Luanda - O tema da constituição, em Angola, lamentavelmente, encontra-se envolto num ambiente de alta crispação contrariando o pensamento das tradições que se vêm sedimentando, há mais de três séculos, sobre a forma de criação originária de uma lei superior que representa e vincula governantes e governados e seus ulteriores termos de modificação ou alteração. Assim sendo é mister reconhecer que algo vai mal entre nós na compreensão da fenomenologia entendida como poder constituinte, como disso indicia as desavenças profundas em torno da aprovação da Constituição da República de Angola, CRA. Tais desavenças estendem-se pelo tempo sem soluções à vista que configurem consenso que se impõe retirar da diversidade de ideias e diferentes interesses da comunidade política.

Fonte: Club-k.net

Atenda-se ao pedido de revisão da constituição inesperadamente solicitado pelo Presidente da República, manifestando uma atitude inusitada, devido ao secretismo e singularidade do acto, contrariando as reclamações sistemáticas de partidos políticos da oposição insistentes na adopção de uma postura mais dialogante sobre o futuro da CRA. Ora, isto é fundamento para que a revisão constitucional seja encarada para além das disputas partidárias, por mais legítimas e legais que sejam, estas situam-se fora do âmbito do fenómeno constituinte que se baseia num critério de igualdade de participação e de oportunidade políticas, nos termos do que dispõem os artigos 17.º/ 1 e 4, 23.º e 52.º/1 da CRA.


Dentro do que constitui o núcleo essencial do conceito de poder constituinte não deixa de ser paradoxal do ponto de vista democrático e jurídico, tendo em conta que a revisão constitucional consiste no poder de fazer regras constitucionais, que não se tenha em conta o entendimento de base de a Constituição consubstanciar um processo público, que integra limites imanentes e limites heterónimos. Destes resultam de entre outros, no primeiro caso, os que dizem respeito à legitimidade democrática (direitos de participação dos cidadãos e dos partidos políticos, artigos 2.º/1, 21.º/l e 17.º/1 e 4 da CRA) e no segundo caso referente a princípios, regras ou actos de vinculação jurídica decorrentes internamente do Estado e do direito internacional (acordos de paz assinados, compromissos políticos assumidos e vinculação ao Direito Internacional, nos termos do artigo 13.º da CRA). Por conseguinte, há que considerar a revisão constitucional como um direito constituído integrado, constitutivo, coextensivo e sincrônico[1] dentro do poder constituinte na qual se situam forças que integram politicamente a sociedade e formam a Constituição material através de compromissos ou reivindicações institucionais contínuos e ajustam os limites matérias.


Nesta seara impõe-se observar que a revisão constitucional integra a constituinte na modalidade de poder derivado e assim sendo é apreciada como uma garantia da constituição, precisamente porque a sua incidência tem como acento tónico a defesa da Constituição captando o seu sentido, o que se manifesta na CRA por via do que dispõe o artigo 236.º. A consequência é de se atender a essência da evolução constitucional, decorrentes das dinâmicas sociais que se desenham no tempo e no espaço, porquanto este é um exercício que absorve as exigências impostas pelo Estado de direito personificado como um poder constituinte que seja democraticamente legitimado; materialmente limitado e culturalmente situado [2] exibindo uma unidade entre a dimensão jurídica e política envoltos em pressupostos metodologicamente garantísticos e incontornáveis em Estado de direito. Em causa está atender o movimento contínuo de interacção a vários níveis das forças políticas da sociedade para fazerem regras constitucionais.


Ora não foi isto que a sociedade angolana assistiu ao ver a Assembleia Nacional votar na “generalidade”, o pedido de revisão constitucional da proposta apresentada pelo Presidente da República, suportada num procedimento da autonomia da maioria, como princípio legitimador do procedimento da revisão constitucional e seguindo os termos dos artigos 204.º, 205.º e 206.º, do Regimento da Assembleia Nacional, dispostos na Secção I, capítulo II, sobre processos legislativos especiais.


