Luanda - Nos finais do sec. XIX e início do século XX, as Missões Evangélicas implantaram-se pelo interior de Angola, e desempenharam um papel bastante valioso no despertar da consciência nacionalista e da autodeterminação do povo angolano.

Fonte: Club-k.net


Não foi por acaso que as Igrejas Evangélicas, vindas de Canadá e dos Estados Unidos da América, ao chegarem a Angola, instalaram-se no interior do país, na chamada Angola profunda. Era lá, na Angola profunda, onde as populações sofriam mais, e não tinham recursos nem conhecimentos para mudarem de vida. Foi o trabalho das Igrejas, muitas vezes de forma velada ou mesmo clandestina, que influenciou vários nacionalistas angolanos, “empurrando-os” para a luta de libertação. De entre os vários homens nobres e de estirpe rara que se bateram pela independência, destaco os líderes dos três movimentos de libertação: Holden Roberto, Agostinho Neto e Jonas Savimbi. Todos eles, de forma directa ou indirecta, foram fruto do trabalho das Igrejas em Angola.


É neste quadro que sou levado a fazer uma homenagem ao pastor “revolucionário”, Marcolino Nhani Tchindjolondjolo, meu avô materno, de feliz memória, a quem, depois de conhecer melhor a sua história, passei a chamá-lo de “o pastor Revú”.


Depois dos missionários saídos da Missão de Elende(Ukuma/Huambo), terem escalado a regedoria de Kangombe (Kwanza-Sul) para evangelização, solicitaram ao Soba Savity, pai do pastor Marcolino Nhani Tchindjolondjolo, para levarem alguns meninos da aldeia para a Missão de Elende, e o pastor Revú foi um desses meninos seleccionados.


Terminados os estudos básicos na Missão de Elende, nos anos 30, partiu para a Missão do Ndondi (Bela-Vista/Katchiungo, no Huambo) para frequentar o curso de pastor. Assim que concluiu o curso, foi enviado para fundar o Centro Evangélico de Kangombe, Kassongue, sua terra natal. Naquela altura, o pastor principal da Missão de Elende era o pastor Paulino Ngonga Liahuka, tio da minha saudosa avó Benita Yopilu (Pires), esposa do pastor Marcolino Nhani Tchindjolondjolo.


Desde muito cedo, o pastor Revú, envolveu-se de corpo e alma na consciencialização das populações sob sua jurisdição. Organizou e dinamizou a igreja de Kangombe, tendo mobilizado e motivado vários jovens a irem estudar para a missão de Elende, e, apenas, regressavam no período de férias. Apesar da distância, os estudantes deslocavam-se a pé, e tinham de pernoitar pelo caminho, em aldeias que se encontravam ao longo do percurso. – Mas Todo sacrifício era pouco, quando o que estava em causa era a formação acadêmica. Não havia outra forma de se livrar da pobreza e do obscurantismo sem os estudos. O pastor Marcolino Nhani tinha percebido muito bem isso, e criou um dinamismo muito grande no Centro Evangélico de Kangombe, com pessoas a se movimentarem, de um lado para o outro, em busca do conhecimento, mesmo se para tal fosse necessário percorrer vários quilômetros. Esse movimento criado em Kangombe fez com que a PIDE (Polícia Política Portuguesa) passasse a olhar para o pastor Marcolino Nhani com desconfiança, e, por conseguinte, começaram a vigiá-lo.


Tendo-se apercebido da atitude da PIDE, a primeira coisa que o pastor Revú fez, foi despachar a família para Benguela, no intuito de os filhos, aí, prosseguirem com os estudos, enquanto ele cuidava do seu rebanho no Centro Evangélico de Kangombe. Vivia um pouco dividido entre a Missão de Elende, que era a sede da Igreja; Benguela, onde estava a família; e Kangombe, onde dirigia a sua Igreja.


Como nos finais dos anos 50, vários países africanos começavam a alcançar as suas independências, e a PIDE, receando de possíveis intenções de manifestações de autodeterminação dos angolanos, reforçou o sistema de controlo dos lideres comunitários, pastores e professores de posto. Naquela altura, cada um na sua área fazia o que podia para dar instrução aos autóctones. A título de exemplo, e sobejamente conhecido no Centro de Angola pela sua nobre obra, foi o professor Daniel Ekundi. Ele fundou uma das primeiras escolas privadas em Angola, na aldeia de Manico (Tchiumbu/Bailundo), nos anos 40. Outrossim, o professor Tavares Hungulu Jamba, pai do saudoso ilustre Dr. Jaka Jamba, fundou uma escola na área de Katchilengue (Bela-Vista/Katchiungo, no Huambo). Essa dinâmica, levada a cabo por nacionalistas daquele tempo, despertou a atenção da PIDE. É assim que o cerco ao pastor Revú começou a apertar-se cada vez mais, numa fase em que muitos professores, pastores e outros líderes comunitários, das áreas de Bailundo, Alto-Hama, Balombo e Kassongue, tinham sido presos e deportados. Os operativos da PIDE acabavam de matar um pastor muito influente naquela zona: o pastor Gaspar Kakunda Vanhãle, pai do meu tio Benjamim Kakunda, primo e amigo do meu pai Bernardo Prata.


