Lisboa -  O que de seguida vos apresento é um avanço do projecto de livro biográfico em defesa do meu pai, Adelino António dos Santos "Betinho".

Fonte: Club-k.net

«As Vítimas Têm Um Rosto: A história e as lutas do meu pai Betinho»


 
Até 1974 a rádio A Voz de Angola, criada em 1968, era uma estação pública integrante da Emissora Oficial de Angola - EOA, dominada, claro está, pelo poder colonial. Sendo a rádio de maior audiência, mantinha uma proximidade com as populações mais desprotegidas que conjugava com a fama de ser um instrumento de informação ao serviço da PIDE. Não havendo televisão pública em Angola no ano de 1974, a rádio era, de facto, um projecto idealizado pelo tentáculo do Serviço Nacional de Informação (SNI) que servia como veículo de propaganda da metrópole em Angola. 

 
Com o fim da ditadura em Portugal, o último Governador- Geral de Angola, General Silvino Silvério Marques (23.03.1918 a 01.10.2013) demite-se. No seu lugar, assumindo a Presidência da Junta Governativa de Angola é nomeado, em Julho de 1974, o Vice-Almirante António Rosa Coutinho (14.02.1926 a 02.06.2010), membro da Junta de Salvação Nacional que, após a manifestação da "maioria silenciosa" ocorrida a 28 de Setembro de 1974 em Portugal, é nomeado para o cargo de Alto Comissário em Angola.

 
A Junta Governativa de Angola era composta por vários Ministérios, na altura designados Secretarias de Estado. Era Secretário de Estado para a Comunicação Social o Comandante Jorge Correia Jesuíno (28.01.1934). 

 
Mas recuperemos dois meses na História. Jorge Correia Jesuino integra o Movimento das Forças Armadas imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974, a convite do Almirante Vítor Crespo. Em Portugal, no Palácio Foz, onde funcionava o SNI, o jovem Correia Jesuino, mais tarde Sociólogo e Professor Catedrático licenciado em Filosofia, toma posse da 1.ª Comissão ad hoc para o controle provisório da Rádio, Televisão e Cinema. A Comissão, nomeada pela Junta de Salvação Nacional em Junho de 1974, tinha um carácter provisório e foi por pouco mais de um mês que Correia Jesuíno se manteve na sua direção-geral. Imediatamente a seguir haveria de ser nomeado para o cargo de Secretário de Estado da Comunicação Social da Junta Governativa presidida pelo Vice-Almirante António Rosa Coutinho. 

 
Numa entrevista à Antena 1 (Rádio e Televisão de Portugal) datada de Fevereiro de 2019, assume: «A rádio era muito importante e não havia televisão». Na verdade, o processo da criação da Televisão Pública de Angola estava em andamento, havendo já tentativas para instalar a televisão em Angola, mas só depois de 1974 é que o processo se concretizou. 

 
É neste contexto que passamos a enquadrar a importância do programa Kudibangela.

(...)
Depois da abrilada de 1974 é questionada a sobrevivência d' A Voz de Angola que, como já sabemos, era parte integrante da EOA. A estação perde recursos humanos, em fuga para Portugal, e consequentemente peso tanto em termos de programação, quanto na grelha de informação que acaba por emitir em cadeia com a programação da EOA. Desta forma, boletins informativos das 13H e das 20H quer de A Voz de Angola, quer de todos os rádios clubes, com excepção da Emissora Católica, difundiam o mesmo conteúdo libertado pela EOA. 

 
Determinante é o acontecimento político paralelo, o Congresso de Lusaka. Sabemos hoje que o I Congresso do MPLA apresentava um movimento que, embora reconhecido pela Junta de Salvação Nacional, se encontrava profundamente dividido. De um lado a Revolta de Leste, do outro a Revolta Activa, a contestação a António Agostinho Neto fazia-se sentir como leite a ferver numa panela de pressão. Mas nem Daniel Chipenda, nem Mário Pinto de Andrade, nem Gentil Viana, nem Adolfo Maria, nem Joaquim Pinto de Andrade (inicialmente com o papel de moderador acaba por se aliar à fracção da Revolta Activa) haveriam de prever que seria um jovem militar que havia combatido na isolada 1.ª Região Político-Militar de Angola que se tornaria a Torre do Xadrez. Num discurso ao seu jeito activista e populista, Alves Bernardo Baptista "Nito Alves" defende Agostinho Neto que emocionado, entrega-lhe a Torre na mão...  Já o Movimento Democrático de Angola (MDA) havia incorporado o MPLA.