Acontece, porém, que as normas do Regimento da Assembleia Nacional que consagram a matéria sobre a revisão constitucional não só dizem menos do que deviam dizer, atenda-se por exemplo a necessidade de densificação do que se entende por revisão ordinária e revisão extraordinária, conforme resulta do artigo 235.º da CRA, como, e mais grave, trata da matéria como se de mais uma lei de valor reforçado se tratasse, sem atender à questão metodológica inerente ao poder constituinte, mesmo que derivado. Ou seja, quanto a mim, há manifestamente falta de procedimento legal compatível com a natureza da revisão da lei suprema implícitos nos limites substanciais da constituição (imanentes e heterónimos) pois são verdadeiras decorrências de adequação do conteúdo à forma, o que significa dizer que a forma está no conteúdo, porquanto permite organização dos princípios do Estado de direito e democrático e da internacionalização do poder constituinte de acordo com um sentido de justa medida e de adequação material, senão vejamos. Se a Constituição enquanto lei superior e única implica uma construção especifica, inclusiva e aberta e estabelece ela própria os critérios de validade para se aferir tanto a legalidade como a legitimidade democrática, resulta que  por força do que  dispõem os artigos 17.º/1 e 4, 23.º e 52.º/1 da CRA, deve ser  estabelecido  uma metodologia adequada e consentânea com o princípio da conformidade com a Constituição consagrado nos artigos 6.º/ 1 e 3 e 226.º, da Lei Mãe em sede de revisão constitucional.


Esta é uma questão que, quanto a mim, não pode ser nem ignorada nem construída fora do confronto com os princípios constitucionais e estruturantes da República de Angola e do que dispõe expressamente a Constituição material e formal, como disso indicam os artigos referenciados. Uma vez tratar-se de uma questão metodológica deve ser examinada previamente para dar lugar a um segundo momento que é a de demarcação da extensão e definição do objecto da revisão constitucional.


Por isso entendo que há uma questão constitucional que deve ser tratada junto do órgão competente para o efeito, decorrente do que dispõe o Regimento da Assembleia Nacional no artigo 206.º, sobre o procedimentos de revisão, pois esta disposição normativa não está em conformidade com o disposto nos artigos 17.º/ 1 e 4, 23.º e 52.º/1, conjugados com os artigos 6.º/1 e 3 e 226.º da CRA. Ocorre que o artigo 206.º do Regimento da Assembleia Nacional viola a igualdade de participação e de oportunidade políticas entre os partidos políticos, bem como a dimensão principiológica da medida da proporcionalidade subjacente ao princípio do Estado direito, consagrado no artigo 2.º da CRA.


Isto porque o princípio da proporcionalidade[3] trata essencialmente da indagação acerca da adequação proporcional de uma relação entre dois termos ou entre duas grandezas variáveis e comparáveis. Independentemente da diferença entre os dados da relação em comparação, na sua aplicação, o princípio da proporcionalidade coloca, de um lado, a importância ou permanência do fim que se pretende alcançar (no caso leia-se fazer regras constitucionais) e, do outro, a gravidade do sacrifício que se impõe a determinada medida.


Ou seja, no caso concreto temos que com o disposto no artigo 206.º do Regimento da Assembleia Nacional ao atribuir competência exclusiva do procedimento da revisão constitucional à Comissão Técnica de Trabalho Especializada daquele órgão, à qual compete elaborar parecer em razão da matéria que se aprovado por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções elabora um projecto de lei de revisão, elimina qualquer hipótese de intervenção autónoma da parte de outras forças políticas sacrificando a participação autónoma das mesmas na elaboração de alterações ou modificação da Constituição, apesar de se tratar de forças com igual estatuto parlamentar, termos de que resulta uma exclusão ou redução dos mesmos a capitis diminutio. Ora há no procedimento adoptado uma avaliação injusta, não adequada, não razoável e desproporcionada do processo constituinte.


Efectivamente, isto é “quanto basta para se perceber que há uma ineliminável vinculação entre o princípio da proporcionalidade e a avaliação subjectiva do justo, daquilo que deve ser, em função do sentimento de Justiça ou da ideia de Direito daquele que decide”[4], no caso concreto, a maioria parlamentar, que passa dominar por completo um processo que mobiliza outros factores de poder em que as partes partilham os mesmos pressupostos de igual dignidade e igualdade de tratamento e de oportunidade. Entendo, por isso, que o artigo 206.º do Regimento da Assembleia Nacional é inconstitucional.

 

*Maria da Imaculada Melo, Juíza Jubilada do Tribunal Constitucional de Angola, Mestre em Direito na Área de Ciências Jurídico-Políticas, Docente da Cadeira de Direito Constitucional na Universidade Católica de Angola e Coordenadora da Jurisdição Constitucional no Instituto Nacional de Estudos Judiciários.
 
[1] Por analogia a Negri citado por Luís Claúdio Coni, a internacionalização do poder constituinte, Sérgio António Fabris Editor, Porto Alegre, 2006, pag.

[2] Cfr Jorge Bacelar Gouveia

[3] Ver densificação do princípio da proporcionalidade, Jorge Reis Novais, os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004

[4] Idem