Luanda - O processo de restauração autoritária teve o seu happy end e o Príncipe estava visivelmente satisfeito quando da cerimonia de consagração da sua vitória contra a Nação. Neste processo, o Tribunal Constitucional foi chamado a fazer a “verificação preventiva da constitucionalidade”, da constituição outorgada pelo príncipe e foi pura e simplesmente ignorado, flagrantemente desrespeitado.


Fonte: Club-k.net


José Eduardo dos Santos, ao brindar a nomeação de um novo gabinete e, sobretudo, de um vice-presidente, brindou o desprezo que tem por todos nós e pela ordem que ele próprio instituiu. Repetiu a sua receita de violação reiterada da Constituição. É que apesar do acórdão 111, do TC, dizer, de forma lapidar que o PR não podia “nomear” um vice-presidente, devendo este ser eleito, ele nomeou quem quis e bem entendeu, escorado num artifício do chico-espertismo nacional.


O acórdão 111, no seu conjunto, resulta na “legitimação” jurisprudencial do autoritarismo contra a democratização do país. E, neste sentido, não constitui novidade ou surpresa porque os juízes-conselheiros, apesar das suas constatações explicitadas nesse acórdão, não tiveram a firmeza de ir até ao fim das suas convicções mais profundas e da sua consciência constitucional, face as pretensões autoritárias do príncipe que são evidentemente contra a ordem do Estado democrático de direito que é a utopia colectiva dos angolanos e estava plasmada na Lei Constitucional, de 1992, que agora desaparece com esta actual lei de autorização.


Mas, o acórdão 111 dá mostras de que não há uma rendição pura e simples dos juízes-conselheiros às pretensões do Príncipe, pois não deixa de ser interessante verificar que, no clima de bajulação triunfalista, desse happy end, tenha havido um voto contra e que o Tribunal Constitucional reconheça que esta “constituição” representa um “progresso de caranguejo”, como diria Cordeiro da Matta (1857-1894), para significar que andamos para trás. O acórdão 111 constata que “este sistema de Governo que apelidou de Presidencialista-Parlamentar (…) alarga consideravelmente as competências do Presidente da República”, o que quer dizer que ao privilegiar o órgão executivo em desfavor do legislativo, o órgão individual PR em desfavor dos órgãos colegiais; o Governo e o Conselho de Ministros, ao preferir a concentração e centralização, em vez da desconcentração e descentralização do poder - vai no sentido contrário ao da vontade democrática nacional. O TC também desautorizou um dos argumentos dos teóricos da ditadura, para defender a celebre proposta C, que era o de que a “eleição dois em uma” garantia a “estabilidade extraordinária” na governabilidade do país. Ora o TC veio dar razão aqueles que consideraram isto um argumento biombo para esconder outras motivações, na medida que, no seu acórdão 111, ao diferenciar a questão da “legitimidade” da da “governabilidade”, diz que “o Presidente eleito com uma maioria relativa terá de fazer entendimentos no Parlamento para nele fazer passar o Orçamento Geral do Estado e outros diplomas legais”.


Mais ainda, o TC, nesse Acórdão 111, insta a Assembleia Nacional a alterar a “constituição” na parte referente aos meios de provimento do lugar de vice-presidente porque este é tido como coadjutor do PR e, por isto, para além de o auxiliar, o substitui, com plenos poderes e até ao fim do mandato, em caso de impedimento definitivo do PR. Neste caso, o TC foi lapidar ao dizer que havia uma violação dos limites materiais de revisão, estabelecidos no artigo 159°, alínea d), da Lei Constitucional porque o cargo de vice-presidente só pode ser provido por eleição dos cidadãos e nunca por nomeação do PR.


E ao dizer isto, de forma absolutamente clara, o TC quis dizer também implicitamente que, à luz da Constituição, nenhum cidadão pode ser PR sem que seja pelo voto popular. Tanto é assim que outra alteração requerida pelo acórdão, ao texto apresentado para verificação preventiva, é referente ao asseguramento da identificação no boletim de voto do candidato a Presidente da República, para que sejam, diz o acórdão 111, “devidamente salvaguardados princípios como o da imediaticidade da eleição do Presidente da República e o da certeza jurídica do eleitor, ambos princípios de um Estado de Direito”.