Em Agosto de 1974,  Artur Queiroz, Chefe de Redacção e Horácio da Fonseca, Responsável de Programação, ambos quadros da EOA recebiam de Hermínio Joaquim Escórcio (01.06.1936), eleito membro do Comité Central do MPLA na Conferência Inter-Regional de Militantes realizada no Moxico, nas margens do Rio Lundoge, entre os dias 12 e 20 de Setembro de 1974, directrizes para integrar um grupo de jovens que tinha vindo da Cadeia de São Nicolau. Para Artur Queiroz, com quem Faleiro sobre o quente de Cacimbo de 1974, de todos os jovens que vinham chegando à estação referenciados por Escórcio sobressaiam pouco mais de três: Adelino António dos Santos "Betinho", Emanuel Costa "Manino" (14.12.1951) e Rui Malaquias "Ngila" (f 1977). 

 
«Eram miúdos interessados na rádio e A Voz de Angola era uma rádio profissional. Muitos dos jovens que lá apareciam ou não tinham formação ou não tinham dicção. Davam erros de português, não tinham o timbre de voz, nós não os podíamos integrar. Dois ou três tinham jeito para fazer rádio e o Betinho destacava-se. Era um miúdo simpático, estava sempre a rir. Era humilde, sabia ouvir, era inteligente. Nunca pedia nada para ele, pedia sempre para os outros. Eu reconhecia-lhe qualidades pois ele, apesar de não ter uma grande voz, estava talhado para a rádio. Tinha uma formação acima da média e uma imaginação que cativava qualquer um.»


Quando Betinho e os outros jovens apareceram na rádio sob a indicação de Hermínio Joaquim Escórcio, que nessa altura tinha a responsabilidade máxima das Comissões Populares - a referir também a importância de Carlos Alberto Rocha "Dilolwa" (02.12.1939 a 16.11.1996), proeminente economista e intelectual do MPLA que abandona a actividade política em 1978 para se dedicar exclusivamente à vida académica como professor na Universidade Agostinho Neto - Artur Queiroz integra-os num espaço radiofônico já existente do qual era Realizador e que tinha como Produtor José Andrade "Zan" (1946 a 10.07.2015), o «Equipa - Contacto Popular». 

 
Este pequeno espaço ocupava cerca de 30 minutos numa grelha que antes do jornal das 20H emitia, às 19H, «A Voz Livre do Povo», um programa que contava com a apresentação de Manuel Berenguel e que tinha como orientação editorial a de dar voz aos problemas do quotidiano dos trabalhadores, das classes operárias, enfim, do povo. Pegando este programa, que por si só já tinha uma enorme audiência, Artur Queiroz aproveita-o utilizando-o como fio condutor para a integração de um curto tempo de antena onde os jovens de Hermínio Escórcio teriam oportunidade para criar, intervir, ler, declamar, questionar, passar mensagem. Foi este o embrião que permitiu que, depois do noticiário das 20H e nos 30 minutos finais do programa «Espaço-Contacto Popular», os jovens tivessem o seu tempo de emissão.


Foi Betinho o jovem que Artur Queiroz chamou quando amadurece a ideia de, e já depois de um inicial trabalho de laboratório com os jovens, fazer daqueles 30 minutos uma rúbrica independente. Animado, Betinho que tinha então 19 anos, vai ao encontro de Artur Arriscado e Fernando Neves, na altura os operadores de som, apresentando-lhes o projecto radiofônico que baptiza de Kudibangela (do Kimbundo, Construção). Logo ali criam o jingle, ou indicativo, como denomina Artur Queiroz, que tem a voz de Betinho. Era Chefe de Sonorização Domingos Neves.

 
«KUDIBANGELA - Estamos a Construir uma Nova Nação» tem a assinatura de Artur Neves na sonoplastia e torna-se o mais famoso programa de intervenção e discussão pública da História da Rádio em Angola. 

