Luanda - Quando caiu a noticia, não quis acreditar. O Haiti tinha sido arrasado por um terramoto de sete graus, na escala de Richter (sismólogo americano que em 1935, juntamente com Beno Gutemberg, estabeleceu uma escala, de um a nove, para medir a magnitude dos abalos sísmicos). Uma testemunha ocular, que gravou o momento do tremor, perante a enorme nuvem de pó, em que se transformou Porto Príncipe, gritava desesperada se não seria aquilo o fim do mundo. Era verdade, em parte, para muitos milhares de pessoas o fim do mundo estava ali.

Fonte: AGORA

O Haiti é  um país pequeno e pobre que tem, sem nunca lá ter estado, um grande significado para mim, por razões ligadas a minha formação (e mesmo identidade) política e nacionalista. Encontrei, digamos assim, este pequeno país, pela primeira vez, pela pena de Viriato da Cruz. Este grande poeta angolano, num dos seus mais belos poemas, “Mamã Negra”, para além de o dedicar “à memória do poeta haitiano Jacques Roumain”, fala de Toussaint Louverture.

 

Quando li este poema, nos idos de 1974/75, para melhor o compreender, entre outras coisas, fui à procura destes dois nomes. Descobri então o “imperador” dos escravos que comandou a mais audaciosa revolta contra a potência colonial francesa, mas, descobri também, entusiasmado, o grande romancista e revolucionário Jacques Roumain, autor do belo romance “Os Governadores do Orvalho” (Les gouverneurs de la rosée) que li com sofreguidão, tolhido pela sua força narrativa. Seguiu-se a biografia do autor, onde encontrei um exemplo de luta pela dignidade, contra a injustiça e pela liberdade. Preso várias vezes; em 1929, em 1933 e em 1934, desta vez, na sequência da publicação de um ensaio político e social, “Análise esquemática 32-34” (Analyse schématique 32-34). Desde cedo se destacou, ao escrever para a Revista Indígena (Revue Indigène) (1927) que ajudou a criar, aos 20 anos de idade, e onde publicou poemas, novelas e traduções. Em seguida vieram sucessivamente La proie et l'ombre, La montagne ensorcelée e Les fantômes. Fundou e liderou o Partido Comunista Haitiano (1934), sendo depois obrigado, na sequência de três anos de cadeia (1934-1937), a deixar o Haiti, por um período. Vai para a Bélgica e, logo de seguida, se instala em Paris, onde estuda Etnologia e Panteologia, na Sorbonne e no Museu do Homem, respectivamente. Colabora também em várias revistas como Regards, Commune, Les Volontaires e publica “As queixas do homem negro” (Les griefs de l'homme noir), numa colectânea intitulada “O Homem de cor” (L'homme de couleur). Com o estalar da Segunda Guerra Mundial, em 1939, Jacques Roumain parte para os Estados-Unidos, onde se inscreve na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, prosseguindo seus estudos científicos e a colaboração com várias revistas. Não tendo deixado de viajar, faz uma longa estadia, de quase um ano, em Havana, ao lado do grande poeta cubano Nicolás Guillén. Volta ao Haiti, em 1941, e dirige o Centro de Etnologia da República do Haiti que ele próprio funda. O seu trabalho de investigação resulta na publicação, sucessiva, dos estudos Autour de la campagne anti-superstitieuse e Contribution à l'étude de l'ethno-botanique précolombienne des Grandes Antilles (1942), e do livro Le sacrifice du tambour Assoto (1943). Morre no ano seguinte, aos 37 anos de idade, um mês depois de ter publicado o seu grande romance “Gouverneurs de la rosée.


O Haiti volta a cruzar o meu caminho, mais tarde, já em princípios de 1980, quando me propus ler, de forma sistemática, os jornais angolanos do século XIX e o encontrei, como referência obrigatória, no discurso independentista oitocentista, nomeadamente, na pena de José de Fontes Pereira e de Arcénio do Carpo (filho) que para fundamentarem a reivindicação de “A independência de Angola” (1886) e afirmarem a capacidade dos angolanos para dirigir o seu próprio país, evocavam o “Haiti e a Libéria” como “duas repúblicas sabiamente dirigidas por negros” (cito de cor). Desde então, sigo, à distância, este país que ao tornar-se independente, em 1804 (ou seja, o segundo país da América a tornar-se independente, depois dos Estados Unidos (1766), se tornou também um emblema da emancipação dos escravos, na sequência da insurreição de Toussaint Louverture que tendo retomado a luta de Vincent Ogé (1791) venceu, depois de muita luta, as tropas napoleónicas, em 1802.  


  Mas sigo-o com nostalgia e desgosto pois o Haiti, a partir de uma determinada altura, passou a ser completamente assimilado a uma dinastia de ditadores corruptos, cujo paradigma são os Duvalier; o “papá Doc” (1907-1971) que dirigiu o país, com mão-de-ferro, de 1957 até à sua morte, em 1971, e o seu filho, a quem deixou o poder, “Baby Doc”. Este que foi graduado, pelo pai, capitão do exército, aos três meses de idade, e continuou, aos dezanove anos de idade, o implacável e corrupto regime de ditadura do pai, oprimindo o povo, reprimindo toda a contestação e eliminando, pelo assassinato, todos aqueles que achava ser seus opositores, incluindo dignitários da Igreja Católica que foram expulsos ou assassinados pelo regime.


