comida, e ele não comia outra comida que não fosse preparada pela minha esposa. Ele finalmente foi para China e então eu mantive contacto com ele esporadicamente durante o tempo que ele lá esteve, praticamente até ao fim da sua vida, através duma francesa militante amiga, chamada Monique, Chajmowiez, que fazia o contacto com o Viriato. Na China, aconteceu o que aconteceu...

 

O Viriato era muito pró-chinês.  Ele e o Savimbi eram absolutamente pró-chineses, mas tinham uma relação muito mais eclética com a esquerda. O Viriato era um marxista tradicional, Savimbi era um Marxista que tinha ajuda dos Trotskistas e gostava muito desta vertente, por isso fez uma fusão entre o trotskismo e o maoismo.  Mas, não há duvidas de que Savimbi era um Marxista, um marxista que se encontrava em contradição com outros marxistas que se encontravam nos outros movimentos como o MPLA. Foi nessa altura que eu o conheci, mas sempre estive rodeado de angolanos, conhecia os angolanos, iam muitas vezes a minha casa. Muitos deles pertenciam ao MPLA, havia um que se chamava Carlos Belli Belo, passava muitas vezes em minha casa, e apresentava outros amigos angolanos. Então, eu tive sempre uma relação muito forte com Angola e com o Congo. E como estàvamos todos no exílio, em função da amizade com os militantes da esquerda, fui apresentado a Sarah Maldoror, que era esposa de Mário Pinto de Andrade. Por causa de outros conflitos no seio do MPLA, Mário de Andrade foi para outros países, foi acolhido por Luís Cabral. Esteve na Guiné Bissau como Ministro, mas quando cai o governo de Cabral, o Mário para Paris e ai a sua esposa que era uma amiga intima, porque eu conhecia bem a família do Mário, as filhas que eram pequenas, a esposa apresentou-me ao Mário de Andrade, e ai começámos as nossas discussões, sobretudo, pelo facto ter sido amigo intimo do Viriato da Cruz que acabava de morrer em Pequim. O Mário soube daquela noticia, ficou muito abatido e triste com a morte do Viriato, discutíamos muito sobre ele, sobre as origens do movimento. Como tínhamos mais ou menos o mesmo foco de pesquisa descobri que o Mário de Andrade era tremendo pan-africanista e tinha uma visão sobre a questão racial e sobre a diáspora. Assim, tínhamos uma base para construirmos uma amizade politica e sobretudo pessoal. Ele sabia que eu gostava muito da família dele, das filhas dele, que sempre me consideraram como um tio.  Construímos uma relação muito forte, até à altura em que eu sai da Europa, em 1984-84, e Mário ficou por lá. Em 1990, eu já estava a viver no Caribe, e ouvi falar da morte do Mário.

 

Voltando ao Viriato da Cruz, como amigo íntimo, e mesmo depois do seu exílio para a China, qual era a opinião que o Viriato tinha dos seus correligionários de luta com quem depois circunstancialmente houve a cisão?

 

Olha, o Viriato não personalizava as coisas, e o Mário também não. Eu acho que eles viam a questão dos conflitos dentro do MPLA como tendências, de lutas e divergências ideológicas, ou de métodos de como dirigir um movimento. Mas nunca, sobretudo comigo, fizeram ataques pessoais a ninguém. Nunca ouvi da boca do Viriato da Cruz um ataque pessoal contra qualquer um dos seus companheiros. Ele falava de divergências politicas e ideológicas e sobre os métodos de direcção.


Dos poucos angolanos com quem Viriato tinha uma relação de cumplicidade foi o Dr. Mário Clington, quer fazer algum comentário?


Sim, não há  duvida que o Mário Clington foi um partidário do Viriato. Ele tinha as sua próprias opiniões, mais concordava com a avaliação que Viriato fazia da situação política de Angola. Acho que havia uma grande convergência entre eles sobre como perceber a situação política angolana.


Quanto a Jonas Savimbi, terá alguma vez ouvido da parte de Savimbi, fazer qualquer comentário acerca do Mário Pinto de Andrade ou do Viriato da Cruz?


Savimbi sempre falou com muita admiração sobre estas figuras. Havia alguma divergência em termos de linhas marxistas, mas eles três eram marxistas naquela época, mas o Viriato era o marxista mais clássico. Mário não era um marxista clássico. O Savimbi era um marxista eclético; na época era um nacionalista pan-africanista que se interessava pela luta em geral de emancipação do continente africano. Ele falava bem do Amílcar Cabral e via a luta de Cabral como positiva. Eu não tive conversas profundas com Savimbi, porque o período em que nos conhecemos foi entre 1964/66, depois desta época não tive nenhum outro contacto com Savimbi, então não tenho uma visão da forma como ele via os problemas.