Essa atitude Intimidatória das autoridades coloniais, com prisões arbitrárias e mortes pelo meio, fez com que as populações daquela região vivessem aterrorizadas, e o pastor Revú, para tentar se proteger da PIDE, criou uma forma de protecção e de segurança muito simples, mas que, provavelmente, lhe salvou a vida e poupou-lhe da prisão. – Sempre que chegasse de viagem, a primeira coisa que fazia, antes de ir à sua casa, era passar pela casa da sua irmã, a avó Nené, que vivia num bairro vizinho, e recebia o “mujimbo” (ponto de situação).


Foi o que exactamente aconteceu: ele saiu de Benguela de comboio, passou pelo Ukuma e foi pedir ao seu compadre Vitorino Solunga, que naquela altura já tinha carro próprio, para lhe levar a ele e o grupo de estudantes que iriam passar as férias em Kangombe. E assim partiram.


Chegados a Kangombe, pararam na Igreja para deixarem os estudantes, uma vez que a Igreja era o ponto de partida e de chegada dos estudantes.
Esse compasso de espera ditou a sua salvação. Deu para a sua irmã, a avó Nené, que os viu passar, fosse ao encontro deles para informar que a casa do pastor estava cercada pela PIDE já há alguns dias.


A PIDE ao aperceber-se de que o pastor havia chegado a Kangombe, mas não, à sua casa, interrogou os estudantes... e aperceberam-se de que a avó Nené foi quem tinha alertado o pastor. – Pela atitude, a avó Nené sofreu na pele e carne as conseqüências. De tanta pancada, ficou com cicatrizes muito profundas no seu corpo.


O pastor Revú e o seu compadre Solunga, padrinho dos meus tios Pires e Tito Marcolino, regressaram para Ukuma. E o avô Solunga, que era o maior produtor de abacaxi na região e proprietário de várias terras, quis arranjar uma área segura nas matas de Elende para proteger o seu compadre até que se esclarecesse melhor a situação. Mas notaram que a PIDE já andava com um jeep a patrulhar a área. Então, o pastor Revú decidiu refugiar-se em Benguela. Ele dizia: com essa perseguição toda, esses indivíduos vão acabar por me apanhar! Eles têm muitos informantes por aí. Se for para ser apanhado ou morto, prefiro morrer ao lado da minha esposa e dos meus filhos, em Benguela.


Já em Benguela, o pastor Revú vivia escondido. Não podia sair de casa; apenas, às noites, ficava no quintal para apanhar vento e puxava água da cacimba para exercitar um pouco o corpo. Era assim que ele passava os dias; as semanas; os meses..., até que, um dia desses, foram surpreendidos por uma patrulha da PIDE, que queria fazer buscas em casa da avó Benita. – Dizia o chefe da patrulha: Temos informações de que, durante as noites, um senhor, puxa água da cacimba.


A minha avó, com toda a calma do mundo, disse ao homenzinho que quem tirava água era o seu filho mais velho, Pedro Marcolino Nhani (a quem chamávamos carinhosamente de General Nhani, de feliz memória). O meu filho é alto e forte, provavelmente, confundiram-no com outra pessoa. O PIDE, não totalmente convencido com a explicação, ordenou aos seus capangas para iniciarem a operação de busca, e, imediatamente, os seus sipaios entraram em acção: passaram por todos os compartimentos; espreitaram por baixo das camas e das mesas; puxaram armários e levantaram cortinas; – mas nada! O pastor Revú, por milagre, não foi apanhado!


Esse episódio de revistar a casa fez com que se pensasse numa outra forma de se livrar da PIDE. Foi então que o pastor Revú mandou a minha avó enviar um telegrama para o seu sobrinho Aguiar Gonçalves que se encontrava a trabalhar na estação do CFB em Dilolo, fronteira com o Congo Leopold Ville, actual Congo/Kinshasa. Foi uma mensagem codificada, dizia: o teu pai está doente. Vem! Quando o sobrinho chegou, orquestraram a fuga para o exílio. Usaram uma identidade falsa para comprar o bilhete de passagem para Dilolo na estação do CFB da Catombela, e, para o efeito, contaram com a colaboração de um funcionário da Administração da Catombela, o senhor Alfredo Mariano Kaputo, pai da minha prima Clarice Kaputo.


No dia da partida, 4 de Outubro de 1962, pelas 19h30min, o pastor Marcolino Nhani Tchindjolondjolo vestido de um sobretudo e um chapéu redondo, para não ser reconhecido, saiu de casa e foi apanhar o comboio na passagem de nível do Cotel, em Benguela; e os filhos dirigiram-se ao bairro ao lado, por onde passaria o comboio Mala. Assim que viram o comboio aproximar-se, ficaram atentos para se despedirem do pai. O avô, que andava na carruagem da classe N, a carruagem dos indígenas, pôs-se à janela do comboio e acenou com as duas mãos para os filhos. Foi um aceno com todas as forças. Afinal, era, na verdade, O ÚLTIMO ADEUS.


Ninguém mais se conteve, os filhos abraçaram-se e choraram amargamente. Sabiam que o pai estava a partir sem esperança de regressar. – Foi um dia bastante triste! E nenhum ser humano desejaria que mais alguém passasse por tal experiência. – Era muita dor!


O pastor Revú partiu para nunca mais regressar. Morreu no exílio quando faltavam poucos anos para a independência que ele próprio também ajudou a conquistar.


O meu maior respeito e reconhecimento a todos aqueles que, por Angola, deram as suas vidas!


Luanda, 4 de Junho de 2021.
Gerson Prata