Luanda - Durante o período da guerra pós-independência, as farras, nas áreas controladas pela UNITA, eram dos momentos de recreação e diversão colectivos mais alegres que se podia vivenciar.

Fonte: Club-k.net

Elas eram um facto e também faziam parte da vida das pessoas, não obstante a actividade militar que foi sempre o centro de tudo o que se fazia e que consumia a principal parte da energia e trabalho dos homens e mulheres daqueles tempos.

Geralmente, nas principais datas comemorativas, como: o dia das FALA (24 de Janeiro); o dia da fundação da UNITA (13 de Março); o dia do aniversário do Presidente Fundador, Dr. Jonas Malheiro Savimbi (3 de Agosto); o dia da Independência Nacional (11 de Novembro); o dia do Natal, que coincidia com o dia do Primeiro Ataque Armado da UNITA à Vila Teixeira de Sousa (Luau), marcando o inicio das actividades militares da UNITA em 1966 (25 de Dezembro); e o dia da passagem de Ano (31 de Dezembro e 1 de Janeiro) – tínhamos quase a certeza de que haveria “pé-de-dança”. Só que, nem sempre havia autorização para se dançar. A autorização dependia, em muito, da situação político-militar que se vivia no momento em todo o País. Assim, na Jamba, logo que se soubesse que havia luz verde para o pé-de-dança, a palavra corria de boca em boca ou (yendelele) dizia-se: “haverá pé-de-kassumbi!”, como costumava dizer o kota Malan.

 

A notícia sobre “haver Farra” alegrava a todo o mundo, mesmo os mais velhos de idade ficavam satisfeitos com a boa-nova, pois, no dia de Farra, para além do pé-de-dança, havia, quase sempre, a “Aguardenga” (bebida fermentada feita à base de farinha integral de milho e sumo concentrado de laranja ou goiaba, das marcas “granadine” ou “guava”. Em outras Regiões e Bases espalhadas por todo o país, a bebida principal era o Ovingundu (Hidromel), e o Maruvu.

 

A bebida era servida apenas para maiores de idade. Os kotas não precisavam de tomar grandes quantidades..., bastava uma ou mesmo meia compota (lata de conserva de compota de marmelada que servia de medida de mais ou menos 75 ml) para ficarem bebedos, isto é estimulados. Aqueles que se atreviam em ultrapassar a dose, ficavam mais bebedos ainda ou “nhanhados” (boiados).

 

Na verdade, para os jovens, o que mais importava era o pé-de-dança, porque aproveitavam a ocasião para conversar com as “miúdas”. Já para os interessados em beber, a maior satisfação era o levantamento da Circular 140, que proibia o consumo de bebidas alcoólicas, com consequências muito severas para quem a violasse. Com a Circular 140 levantada, os kotas interessados podiam beber à vontade, sem temer por eventuais punições que, muitas vezes, passavam por apanhar "vicandambalas" (chicotes) ou mesmo despromoções de patentes militares, ou ainda mesmo cadeia, e em alguns casos punições muitíssimo mais severas.

 

É que, na UNITA, o Código de Disciplina Militar e os Regulamentos Militares, assim como as Ordens em forma de Circulares ou Despachos, eram de cumprimento obrigatório, sem excepção. Perante a “Lei”, o comandante era igualzinho ao soldado.... e o Povo era o bem mais precioso que se tinha e que se apregoava.

 

Foi assim, e debaixo de uma disciplina militar férrea, que a vida era um verdadeiro convívio entre irmãos, onde o respeito mútuo e a solidariedade foram as grandes marcas da convivência fraternal entre pessoas de diferentes origens e sem vínculos familiares sanguíneos. A título de exemplo, quando houvesse comida, era distribuída para todos. Quando houvesse crise, também era para todos.

 

Havia uma sintonia tal, que, mesmo nas nas bases mais próximas às áreas onde as confrontações militares e a actividade de guerrilha eram muito mais activas e com combates constantes, por imperativos disciplinares e por uma questão de “vida ou morte”, a organização das farras, nessas áreas, merecia um cuidado muito especial por parte dos comandantes locais, que tinham de velar, principalmente, pela segurança do pessoal.

 

Quando fosse possível organizar farras, não se podia tocar com volume alto, para não espantar a caça, já que as tropas do MPLA, as FAPLA, por vezes, faziam ataques surpresa às bases.

 

O certo é que, quando fosse possível, as Farras aconteciam. Havia sempre alguém com um gravador; um outro com um dínamo de uma bicicleta adaptado para carregar baterias ou alimentar directamente um aparelho de som; e outros ainda com cassetes de música. Às vezes, era preciso enrolar com a esferográfica para localizar a música desejada, enfim...

 

Porém, na Jamba, tudo era diferente, não se colocava o problema do volume do som nem o de enrolar a cassete com a esferográfica, pois, não havia qualquer problema de segurança real. As Farras aconteciam ao som dos diversos Agrupamentos Musicais, nomeadamente: “Os Negros Oprimidos”, “Resistência Negra”, “Som da Liberdade” e “Estamos a Voltar”.

 

Naquela altura, os artistas mais famosos e ouvidos, de que eu ainda me lembro, eram: Poeira, Kalú, Tony Mingo, Katchiungo (José Kachiungo), Tchingui Tchinhama, Grito, Costa Kakepa, Bidón, Kandingolo, Clarindo Kaputu, Lanito Tchipeio, Marques etc. etc.