 Qual foi a ultima vez que esteve com o Mário de Andrade?

 

A última vez que eu vi o Mário foi entre 1984 e 1985.


Dizem alguns académicos, que Mário Pinto de Andrade era muito respeitado pelos gigantes africanistas, e que se debatia de igual com todos eles, qual é a sua ideia em torno disso?

 

Mário de Andrade era uma pessoa muito respeitada por todos os dirigentes africanos.  O Cheick Anta Diop, Leopold Sedar Senghor, Aliounne Diop (que foi o presidente da Presence Africaine), Aimé Césaire e, em geral,  intelectuais e académicos, respeitavam-no. Mário de Andrade, além de ser um politico, foi um académico, um grande intelectual, respeitado em diferentes espaços. Mário de Andrade tinha uma dimensão internacional, e nestes níveis ele era respeitado como tal.

 

Esta também era uma das facetas do Viriato da Cruz, segundo a Monique, ao longo do tempo em que com ele conviveu na China nunca teve sequer um fio de razão para pensar que ele era personalidade política que esteve na origem do MPLA, o que acha sobre isto?


Viriato, como eu lhe disse, era um Marxista clássico, tinha as suas convicções. Ele era um homem muito integro. Tanto ele como Mário eram pessoas com uma grande integridade pessoal e humana, que discutiam com tranquilidade sobre todo o tipo de questões, não só sobre questões politicas, como sobre as questões culturais, música, literatura e sobre muitos temas. O Viriato da Cruz era um homem muito humilde, sempre foi muito humilde, era muito modesto. O Mário foi um homem tão modesto que era praticamente tímido.


Foi essa modéstia que, segundo alguns relatos, a quando da realização do primeiro congresso dos negros africanos em Paris em que ele foi um dos realizadores, na altura em que se estava a fazer apresentação dos seus mentores, ele encontrava-se na fila de trás, quase que sem dar nas vistas. Sabia deste dado?


Era o jeito dele; ele nunca defendia a ostentação, a visibilidade. Eu nunca o vi a procurar visibilidade, ele falava baixinho e escutava muito, e procurava compreender os problemas. Não procurava monopolizar a discussão; era muito tolerante na discussão. Ele expressava as suas ideias mas respeitava as ideias dos outros.


Alguma vez ouviu falar do manifesto de 1956, do Viriato da Cruz?


Sim, mas só  foi depois, porque eu não tive nenhuma discussão com o Viriato da Cruz sobre isso. Fiquei a saber somente em conversas com o Mário Clington, que o Viriato tinha produzido esse documento.


Falando duma forma geral da nossa África, a questão do Federalismo Africano, sei que é um dos defensores desta corrente. Pergunto-lhe em seu entender que vantagens, teria para nós esta corrente?


Eu acho que a única maneira de impedir que as diferentes etnias se sintam marginalizadas nos tipos de Estados de que temos em África, herdados da colonização, é um tipo de Estado que seja multi-nacional, tendo em conta as diferenças étnicas. Não vamos poder acabar com as diferenças étnicas porque elas correspondem a identidades reais e correspondem a corpos concretos que se desenvolveram na história e que têm uma memória. Porem, não se pode acabar com elas dizendo que essas nações não existem, que esses sentimentos não existem. Elas podem não ter uma estrutura administrativa como nação, mais existem dentro de um estado que foi herdado da colonização. Acho que seria mais prudente fazer o que  Cheick Anta Diop sugeriu: converter as fronteiras linguísticas e culturais em entidades administrativas dentro de um grande marco federal. Essa visão me parece muito mais lógica. Acho que se a África não chegar a se federar, a construir um espaco federal único, ser capaz de ter uma economia independente ao nível continental, ter um espaço económico único, ter uma moeda única, ter um parlamento único, ter um governo único para todo o continente, os africanos não se emanciparão.  Ora, se os países do Norte de África não se quiserem federar, não vejo nenhum problema que isso se faça com os países Sub-saarianos. Eles que se federem e os do Norte que entrem na federação Sub-saariana mais tarde, mesmo que seja país por país. Os Europeus estão a construir uma União Europeia, os Latino-americanos estão a construir um mercado único com uma coerência política a nível da América Latina, e eu não vejo porquê a África não segue a mesma via. Acho inclusive muito mais fácil faze-lo na África do que na América Latina, porque lá já são 200 anos de existência destes estados diferentes. Na África tem menos tempo.


