Luanda - Para muitos de nós não constitui uma surpresa quando surgiu o escândalo do Major Pedro Lussati, que envolve avultadas somas de dinheiros em Kwanzas e em divisas, isto é, em Dólares Americanos e em Euros, guardados nas Residências dos Oficiais da Casa Militar.

Fonte: Club-k.net

Esse escândalo ganhou maior amplitude por estar ligado directamente à Presidência da República de Angola, mais conhecida por Cidade Alta. Além disso, seguiu-se a exoneração de alguns Generais (em lugares chaves) e Oficiais Superiores da Casa Militar, inclusive o General Pedro Sebastião, que detinha poderes enormes, na qualidade de Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, que cuidava da Segurança da Presidência, e tomava conta de uma gama de Serviços e de «Dossiers delicados» do Estado Angolano.


Na prática, o Regime Angolano, tem dois Governos paralelos: Um, está instalado na Cidade Alta, que apoia directamente o Presidente da República e baixa Ordens aos Ministérios (Segundo Governo) que constituem o Governo formal, cujas competências e atribuições são diminutas, subordinados aos Ministros de Estados da Casa Militar e da Casa Civil. Na Gestão dos Assuntos Públicos, sobretudo, na Execução do Orçamento Geral de Estado, é a Superestrutura Presidencial, acima referida, que executa as Decisões tomadas pelo PR, baixando as Diretrizes aos Ministérios, à Assembleia Nacional, aos Tribunais Superiores, ao Banco Nacional, às Instituições e às Empresas Públicas. Sem medo de errar, como Deputado, gostaria de afirmar que, o Poder Legislativo (Assembleia Nacional) é subordinado ao Poder Executivo, este último é que toma todas as decisões importantes e impõe a sua vontade política.


No contexto angolano, do Poder Unipessoal, o Presidente da República é o «único gestor» do Orçamento Geral do Estado, que «ordena» o Banco Nacional para proceder à execução de operações orçamentais através do Ministério das Finanças. Com efeito, sem o Despacho do PR, em termos de Decretos Presidenciais, o BNA não pode autorizar uma operação monetária, de grande vulto, que implica a movimentação de avultadas somas de dinheiros, como aconteceu com o caso do Major Pedro Lussati. Além disso, essa massa monetária (do Pedro Lussati) é da origem do «Saco Azul» da Casa Militar.


Recordo-me que, durante o Consulado do Presidente José Eduardo dos Santos o dinheiro era arrecadado nos Depósitos do Palácio Presidencial do Futungo de Belas e noutros lugares discretos controlados pela Casa Militar. Na altura do pagamento de salários da Função Pública as Malas e as Caixas de dinheiros eram transportadas ao Banco Nacional de Angola. A Assembleia Nacional tinha um pequeno Balcão dentro do Edifício da antiga Assembleia Nacional, onde os Deputados, em fila, na ordem alfabética, eram chamados um por um para assinar uma folha de pagamento e receber o seu salário. Mesmo os mais velhos, como Lúcio Lara, sem formalidade, ficavam na bicha, com a sua pasta no sovaco, para levantar a sua migalha. Era incrível!


Durante as quadras festivas do Natal e do Ano Novo, circulavam os «Sacos Azuis» e os Cabazes do Natal, que eram distribuídos largamente em todas as Repartições Públicas, a vários níveis, com qualidades diversas de acordo com a classificação feita pela Cidade Alta. Cada Gestor Público, inclusive as Empresas Públicas e os Governadores Provinciais, faziam importações de Cabazes de Natal a partir do Exterior, sobretudo de Portugal e da Espanha. As origens das Verbas e os volumes dos Capitais expendidos para essas megas operações de esbanjamentos de recursos públicos eram mantidos em segredo, tal igual como está acontecer agora com o PIIM.


Como está referenciado atrás, a massa monetária não estava arrecadada nos Depósitos do Banco Nacional de Angola, mas sim, no Futungo de Belas e noutros sítios discretos sob a custódia da Casa Militar. Os Responsáveis da Casa Militar e os seus Fiéis dos Depósitos aproveitavam da vulnerabilidade do sistema para apoderar-se de avultadas somas de dinheiros, sem que o Presidente da República tivesse o controlo adequado dos saques desenfreados. Essa prática, que tornara generalizada, estava enquadrada na «teoria da acumulação primitiva de capitais», que tinha como fim estratégico erguer uma classe poderosa de capitalistas, capaz de garantir o controlo e a manutenção do poder político. Este é o «CERNE» da Doutrina do MPLA, que continua válida até hoje.


Sendo uma Doutrina do Partido, dentro do MPLA, ninguém tinha ousadia de denunciar ou condenar a pilhagem dos Cofres do Estado. Naquela época, a corrupção alastrou-se e atingiu todos os Órgãos de Soberania do Estado, inclusive a Alta Hierarquia das Forças Armadas e da Polícia Nacional. Neste respeito, somente os Partidos da Oposição, algumas Igrejas e alguns Sectores da Sociedade Civil tiveram a coragem de abordar e condenar o fenómeno da corrupção, em todas as suas vertentes.