 

As músicas eram na sua maioria cantadas em várias línguas nacionais. Usava-se a música para fazer passar uma dada mensagem, uma orientação política ou um ensinamento. Com as músicas, também aprendíamos muitos aspectos da nossa cultura e da história de Angola.

 

Eu, particularmente, gostava das músicas dos artistas que mencionei acima. Eram músicas bonitas de ouvir e interessantes. Mas vou destacar algumas músicas do “tio” Poeira: 1) Ovissengue viovio vi tchala, kimbo ku mãi, ku tate oko tualunga...; 2) Savimbi lo UNITA, omanlã vo londjamba...; 3) Otchikoko, companheiro do guerrilheiro...; 4) Kunateke a koteke.
Estas músicas não passavam da moda... mesmo, nos dias de hoje, a Rádio Despertar vai passando alguns dos sucessos do “tio” Poeira.

 

O “tio” Poeira era um artista singular. Tinha uma postura muito particular de estar no palco: não dava muitos toques de dança ao cantar, mas cantava, encantava e fazia dançar todo mundo. Por exemplo, ninguém resistia à música “Kakuli ondjango itunda utwe, nda kwakalepó, a Savimbi....”, e quando chegasse a vez do coro, que era: “... General, General, General! ... “, o pessoal, na sua maioria jovem, invadia o recinto, pulava, cantava, gritava... e, do Palco, o “tio” Poeira, para incentivar ainda mais os jovens, dizia: ”tchapila kuló...”, e todos vibravam de emoção.

 

Assim que a música terminasse, cada um regressava, cantando, para o seu lugar; e o “tio” Joaquim Soma Kessenje, mestre de Cerimónias em programas políticos e culturais (muitas vezes secundado pelo então Major Victorino Ndunduma), pegava no microfone para dar uma palavra de ordem a fim de acalmar os ânimos, dando, de seguida, sequência ao programa, com outras actividades: Apresentação do Jogral pelo grupo do CENFIM; Apresentação das danças tradicionais pelo grupo da terceira idade; Apresentação de Karaté pelo grupo dos karatecas; Apresentação de ginástica rítmica pelo grupo de balé feminino, etc., etc. e só depois, por volta das 22 horas, começava o pé-de-dança. A primeira música era quase sempre dedicada aos membros da direcção da UNITA, aos visitantes estrangeiros (quando houvesse) e os mais velhos, sinalizando assim o pontapé de saída.

 

A partir da segunda música, o pessoal entrava em massa no recinto: cada um dançava do seu jeito; cada um tinha o seu estilo, mas todos dançavam alegremente.

 

Nós, os mais novos, gostávamos de passear pelo recinto e ver de perto os toques e as passadas dos kotas. Os kotas dançavam de verdade! só os toques!!! Até havia mesmo aqueles que inventavam modas de dança, como: a dança dos Protectores (Guarda-costas do Dr. Savimbi). Era uma dança em que eles combinavam, de forma cadenciada, os movimentos dos pés, do peito e da cabeça. Era bonito de ver os Comandos Especiais dançarem com muita genica. Ninguém mais sabia fazer aquela dança. Daí o nome de “a dança dos Protectores”. – Vou perguntar ao kota Yano, quem, entre eles, inventou aquela dança.

 

Para além da dança dos protectores, havia a dança dos mutilados de guerra (havia muitos na Jamba): eles apoiavam-se em uma única muleta, e a outra mão pegava a cavaleira. Tinham uns toques muito engraçados. Aquilo era divertido demais...

 

A medida em que o tempo passava, os membros da direcção e alguns mais velhos retiravam-se do Pavilhão, e os conjuntos musicais tocavam só mais um pouco, e depois entrava a discoteca do tio Joel (um oficial da segurança e de extrema confiança do Dr. Savimbi).

 

Não sei se ele se fazia de “DJ” (Disc Jockey), mas dizia-se que as cassetes de música eram de sua responsabilidade. Naquela altura, as músicas de Pepé Kalé estavam a “bater”. Tocava-se muito a música “ve sissi, ve saia...., ve sissi, ve saia.... sakai? Wi sakai...”.

 

Já sem a presença dos mais velhos, um grupo de kotas que chamávamos de “os cacimbados” concentrava-se numa zona próximo ao palco, a que chamavam de fogareiro. Como naquela zona “fogareiro” ficava muita gente, e não havia espaço para mais ninguém. Aí, a dança era outra: não havia passadas nem toques; os pares não se mexiam muito e dificilmente se largavam: entrava música, saía música, sempre com a mesma dama e no mesmo sítio.

 

As farras terminavam, normalmente, por volta das 6 horas da manhã, e muitas vezes com direito a continuação, quando se tratasse de uma Vitória Militar ou Diplomática importante que a UNITA tivesse alcançado. E o pessoal resistia, dançando, até ao fim, procurando explorar no máximo aqueles momentos, porque, afinal de contas, eram raros. Podia-se passar vários meses a seco: sem farra nem o famoso Aguardenga.

 

Estes foram alguns dos momentos das farras no território que até 1992 foi denominado de Terras Livres de Angola.

Como o tempo passou, e a vida continua, sempre que possível, vamos escrevendo algumas lembranças para não nos esquecermos do nosso passado, que nos ajudou a formatar o que somos hoje e nos ajudará a edificar uma Angola melhor para a gerações vindouras, que terão a história como referência incontornável.

Luanda, 23 de Abril de 2021.

Gerson Prata