Temos estruturas criadas para seguir esta linha?


Não é  um problema de estruturas, é um problema de vontade política e da existência de uma sociedade civil que queira o fazer. Primeiro tem que existir uma sociedade civil activa, que esteja a participar no movimento político, social e democrático, que as novas gerações estejam socializadas para esta ideia dos Estados africanos e não como entidades à parte. Tarde ou cedo vamos ter uma situação de conflitos entre países africanos que se atacam entre si, e acho que é necessário que se comece, pelo menos se comece, a estabelecer uma comissão ao nível do continente para discutir destas questões. Acho que a federalização é viável e que é estrategicamente necessária.


Existem alguns receios, quando se fala da questão ligada ao comércio comum, na questão duma partilha de produtos. Que apreciação tem desta matéria?


Bom, eu acho que os vários arranjos que os países africanos têm estado a fazer são arranjos económicos, mas o problema da federação africana é sobretudo uma decisão política, porque os arranjos económicos podem ser feitos e facilmente desfeitos. Mas o arranjo político é uma norma com cláusulas e não se pode sair dele, porque há uma decisão política. Pode-se constituir esta federação com três ou cinco países, e até pode começar com dois países, mas o importante é que esses países tomem a decisão de irrevogavelmente se converterem num Estado Federal, que a partir daí vão trabalhar com os outros países para constituir um espaço económico e político coerente e único. Acho que é o político que deve preceder a situação económica, porque os arranjos económicos você pode desfazer sem nenhum problema. Tem que se chegar a um acordo político e isso é difícil, mas as realidades do século XXI exigem que assim seja.


Quanto à questão da solidariedade africana, sei que é defensor desta tese, gostaríamos que nos ajudasse a perceber melhor esta sua tese?


Você tem descendentes africanos em quase todos os países. Se fores para a Índia, tens as populações Siddi, e no Paquistão os Habchi igualmente.  No Oriente Médio igualmente, só no Iraque há 2.500.000 de Iraquianos de origem africana, que foram lá levados como escravos, a partir do século 9. Na Síria temos descendentesde africanos, em Israel também temos uma população de ascendência africana, os Falashas.  Na Turquia tem ate associações de Afro-Turcos. Praticamente em todos os países do Oriente Médio existem populações que se identificam com o continente africano, porque há 1.200 anos atrás os seus ancestrais foram levados para lá no trafico de escravos que os Árabes praticaram a partir do século IX, principalmente a partir da dinastia Abassida, nos tempos da expansão do Império Árabe.


No que diz respeito a Europa, temos uma grande diáspora euro-africana. Só na Inglaterra, tem três milhões de descendentes de Africanos. Existe perto de cinco milhões de descendentes de africanos na Europa, e, no total, a metade dos países Europeus têm populações de origem africana. Falando da América do Norte, temos cerca de quarenta milhões de descendentes de africanos, entre os Estados Unidos e o Canadá! Nestes dois países pode haver cerca de quarenta e cinco milhões de descendentes africanos, um deles ocupa a presidência dos Estados Unidos neste momento. Quando vamos para a América Latina temos mais de cento e cinquenta milhões.

 

No Brasil, parece que  são entre cento e dez a cento e quinze milhões de descendentes africanos, e juntando toda a América Latina você tem cento e cinquenta milhões de descendentes africanos. É uma massa humana bastante considerável fora de África. Juntando os cento e cinquenta milhões de afro-latino-africanos,  os quarenta e cinco milhões dos afro-norteamericanos, e os trinta milhões dos que estão no Caribe, é muita gente somente no continente americano. Como é que os governos africanos ainda não se deram conta que devem estruturar uma politica de cooperação com esta extraordinária massa humana que saiu de África como resultado dos chamados “traficos de escravos” e que hoje constitui uma grande força politica? São a maioria em países como Cuba (70% da população cubana é de origem africana), a maioria da população no Brasil é de origem africana, da Republica Dominicana, do Panamá e praticamente a metade da população da Colômbia é de origem africana. Se você reparar bem, nestes países existe uma enorme realidade demográfica e qualquer política dos países africanos deveria incluí-los. Acho que a África só tem a ganhar utilizando esta massa demográfica e estruturar uma politica de cooperação profunda com esta diáspora. Foi o que Israel fez com a diáspora Judia. Se Israel não contasse com a ajuda da sua diáspora talvez não estivesse como está hoje. Foi uma ajuda tecnológica, financeira e política da sua diáspora que se encontra na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina etc. Eu acho, que o continente Africano não está a fazer uso deste capital humano, e assim só está a contribuir para o enfraquecimento do próprio continente.