Luanda - Queridos contemporâneos, espero que esta carta vos encontre menos mal, tendo em conta que não é possível estar-se integralmente bem na nossa pátria grávida de manipulações. Nem na diáspora dispersa pelos quatro cantos do mundo onde se multiplicam as saudades da terra, esta nossa terra reluzente por fora mas obscura por dentro.

Fonte: Club-k.net

Alerta amarelo aos homens e mulheres da minha geração

Escrevo deste jeito porque não consigo ficar indiferente à proliferação de textos que nos remetem a um passado de triste memória, em que Angola era palco de uma guerra atroz que chegou a provocar mil mortos por dia e mais de quatro milhões de deslocados internos. Os textos que me apoquentam são partilhados nas redes sociais a uma velocidade estonteante, revelando a mentalidade intolerante e rancorosa dos seus autores e reprodutores. Trata-se de uma nova estirpe de "franco-atiradores" contratados nas repartições do "vale tudo" e remunerados tal qual mercenários lançados para uma guerra sem quartel e de consequências imprevisíveis.

 

Tudo indica que eles não têm noção de que estão a disparar contra a paz, a democracia e a liberdade, dada a frieza com que reproduzem um ambiente cénico que pertence a um passado de morte, destruição e vinganças que ninguém em sã consciência gostaria de reviver. Muitos dos novos "snipers" vivem envoltos em pseudónimos, acobardados nas novas trincheiras revestidas de mosaicos semi-regulares, cortinas encorpadas e climatização apropriada para conter suores frios. Outros assumem na primeira pessoa a verdadeira identidade de quem anda na contramão da história.

 

Uns e outros são incapazes de perceber que o Povo não se alimenta de versões alienadas das várias guerras de Angola, em que os únicos vencedores foram os fabricantes e os mercadores de armas. Não é necessário ser especialista em material bélico para saber que algumas peças do armamento mais mortífero, fabricado no último quartel do século XX, foram ensaiadas em primeira instância nas terras de Ekwikwi, Katiavala, Mutu ya Kevela, Ndunduma, Mandume, Mwene Vunongue, Mwatiânvua, Nyakatolo, Kimpa Vita, Njinga Mbande e Ngola Kiluanji.

 

É por isso que a maioria da população, particularmente a juventude, não está muito interessada na retórica acusatória sobre fulanos, beltranos e cicranos que foram operacionais da PIDE, da DISA ou da BRINDE, agentes ao serviço do regime anacrónico do apartheid, dos tentáculos da CIA ou do antigo KGB, da defunta Stasi alemã e da impiedosa secreta cubana.

 

A guerra fria terminou há mais de três décadas. Os antigos imperialistas do ocidente e do leste estão hoje apostados noutro tipo de disputas, adaptando-se à ascensão do gigante asiático, ao flagelo do terrorismo e aos desafios impostos pelas alterações climáticas. O passado faz parte da história que deve ser interpretada com o devido distanciamento.

 

Os crimes contra a humanidade, que nunca prescrevem, devem ser apurados e pronunciados com serenidade, sem a carga propagandística que acaba por confundir as melhores intenções do mundo com a sede de vingança típica do submundo do crime.

 

O sentido da reconciliação nacional, cá entre nós, deveria ser alicerçado numa catarse genuína e não mais na verborreia inquisitorial de agentes arregimentados e pagos com dinheiros públicos para promover o ódio, seguindo a velha estratégia de dividir para melhor reinar. Também não se pode permitir que um político imberbe procure obter vantagens competitivas com recurso a impropérios gratuitos deferidos contra a dignidade de uma mulher. Por mais que esteja errada. Nem se deve aplaudir a instrumentalização das instituições do estado para subverter a lei e satisfazer interesses circunstanciais de um determinado grupo. Bem identificado e com responsabilidades acrescidas.

O momento actual recomenda bastante lucidez para que possamos perceber, de uma vez por todas, que as barbaridades praticadas no calor da guerra civil por Jonas Savimbi pertencem ao passado, tal como ficaram no pretérito perfeito (ou imperfeito) as monstruosidades da escravatura e dos 500 anos de colonialismo; o genocídio do 27 de Maio e a queima das bruxas na Jamba; as minas implantadas nos caminhos para as lavras e os bombardeamentos indiscriminados sobre cidades sitiadas; a sexta-feira sangrenta e tantos outros episódios tenebrosos da nossa história recente. O governo e a sociedade civil devem encontrar, em tempo útil, um ponto de equilíbrio para uma melhor gestão do dossier referente às vitimas dos conflitos políticos que enlutaram milhares de famílias.

