Benguela - O julgamento e condenação de Sua Majestade Armindo Francisco Kalupeteka, Rei dos Ovimdundu na região Centro-Sul de Angola, em relação à morte do cidadão Kamutali Epalanga, acusado de práticas de feitiçaria, obriga-nos, enquanto activistas sociais e agentes defensores da cultura tradicional, a tecer uma abordagem de interpretação literária no contexto angolano, cuja conceituação funda-se na definição do tribunal tradicional, soberania, história, bem como o seu reconhecimento na ordem jurídica angolana.

Fonte: Club-k.net

Na perspectiva do soba Avelino Wali procurador do Direito Costumeiro em Benguela, um Tribunal Tradicional é um Jango criado especificamente para resolver conflitos comunitários de direito costumeiro, composto por uma “Corte” que constitui o elenco de um Rei ou do Soba Grande da província, que funcionam na hierarquia do Poder Tradicional.

 

É na Embala/Ombala (palácio) do Soba Grande ou do Rei, onde estão concentrados todos os serviços do sobado ou poder tradicional, como: justiça, investigação, segurança, serviços sociais, política, akwendje v´elombe – olo sipayu – polícias e tudo que diz respeito à gestão da comunidade. É também no Ombala onde encontramos um conselho constituído por todos os sekulu e kalundemba – que têm a função de adjuntos do soba ou rei e o kapitya – porta-voz. In Mário Makwa (2020) no seu livro Ondjango.

 

Ora, o Tribunal Tradicional, existe para julgar casos que não se enquadram no Direito Positivo, tais como ACUSAÇÕES DE FEITIÇARIA, ADULTÉRIO, ou seja, de fórum consuetudinário. Julga ainda outros casos como: violação de menores, violação doméstica, roubos e furtos, mortes, conflitos de terras, conflitos de herança etc. só para citar alguns (considerados de crimes comuns julgados na lei do direito positivo).

 

A experiencia oral dos mais velhos consultados, sugere-nos que, para os Mbalundu (Huambo) o método tradicional aplicado no teste para provar o acusado chama-se Ombulungungu (o caminho para a sentença caso se prove o acusado ter cometido verdadeiramente o crime de feitiçaria, submetido nalguns rituais. Nalguns casos, o incumprimento desse ritual provoca morte imediato ou dias depois do acusado). Sendo essa prática mais frequente nas autoridades tradicionais no Huambo, o mesmo sucede-se em Benguela, com a denominação de Ukoyi para questões de multa do acusado (mais frequente na problemática do adultério).

Breve historial

A figura do soba em Angola é reconhecida pela Constituição da República que define, as autoridades tradicionais como entidades que representam e exercem o poder no seio da comunidade na perspectiva da organização político-comunitária tradicional, de acordo com os valores e normas e no respeito pela Constituição. Estando reconhecidas nos termos do art. 224.º as “autoridades tradicionais” são, normalmente os juízes no tribunal costumeiro.

Em Angola, historicamente os tribunais tradicionais são milenares, já funcionavam desde a presença dos reinos pré-coloniais, mas devido a colonização ficaram anulados acabando mesmo por extinguir-se, substituídos pelo poder da Administração Local do Estado. Não obstante a proclamação da Independência Nacional em 1975, apenas com a Constituição da República de Angola de 2010. Entretanto, ainda existem algumas ambiguidades quanto ao plano da sua real actuação. Assim, é imperiosa a necessidade de uma legislação específica que possa regular a sua actividade. Enquanto isso não acontecer, os tribunais tradicionais continuarão a funcionar nas respectivas embala/ombala um pouco por toda Angola.

Para o académico Lucas Sebastião (2017) na sua obra de Dissertação de mestrado em Direito intitulado “o Casamento Tradicional Angolano”, conforme acontece no direito positivo, é o mesmo que acontece no costume como fonte de direito autónomo de criação do Direito que não carece de autorização ou consagração legal e que subsiste independentemente de os Tribunais e Administração Pública serem chamados a aplicá-lo, sancionando os que cometem crimes. Daí que, o mesmo tem a sua organização judicial como no direito positivo.

De acordo com Chico Adão (2015) o Direito Costumeiro é uma prática reiterada, generalizada e estabelecida numa dada localidade e tendo como elemento fundamental a convicção de obrigatoriedade. Nos termos do número 1, do art. 223º da CRA, o Estado reconhece o Estatuto, papel e as funções das instituições do poder tradicional constituídas de acordo com o direito consuetudinário e que não contrariam a Constituição. O reconhecimento das instituições do poder tradicional obriga as entidades públicas e privadas a respeitarem, nas suas relações com aquelas instituições, os valores e normas consuetudinários observados no seio das organizações politico comunitárias tradicionais e que não sejam conflituantes com a Constituição nem com a dignidade da pessoa humana.

De tudo quanto foi dito e observado na narrativa dos textos, a nossa opinião cinge-se do ponto de vista da cultura tradicional, na perespectiva de que quem teria o direito ou a competência de julgar e condenar o Rei ou Soba é a própria CORTE que constitui o elenco da sua Soberania e que tem a função de juízes, sendo que, são os mesmos que têm a competência (autoridade) da entronização, aquando da sua tomada de posse (nunca o poder judicial convencional), e deve ser julgado de acordo com os rituais de cada Embala. Um Soba ou Rei é pessoa da linhagem familiar por descendência ou ascendência.

Uma outra atenção prende-se com a responsabilidade de quem provocou a morte do cidadão. Tratando-se de um kimbandeiro da corte, com a responsabilidade em dirimir o conflito, há que se rever as circunstâncias em torno dos factos ocorridos, considerando o protagonismo de cada interveniente. Sabe-se, no entanto, que o acusado não resistiu ao teste a que foi submetido, acabando por perder a vida. O Rei Kalupeteka, o juíz da causa, na altura encontrava-se fora da Embala.

Havendo esse grande impasse, impõe-se uma série de questionamentos que darão azo a novos rumos na relação e na atribuição de competências entre os dois tribunais (Positivo e Costumeiro) na resolução de conflitos e na forma como estes podem conviver num país que se quer que seja sadio. A verdade é que os tribunais tradicionais existem de facto e não podem ser ignorados na Angola robusta. As autoridades tradicionais, não deveriam ser vistas como meros adornos folclóricos, mas figuras que de facto possuem um papel preponderante na resolução de conflitos no seio das comunidades, sob pena de estarmos a viver uma síndrome do colono que relega para segundo plano o papel das autoridades tradicionais, banalizando-as.

Graciano Catumbela
Activista social, jornalista, escritor e agente cultural
06.02.2021