Luanda - Uma escola é sempre escola. Não importa se ela é de tijolos, de capim ou ao relento. Uma escola é sempre escola desde que haja vontade e compromisso em ensinar e em aprender.

Fonte: Club-k.net

Na escola, quando o professor cumpre com o seu verdadeiro papel, os alunos facilmente aprendem. Nesse particular, diga-se abono da verdade: os professores do meu tempo, dos anos 80, cumpriram com a sua missão – “Combateram o bom combate” – Um combate em que o Giz e o Livro eram as suas armas de guerra; em uma guerra cujo inimigo principal era o analfabetismo.


Essa guerra contra o analfabetismo foi ganha na sua generalidade com o apoio indispensável das famílias. Elas envolviam-se seriamente no processo de ensino e aprendizagem. As famílias colaboravam com a escola e, acima de tudo, respeitavam os professores. Os professores sentiam-se valorizados. – Talvez seja esse o segredo do sucesso das escolas na Jamba, uma vez que, em plena guerra, a missão de ensinar era desafiante, principalmente por falta de material escolar. E aí, os professores tinham de ser criativos. Eles eram os únicos que possuíam livros. Recordo-me da gramática de José Maria Relvas e da disciplina de Aritmética, actualmente chamada de Matemática.


Naquele tempo, a Aritmética era dada até a 4.ª classe, e a Matemática, a partir do 1.º ano do Liceu(5.ª classe). Só mesmo esse pormenor, fazia muita diferença. Ninguém passava do exame da 4.ª classe sem dominar as quatro operações fundamentais. Todo mundo sabia a tabuada e as contas de dividir com dois ou três algarismos no divisor; todo mundo sabia fazer contas de horas, em que era necessário transformar os segundos em minutos, e os minutos em horas, etc., etc.


A 4.ª classe funcionava como uma espécie de barreira. – Só a transpunha quem realmente soubesse alguma coisa. Por isso é que, no dia de exame, as famílias se envolviam bastante. Sentíamos um carinho e atenção muito especiais dos encarregados: vestíamos da boa roupa, daquela que só saía no Natal; o mata-bicho era abonado: bolacha com quitaba e leite moça.


Depois do mata-bicho, partíamos cheios de energia para enfrentar a prova de Aritmética, Ciências da Natureza, Ortografia e Redacção. Terminadas as provas, ficávamos à espera do dia do anúncio dos resultados finais, geralmente, anunciados três ou quatro dias depois.
Assim que chegasse o dia, um professor pegava na lista e lia em voz alta: fulano, aprovado;... Beltrano, reprovado; e Sicrano vai para a prova oral.


Os aprovados saíam a correr para suas casas a fim de anunciarem o feito. Pelo caminho, gritavam: nda yula...nda yula! nda pita... nda pita!... e recebiam carinho das pessoas com as quais cruzavam. Já os reprovados, ficavam tristes e envergonhados. Havia uma canção de consolação: ”... nda ño ndapia, sapile pikô, enhamuali ndipitulula... e outros cantavam:... ove otenlã nhe? Nditenlã pô katitô... silissoki lukuetu kandanda kô sikola...”; e lá iam todos cabisbaixos para suas casas. Eles sabiam que a reprovação constituía uma autêntica vergonha para a família. É que, na Jamba, reprovava-se mesmo.


Não importava quem: “não sabe, reprova”; e para evitar as reprovações, os alunos dedicavam-se bastante. Mesmo sem livros, eles esforçavam-se muito em perceber a matéria e procuravam fazer sempre o T.P.C. (Trabalho Para Casa).


Naquela altura, O único material didático que recebíamos no início do Ano Lectivo, distribuído pela Direcção da escola, era: cadernos, lápis e borrachas. Como os livros eram raros, eram de uso exclusivo dos professores. Pessoalmente, os primeiros livros que li, foram de Banda Desenhada. A minha mãe requisitáva-os ao responsável da única Biblioteca pública que eu conheci e frequentei na Jamba. Mas o primeiro livro didático que tive, foi oferta da minha tia Tininha, ela trouxera de portugal em uma das visitas que fizera à Jamba.


Independentemente da falta de livros e outras fontes de pesquisas, todos se esforçavam para passar de classe. Mas, infelizmente, havia sempre algumas reprovações. Mesmo sabendo que, algumas vezes, reprovava-se por mau comportamento.


Foi o que, provavelmente, aconteceu comigo. Reprovei na 3.ª classe por ter tido uma atitude reprovável com o chefe de turma. Até hoje sinto-me envergonhado pelo acontecido. Foi, mais ou menos, assim: estávamos em plena aula, e, eu, distraído, conversava com o meu colega ao lado, já não sei se era o Mbongue. O chefe de turma, o João Ventura, tinha autorização para manter a ordem na sala, vendo-me na conversa, deu-me uma reguada. E eu, descontrolado, enfiei-lhe um murro. – Gerou-se uma certa confusão, e o professor expulsou-me da sala; e disse-me que eu só poderia voltar a entrar na sala com a presença da minha encarregada de educação.

Fiquei em choque. Fui expulso da aula! Que vergonha!


Ser expulso era gravíssimo. Eu sabia que tinha ido longe demais, e também sabia que se contasse o ocorrido em casa, iria apanhar uma boa sova.


Naquele tempo, o bom nome das famílias era muito importante. E nós fomos educados no sentido de não mancharmos o nome da nossa família. Por mais que quiséssemos cometer um excesso, evitávamos, e quando escorregássemos, sabíamos que iríamos apanhar.


Acho que, com receio de apanhar, não disse nada à mãe Bia(irmã mais nova da minha mãe Chica Prata), com quem vivia depois de sair do Delta, onde vivia com a minha saudosa avó Benita.


No dia seguinte, fui para a escola sem a encarregada, sentei-me no meu lugar, que nem um coitado, e o professor fez de conta que não me viu. Chamava todo mundo para o quadro, fazia perguntas sobre a matéria, uma vez que estávamos no final do Ano Lectivo. Todo mundo era chamado, menos eu. Afinal a decisão já tinha sido tomada. Na semana seguinte, anunciaram os admitidos para a prova final. Eu fui o único ausente da lista. Pareceu-me que a minha atitude pesou bastante na decisão da escola: – fui EXCLUÍDO das Provas Finais. Não havia mais nada a fazer. – Reprovei, e, assim, começou o meu desespero! Agora, não vou me livrar mais da surra...


Regressei à casa muito abalado e sem jeito. procurei arranjar algumas forças para anunciar a notícia. Afinal, a mãe Bia já sabia do resultado. Não cheguei a saber quem a informou, o certo é que, a dada altura da conversa que ela mantinha com alguém, ela dissera: “... ele começou tarde, encontrou o ano pelo meio. O próximo ano vai passar.”
Fiquei aliviado! Não me importava mais se tinha reprovado ou não. O ânimo voltou e já me apetecia brincar, como se nada tivesse acontecido.


Hoje, passados mais de 37 anos, decidi dar o recado que o meu professor da 3.ª classe enviou para a minha encarregada de educação:
- Mãe Bia, o professor pediu que a mãe fosse comigo amanhã à escola. Dei um murro ao chefe de turma em plena aula, e fui expulso!

O recado foi dado...

Luanda, 10 de Abril de 2021
Gerson Prata