 A legitimação desta ditadura era feita pelo populismo e a demagogia, designado o “negrismo haitiano”; uma ideologia que promovia o racismo e a repressão contra os mestiços, os intelectuais, o a igreja e todos os opositores políticos. Estes ditadores que submeteram o país ao autoritarismo e a pobreza, roubaram-lhe a identidade e o transformaram na maior desgraça do mundo, malgrado as suas tradições e os ingentes e nobres filhos saídos do seu solo.

Em 1977, o Haiti atravessa um forte período de fome, a situação social é cada vez mais grave e dá lugar a intervenção humanitária. No início dos anos 1980, cresce o movimento de contestação que começa a ser enquadrado pela igreja católica. Em 1984, estalam levantamentos e tumultos que se multiplicam, por todo lado, e levam o ditador, a fugir para França, em Fevereiro de 1986, dando lugar a uma transição política caótica. O movimento democrático haitiano, uma coligação composta de diversos partidos, organizações, sindicatos, movimentos sociais, grupos comunitários e personalidades políticas, de vários horizontes, com o forte apoio dos Estados Unidos, impulsionam a passagem para um sistema de liberdade e participação dos cidadãos na vida política do país e do primado da lei. Mas, o país se desencontra mais uma vez, e, por vezes, repete “o duvalierismo sem Duvalier”, em meio, de vários interesses conflituantes, da sobrevivência dos grupos de poder anteriores, de uma forte pressão popular e da direcção dos militares. Neste contexto, a “abertura democrática” surge como o resultado frágil de um confronto permanente entre, por um lado, o poder militar e as forças conservadoras e, por outro, o movimento dos apoiantes da mudança, tornando o espaço da luta política instável e perigoso. Manifestações e greves traduzem-se em feridos e mortes, enquanto os grupos de poder procuram controlar e disciplinar o espaço político pelo rapto e o assassinato dos seus adversários. A 29 de Março de 1987 é referendada uma Constituição com mais de 99,8% de votos favoráveis. A pressão interna e o apoio internacional (político, financeiro, logístico e policial) vão conduzir o país a eleições e a uma demarcação clara dos campos em confronto. Estas eleições - fortemente observadas por várias missões estrangeiras – dão como vencedor, a 16 de Dezembro de 1990, Jean-Bérnard Aristides, padre que se notabilizou pelo seu trabalho junto das periferias muito pobre de Porto Príncipe, cuja candidatura foi apresentada tardiamente, mas que rapidamente reagrupou todos os que se opunha ao “macutismo” e desejavam que o país se encaminhasse para a democracia, o progresso e a justiça social, recolhendo 67,7% dos votos.

 

 O novo presidente, representando uma grande esperança para o “pequeno povo”, vai ter que enfrentar duas forças poderosas como os militares e os detentores do poder económico que afastados do espaço institucional, procuram uma reorganização para a defesa dos seus interesses em outros espaços e, nomeadamente num bom número de colectividades territoriais.

 

O Estado Democrático de Direito, não tendo saído ainda do papel e do mundo das utopias das classes baixas, minado, durante anos a fio, pelo clientelismo “macutista”, debate-se com a falta de quadros competentes e honestos. Por outro lado, a vontade de mudança deste novo governo nem sempre pode ser concretizada por insuficiência de meios financeiros e inadequação dos mecanismos politico-administrativos. A política de mudança vai pois centrar-se em dois grandes objectivos: o reajustamento económico-financeiro e a reorganização dos aparelhos político-administrativos, nomeadamente a adequação das forças armadas ao Estado democrático de direito. O que conduz a um clima favorável à reconstrução e desenvolvimento do país, ao respeito das liberdades e dos direitos dos cidadãos e à luta contra o tráfico. Esta oportunidade vai-se perder por um golpe de Estado militar e o afastamento de Aristide do poder. Este há-de retornar mas embrulhado em múltiplos compromissos e a instabilidade há-de desaproveitar ao povo haitiano, como sempre.

 

Agora, depois de perto de duas décadas de desencontros e um retorno pouco seguro à normalidade constitucional, protagonizada por René Preval, o actual presidente, apoiado nas forças da ONU, este pequeno Haiti, pátria também de René Depestres, amigo de Mário Pinto de Andrade e de Angola, faz a manchete de todos os meios de comunicação, no mundo, devido ao terramoto que o despedaçou. Este país, onde a pobreza é muito grande e muito agressiva, recebeu, nas vésperas deste desastre, a doutora Zilda Arns, a médica brasileira que se notabilizou na luta contra a pobreza, no seu país e em mais de vinte outros países (entre eles Angola) ao fundar a Pastoral da Criança. Quis a ironia do destino que esta heroína contemporânea que estava lá para levar esperança e vida, morresse esmagada pelas paredes da Catedral de Porto Príncipe, carregando ainda mais de simbolismo, para mim, esta catástrofe natural, pois eu tinha, há uns anos atrás, conhecido a sua obra, em São Paulo. Estava agendado um encontro, em Curitiba, mas não foi possível. Depois, ela visitou o nosso país para impulsionar a obra da Pastoral da Criança local.