 
Nada na história aparece por acaso, lembram-se de que no primeiro capítulo vos falei de como o meu pai se ligava ao programa de rádio «Angola Combatente» no período pré-independência para obter directrizes das próximas acções de guerrilha urbana clandestina? Pois bem, o projecto que apresentara a Artur Queiroz em Agosto de 1974 resultava também dessa experiência acomulada nos tempos das células clandestinas e da introspecção praticada durante o tempo em que esteve detido, primeiro no Pavilhão Prisional da Direcção-Geral de Segurança da PIDE em Luanda e depois no terceiro Campo do Campo de Concentração  a PIDE denomivava-o de Campo de Instrução- em Moçâmedes (actual Namibe), onde fora submetido a trabalhos forçados nas pedreiras e nas salinas. 

 
No Bentiaba o Tira-Mantas tinha-lhe deixado marcas no corpo jovem, mas na cabeça de Betinho a criatividade sairia imaculada e nem a tenra idade exposta à opressão impediu-o de se tornar num intelectual de excepção. 

 
Um outro testemunho, ex-quadro da União Nacional dos Trabalhadores de Angola (UNTA), mais-velho que Betinho, mas que com este privou nas pedreiras de São Nicolau, analisa o papel do meu pai no Kudibangela.


«Era uma das figuras centrais. Tinha mais do que simples capacidades activistas, ele era uma pessoa letrada, com uma inteligência acima da média, sabia escrever bem e tinha uma preparação política e ideológica forte. Depois, quando ele entra no Kudibangela, ou quando se criou o Kudibangela, já tinha passado pela Cadeia. Portanto, era um indivíduo amadurecido, que tinha textos muito bons, que também lia e declamava muito bem, logo tornou-se na figura central, num dos pilares o Kudibangela. Aumentava a qualidade. Ele destacava-se.»


Já um ex-aluno de Betinho na Escola Preparatória João Crisóstomo refere: «O seu pai era um professor muito ocupado, também era colaborador da rádio nacional no programa do Kudibangela. As nossas aulas eram quase sempre interrompidas. Vinham muitos camaradas pedir conselhos sociais e políticos... Foi com o professor Betinho começámos a entender a grandeza do nosso país; Económica, Social e Política. Foi o nosso segundo pai...»


Kudibangela era a nação em construção que, com o fecho d' A Voz de Angola passou a integrar a grelha da EOA, hoje Rádio Nacional de Angola (RNA). Se existiram programas que se extinguiram com o fecho d' A Voz de Angola, o Kudianguela foi transferido para a EOA precisamente porque tinha o condão de «destapar cabeças». E se em 1976 já era considerado por Iko Carreira (02.06.1933 a 30.05.2000) de «escapatória popular», desde o início que teve em António Agostinho Neto, Primeiro Presidente de uma Angola Independente, um assíduo e pontual ouvinte que, para medir a temperatura à sua própria reputação, usava-o como fonte de informação para conhecer a reacção das massas às medidas mais impopulares. 

 
E já agora, lembram-se do sussurro kuribota que se espalhou que nem gindungo nas conversas de corredor da Conferência Inter-Regional? Para quem não se lembre, pois aqui recordo o que um dos presentes no Moxico ainda não esquece. O desabafo final de Lúcio Rodrigo Barreto de Lara (09.04.1929 a 27.02.2016) a António Agostinho Neto: «Cuidado com esses miúdos da 1.ª Região. Eles estão organizados!». É bem capaz de ser verdade, admite Artur Queiroz ao terminar o seu depoimento lembrando-se das vezes que correu atrás de Betinho tentando afastá-lo de uma postura mais radical, que bebesse de um populismo que o conduzisse a um irretornável fraccionismo: 

 
«Betinho, vamos fazer rádio. Tu és da rádio. Não andes a seguir os populistas; Não andes a querer comprar junto de quem não tem nada para vender.»
 Sabem o que é que o meu pai respondeu?: «Mestre, confia em mim.» Pois meu pai, afinal não foi só a minha mãe quem te avisou. 

 
E muito mais há para relatar, escrever e ler. É por isso que este segundo e penúltimo avanço biográfico é um convite ao encontro de uma editora fiel, comprometida em dignificar e não humilhar o trabalho do autor, independentemente do seu género, etnia, idade, estatuto social, religião. Enfim, o que almejo é encontrar uma editora que assuma a palavra dada, que se posicione de forma não politizada, sem outro pré conceito que não o respeito da integridade do leitor. Editora Leal Precisa-se!

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2021
Ulika Gisela da Paixão Franco dos Santos