Lembro-me que, o Deputado Celestino Kapapelo (Jurista), do Grupo Parlamentar da UNITA, em 1998, em plena Sessão Plenária, denunciou publicamente o “Saco Azul,” dizendo: “O Presidente José Eduardo dos Santos está a governar o país como um soba da aldeia, guardar o dinheiro em baixo da cama, distribuir ilicitamente os sacos azuis e esbanjar o erário público, enquanto o povo vive na miséria.” Fim de citação.


A crítica feita pelo Doutor Celestino Kapapelo, homem lucido, convicto e ousado, teve uma represália instantânea. Ele próprio teve que abandonar Luanda clandestinamente. As viaturas protocolares atribuídas aos Deputados do Grupo Parlamentar da UNITA foram retiradas de imediato. Verificou-se raptos e assassinatos de alguns Deputados da UNITA. Outros foram detidos e enclausurados. Muitos quadros da UNITA tiveram que abandonar Luanda clandestinamente. Os «Sacos Azuis» e os Cabazes de Natal deixaram de circular. Todavia, o Grupo Parlamentar do MPLA continuou a receber normalmente as suas benesses, inclusive a entrega de viaturas particulares, feitas a partir da Sede do Partido, no Kremlin.


A questão fundamental do “Lussati-gate” consiste no facto de isso ter lugar dentro do Organismo da Presidência da República, isto é, da Casa Militar. Além disso, esse saque de avultadas somas de dinheiros acontece «quatro anos» após da saída do Poder do Presidente José Eduardo dos Santos, e substituído no lugar pelo Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço. Como é sabido, o «eixo principal» da Governação do Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço tem sido o combate à corrupção. Quem entende bem os meandros do Poder, sabe que, a Casa Militar é o Organismo Estratégico, que apoia o PR, responsabiliza-se pelo bom funcionamento da Presidência; viabiliza a boa relação entre o PR e os outros Órgãos de Soberania do Estado; e vela pela Segurança do Estado em estreita ligação com as Forças Armadas, com a Polícia e com os Serviços de Inteligências Interna e Externa.


Nesta óptica, a prioridade do PR durante os quatro anos em funções teria sido de arrumar bem a sua Casa, com vista a garantir a integridade física e moral do Estado Angolano. Na verdade, o escândalo do Pedro Lussati revela a dimensão e a amplitude da vulnerabilidade dos Órgãos de Soberania do nosso País. Aliás, Angola é tida como um dos Países da África Subsariana que está mais infiltrada e mais dominada pelo terrorismo internacional, cuja implantação no sector comercial angolano é esmagadora. Logo, o roubo de tanto dinheiro dos Cofres do Estado por Major Pedro Lussati e os outros fica difícil excluir totalmente a hipótese da sua ligação tanto ao branqueamento de capitais, quanto ao financiamento do terrorismo internacional.


Para finalizar o meu raciocínio, interessa-me dizer que, a corrupção em Angola está intrinsecamente ligada à Doutrina do Poder político, económico e financeiro. Ela é parte do Poder político, e é um Instrumento poderoso da manutenção do Poder político. Portanto, a sua erradicação exigirá a transformação profunda do sistema político angolano – de Partido-Estado. Isso deverá passar necessariamente pela «Alternância» do Poder, para que surja uma nova Doutrina, um novo Conceito de Estado, uma nova Superestrutura, uma nova Organização do Estado, um novo Método de Governação, um Equilíbrio do Poder, e uma nova Classe de Governantes e de Gestores Públicos, que sejam honestos e competentes. Essa nova Classe de Governantes e de Gestores Públicos deverá ter a cultura democrática, com competências técnicas, com uma visão global do mundo, capazes de aproveitar bem os recursos naturais (em abundancia) do nosso país a fim de criar a riqueza e combater a fome, a pobreza, o analfabetismo e subdesenvolvimento, que são os quatro maiores desafios do Continente Africano.


Por isso, as medidas cosméticas, isoladas e seletivas, de combate à corrupção, que não assentam num programa bem estruturado, numa estratégia abrangente, numa Justiça independente, numa cultura democrática e num governo competente e íntegro, só irão agravar a situação política, económica e social do país, com o perigo de viabilizar a estratégia do terrorismo internacional. Logo, nas condições actuais, em que não existe um programa sólido e transparente, havendo evidências materiais do agravamento da corrupção a nível dos Órgãos da Presidência, a política da unanimidade e da solidariedade é prejudicial, e só vai-nos induzir na mesma armadilha do Regime anterior do Presidente José Eduardo dos Santos, que acabou por mergulhar o país em ruina e na desgraça. Será que é isso que se pretende fazer outra vez? Aprofundar o abismo em que o país já se encontra mergulhado?


Luanda, 08 de Junho de 2021.