Ninguém pode mudar o passado. Mas podemos e devemos encarar o presente com realismo e responsabilidade para estarmos todos juntos em condições de corrigir o que está mal e preservar o bem comum. É preciso acabar com a mania doentia de desenterrar mortos para justificar a nossa crónica incapacidade de conferir dignidade aos vivos e projectar a rota da prosperidade para os vindouros. Urge pôr termo à estratégia sadomasoquista de vasculhar o lixo da história para exibir os podres do adversário. Caso contrário, Angola corre o risco de degenerar em país africano irremediavelmente perdido, refém dos caprichos de gente que só sabe conduzir com os olhos grudados no retrovisor sem se aperceber da rica paisagem postada bem à frente do pára-brisa.

Os autores dos textos indigestos que poluem as redes sociais, incitando o linchamento de quem esteve do outro lado da barricada, 19 anos depois da conquista da paz, não passam de marionetes assalariadas de mentes enferrujadas, totalmente calcinadas, tentando proclamar um país a preto e branco porque não têm sensatez nem sensibilidade para visualizar este portentoso arco-íris que se chama ANGOLA.

Nelson Mandela só se tornou Herói Universal porque soube extrair as lições do passado, inspirando os seus compatriotas no sentido de converterem as diferenças étnicas, políticas, ideológicas e espirituais em recursos preciosos e essenciais para construção de uma nação de paz e concórdia. A África do Sul não é nenhum paraíso, mas tem um fio condutor. Os sul africanos negros, brancos, mestiços, indianos, xhosa, zulu, nsutu, ndebele, tswana, khoi-san, cristãos, muçulmanos, budistas, etc., trabalham, reivindicam, festejam e brigam com um sentimento de pertença. Não vivem fascinados com os reclames luminosos de Londres, Berlin ou Nova York.

Aqui, na nossa terra, há uma descrença quase generalizada. Os jovens das zonas rurais emigram todos dias para os centros urbanos e muitos rapazes e raparigas das cidades desejariam estar de malas aviadas para a pátria de Mandela ou para o velho Portugal. Só não partem em massa porque, apesar da sua rica massa cinzenta, não têm massa monetária. Se não invertermos este quadro o mais rápido possível, os nossos filhos e netos não hesitarão em zarpar para nunca mais voltar. Porque a riqueza produzida em Angola continua a ser domiciliada na antiga metrópole e arredores.

O nosso problema não reside em políticos que ostentam títulos académicos suspeitos ou certidões de nascimento duvidosas. Estas questiúnculas não têm nem terão qualquer influência no destino da maioria dos jovens angolanos sedentos de formação académica e profissional, emprego, habitação e oportunidades de negócios para afirmarem o seu real valor.

Há muito que temos convivido com a pandemia da "doutoromania", disseminada por homens e mulheres que compram habilitações literárias porque confundem certificado com conhecimento, cargo com profissão, preço com valor, dinheiro com riqueza. Esses indivíduos sem escrúpulos só conseguem brilhar porque quem tem a obrigação de potenciar a escola pública e dignificar a figura do professor, teima em excluir a massa crítica que não alinha na idolatria, no unanimismo e nas intrigas que fazem morada nos principais centros de decisão. É aqui que reside o nosso problema.

Não é possível garantir estabilidade com base na lógica distorcida segundo a qual quem não concorda connosco deve ser excluído. Podemos fazer discursos eloquentes, apelando à unidade na diversidade, mas nunca chegaremos lá se continuarmos a erguer muros em vez de pontes, diabolizando quem pensa diferente e denegrindo toda a gente que sente que é urgente uma nova abordagem para os múltiplos problemas que afectam o país.

Este é que é o nosso problema de fundo, patente nos caminhos e descaminhos delineados pelos repetentes da velha escola que piscam à esquerda e viram à direita, violando os códigos e protocolos que recomendam o apuramento dos mais amplos consensos antes da aprovação de leis estruturantes, susceptíveis de desencadear novos conflitos e atrofiar o embrião das futuras gerações.

Será que alguém está realmente interessado em projectar um futuro com facas afiadas, abrindo brechas para novas punhaladas pelas costas? E quem será o vencedor? Certamente que não será o povo heróico e generoso.

Kuito/Bié, 04 de Abril de 2021