Luanda - 1. O estado angolano continua a silenciar a real dimensão do significado e das grandes questões ligadas aos territórios que integram nos termos da Constituição e legislação fundiária o Domínio Útil Consuetudinário. As questões em causa atravessam:

Fonte: Rede Angola

1.1. O campo da coerência e coesão territorial (assegurar o desenvolvimento sócio-económico equilibrado e equitativo de todos os territórios articulando o seu capital físico, sua diversidade, complementaridade e endogeneidade; periferias e disfunções territoriais VS margens humanas). Não pode haver desenvolvimento que escolha lugares e pessoas, ou ainda, em permanente estado de insegurança de posse.


1.2. O campo político cujas questões estão associadas ao polismicídio, ou seja, ao esvaziamento ou dominação dos sistemas de organização e poder da autoridade tradicional (como acomodar e articular o diálogo entre os sistemas de poder da autoridade tradicional, do poder estadual e do poder autárquico no mesmo espaço territorial?). O Executivo não respondeu em nenhum dos instrumentos políticos ou normativos a essa questão. Em Angola não se conhece sequer uma lei que regule o poder da autoridade tradicional.


1.3. O campo cultural com enfoque para as questões ligadas aos processos destrutivos ou de desmemorização do lugar enquanto espaço de pertencimento e valorização das identidades locais (o desmembramento e/ou a usurpação das terras do Domínio Consuetudinário; o conflito entre a inovação e a tradição, ou ainda, entre o urbano e o rural). Sim, porque a terra, a par de um activo económico, é critério de cidadania e expressão das identidades locais em territórios do Domínio Útil Consuetudinário.


1.4. Campo da sustentabilidade ou justiça intra e inter-geracional que sugere redimensionamento institucional e descentralização da decisão. A Terra em Angola não tem sido gerida com os olhos no futuro. A forma pouco vigilante aos riscos de desastres naturais com foco para a seca no Centro e Sul de Angola ilustram o défice de governação climática. Tirando a zona costeira não existem em sectores produtivos Guias de Adaptação Climática e a terra continua a ser trabalhada sem nenhuma regulamentação sobre o uso de adubos químicos. O Executivo prometeu mobilizar as instituições nacionais, sector privado, acadêmico e da sociedade no âmbito da redução das condições de vulnerabilidade do país com objectivos de reduzir o número de vítimas humanas; reforçar as capacidades locais descentralizadas, assim como das comunidades locais para que saibam gerir adequadamente as suas condições de risco; reforçar as capacidades nacionais de adaptação às alterações climáticas e incrementar as acções de gestão e transferência de conhecimento e tecnologia, mas esses objectivos não têm resultados na vida da população.

O Executivo angolano tem feito um esforço pouco sinalável na regulamentação do plástico produzido e utilizado no país. Basta. As alterações climáticas são, hoje, uma questão de segurança.


2. Durante a administração colonial a governação fundiária em Angola foi marcada pela segregação sócio-espacial; construída à margem do princípio da dignidade humana e dominada por rupturas de paradigmas que foram gerando conflitos, sujeições e vários silêncios históricos, políticos, culturais, económicos e sociais. Ela tinha como premissas a) impor o controlo das terras, do território, das pessoas e dos recursos naturais e b) sujeitar a vida política, as formas de organização social, cultural e econômica à nova racionalidade (colonial).


3. Infelizmente, volvidos mais de 45 anos de Independência Nacional os destroços da consciência do colonizado continuam a reproduzir-se com definições e significados que, ainda, aprisionam a consciência de muitas classes e instituições. Em Angola, a terra continua a gerar mais conflitos do que o bem-estar e propiciar as condições de justiça. O número de queixas à Provedoria de Justiça sobre conflitos de terras falam por si. «Alguns órgãos judiciais e judiciários tratam as queixas das vítimas, quando os processos chegam ao seu conhecimento, com passividade, o desleixo e o espírito de “deixa andar”» (Cfr. Número 4 das conclusões saídas do SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE A PROBLEMÁTICA DA OCUPAÇÃO DE TERRENOS sob orientação da Casa Civil do Presidente da República, e execução dos Ministérios da Administração do Território, Urbanismo e Habitação e da Justiça e Direitos Humanos, Dezembro de 2014).


4. A crise de identidade instalou uma visão reducionista dos territórios de famílias que integram o Domínio Útil Consuetudinário. Ou seja, os territórios, espaço com população e poder político passaram a designar-se terras. Terra e território não são o mesmo. As designadas terras rurais comunitárias são apenas uma porção do património fundiário dos territórios do Domínio Consuetudinário. Existem territórios intra-estaduais pré-coloniais cujas especificidades histórico-culturais e políticas não devem ser ignoradas. Basta o facto de perderem a propriedade originária da terra e a propriedade sobre os recursos naturais inscritos nos seus territórios. Esses territórios não são rurais (reconstrução de significados coloniais). Têm dignidade própria. Eles não são e nunca foram o lugar “não-civilizado e, por isso, desprezível e objecto de destruição). Parem de destruir os sistemas rurais e transformar os territórios do Domínio consuetudinário em espaços de sacrifícios, sujeição, desmemorização e empobrecimento crónico. Temos de pôr fim à consciência do colonizado.


5. As comunidades continuam a perder as suas terras por não-titulação sem indemnização ou indicação de outros terrenos à semelhança do tempo colonial. Muitos fazendeiros vedaram as fontes de acesso à água; fecharam os caminhos tradicionais para os centros urbanos ou escolas; privatizaram as lagoas das comunidades. Algumas concessões de terras são feitas em respeito aos marcos coloniais sobrepostos às terras das comunidades que ficaram sem terras suficientes para si.


5.1. O Titular do Poder Executivo através do Despacho Presidencial nº14/18 de 19 de Fevereiro criou uma Comissão Inter-ministerial de Registo de Terrenos Rurais a Favor das Comunidades com foco na promoção do reconhecimento e registo célere de prédios e terrenos rústicos comunitários em regime do Domínio Útil Consuetudinário ao que a Rede Terra aplaudiu desde o primeiro momento, mas 2 anos depois de terminado o programa mais de 90% dos territórios do Domínio Consuetudinário não foram tituladas. O programa «Minha Terra» foi um autêntico desastre e o cidadão não foi informado sobre o relatório final.


5.2. Em 2008 foram constituídas as reservas fundiárias do Estado, mas grande parte das reservas constituídas foram instaladas em territórios das comunidades agravando os conflitos fundiários para os quais não existe uma estratégia coordenada de gestão de conflitos locais. «A maioria da população não tem segurança de acesso e uso da terra» (Cfr. Decreto Presidencial nº 216/11 de 8 de Agosto.


6. Basta. Exigir o cumprimento do Reconhecimento por Titulação das Terras Comunitárias que integram o Domínio Útil Consuetudinário não é apenas um imperativo de segurança de posse da terra. É, acima de tudo, uma questão de justiça, do respeito à verdade histórica e um apelo à segurança humana e ao direito ao desenvolvimento.

 

 

Os territórios do Domínio Consuetudinário
clamam por mais justiça cultural e económica.


Luanda, aos 22 de Abril de 2021
Bernardo Castro
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Director Executivo da Rede Terra