 

Ora, partindo do principio aceite e reconhecido, no interior da Constituição de que a legitimidade democrática não é uma essência mas uma realidade fáctico-jurídica, cujo substrato social se traduz no exercício do voto livre dos cidadãos que é limitada formal, material e temporalmente, o que importava saber - sem rebuços nem subserviências à proclama vontade do Príncipe – era qual é o pensamento do legislador constitucional (de 1992 ou de 2010) sobre os limites, em particular temporais, da legitimidade do Presidente da República não eleito.


Parece não haver dúvidas para ninguém que a Constituição diz claramente que o Presidente da República não eleito (ou de gestão), em homenagem ao princípio da continuidade do poder (do não vazio do poder), tem uma legitimidade que não pode ultrapassar os quatro meses, numa situação de restrição de poderes, em que o objecto principal do seu núcleo de poderes é precisamente convocar a eleição de um novo PR.


Por isto, em circunstância nenhuma, um PR não eleito pode cumprir um mandato por força de uma disposição transitória, como se esta “disposição normativa provisória, contingente e de eficácia temporal limitada” (artigo 241º), em vez de um dispositivo instrumental concorrente para o bom funcionamento do sistema, através da compatibilização circunstancial de interesses, se constituísse num meio de subversão desse sistema e de alienação da soberania popular, ao ser entendida como fonte de legitimidade superior ou comparável (e não subordinada) à legitimidade do voto dos cidadãos.


¬Este entendimento é reforçado pelo que diz o texto constitucional em relação ao caso de impedimento definitivo simultâneo ou sucessivo do PR e do vice-Presidente. O artigo 132º, nº 3 diz que “em caso de impedimento definitivo simultâneo do Presidente da República e do Vice-Presidente, o Presidente da Assembleia Nacional assume as funções de Presidente da República até à realização de novas eleições gerais, que devem ter lugar no prazo de cento e vinte dias contados a partir da verificação do impedimento”.


Em fim, o que se pretende dizer é que esta Constituição não poderia ser aplicada sem que desse lugar à eleição do PR e do vice-presidente porque este, como já o dissemos, na sua definição sistémica, é tido não apenas como “auxiliar” do PR mas também como seu coadjutor, isto é, aquele que para além do auxiliar no exercício das suas funções, o substitui em todos os seus impedimentos, incluindo o impedimento definitivo, assumindo a plenitude do mandato presidencial.


É claro que esta eleição, no sistema actual, levaria à nova eleição dos deputados. Ora, se JES acha “justo que o Mpla cumpra até ao fim o seu mandato”, não podia senão convocar as eleição do presidente e do vice-presidente em separado, repondo desta maneira a justiça que é negada aos cidadãos, não somente em relação ao sobredito princípio da “certeza jurídica do eleitor” mas sobretudo à liberdade de escolha. E é precisamente em homenagem à esta liberdade de escolha que o acórdão chama de “plena consciência” de escolha que o TC deveria ter chumbado as chamadas “eleições gerais” (dois em um) e ter reafirmado o postulado no artigo 159º da Lei Constitucional, de 1992 e consagrado a eleição própria baseada no sufrágio universal, directo e secreto”. Aliás, é neste momento que o acórdão mostra que os juízes-conselheiros estavam um tanto quanto confusos, e não assumiram de todo em todo a mudança do arquétipo de governação, quando consideraram que nas ditas “eleições gerais” os cidadãos vão “escolher não apenas um partido para os governar mas também um Presidente da República”. Ora, futuramente, os cidadãos não vão literalmente escolher nenhum partido para os governar, na medida que a função executiva passa a ser da exclusiva competência do PR, o que torna ainda mais importante a sua eleição e a necessidade dessa consciência ou liberdade de escolha.


Ao admitirmos a possibilidade de um voto conjunto, sem restringir a liberdade de escolha, o boletim de voto tem que conter também a possibilidade de uma escolha divergente. O que nos reconduz a primeira forma, consagrada pela Lei Constitucional, de 1992. Não sendo assim, está-se a elidir objectivamente o “sufrágio universal, directo e secreto” para uma das duas eleições (Presidencial ou legislativas) em flagrante violação dos limites matérias de revisão, estabelecidos no artigo 159º, da Lei Constitucional da República deposta.