Paris - Bernardo da Gallo, padre capuchinho italiano, um dos responsáveis do assassinato de Kimpa-a-Vita, ocorrido em Evululu em 02 de julho de 1706, é o fi-nganga mais famoso da história da guerra civil do Reino do Kongo. Fi é o prefixo que se coloca em frente a uma palavra kikongo para a diminuir ao nível mais baixo e revelar a sua pequenez. Muitas vezes, é um prefixo depreciativo porque é um pouco zombeteiro e pode sinalizar provocação. Entre o povo Kongo, Nganga é uma pessoa escolhida pelos ancestrais e pelo Universo para ser o intermediário entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e entre o mundo visível e o mundo invisível. Ele é, portanto, o intercessor necessário dos Bakongo com os seus ancestrais e o seu Deus; o Nzambi-a-Mpungu, Nzambi-a- Kalunga, tem a capacidade de interpretar o bem e o mal. Assim, eles traduziram na sua língua “padre” por “nganga”. E, posteriormente, quando a Igreja Católica optou por demonizar os tradicionais “nganga”, como ainda hoje, acusando-os de feitiçaria, os padres foram chamados de “nganga-za-nzambi” para os distinguir, visto que já se diziam intermediários entre o seu deus e os seus crentes.

Fonte: Club-k.net

Se os partidários do antonianismo, movimento fundado pela profetisa Kimpa-a-Vita para lutar contra a colonização e os deuses brancos impostos pelos Brancos, apelidaram esse padre católico de fi-nganga, é porque ele não esteve à altura do seu título, tal como a profetisa que brilhantemente despertou a esperança do povo que esperava a restauração e regeneração do Kongo. Ela humilhou o padre ao seduzir o povo e uma parte dos nobres que abandonaram as igrejas e que aderiram ao seu movimento, que representava para eles um novo fôlego e a salvação da sua terra e dos Negros. Foi então com este fervor popular que Kimpa-a-Vita pisou o solo de Mbanza-a-Kongo, com triunfo e fanfarra, em novembro de 1704 para restaurar a capital e o reino, pelo menos simbolicamente, após quase 40 anos de abandono. Bernardo da Gallo é, portanto, um fi-nganga, padrezinho, cuja impostura foi demonstrada, embora tenha conseguido manobrar para manipular Pedro IV, um dos pretendentes ao trono, que acabou entregando Kimpa -a-Vita a morte em troca de poder.


Portanto, não data de hoje. Sempre se manipulou os africanos da mesma maneira, ontem e hoje, e há muito tempo se faz da África uma Fi-África. Por exemplo, em 2019, Afro-Convenientes, associados ao Instituto Camões, criaram um prémio para galardoar a literatura angolana, o Prémio de Literatura dstangola/Camões, cujo júri e vencedores são até hoje essencialmente brancos. Mas, ao mesmo tempo, o que podemos realmente esperar do Instituto Camões e dos nossos irmãos brancos senão o SAMO (Same Old Shit), como assinava o Basquiat, que serve para manter a bola no campo do mesmo clube e continuar a hegemonia portuguesa em Angola? O que me surpreende é ver que ainda não é hora de denunciar este tipo de fi-prémios que perpetuam o espírito colonial! Porque é inadmissível que os prémios anunciados como angolanos, de um país predominantemente negro, premiem apenas os brancos e não reflictam a diversidade cultural e outras sonoridades do nosso país! Se o primeiro vencedor, Zetho Cunha, um branco, recebeu o seu prémio de um júri exclusivamente branco - Irene Guerra Marques, José Eduardo Agualusa, Carlos Ferreira -, porque não chamar este prémio de "Prémio de Literatura Branca de Angola"? E o segundo vencedor? Outro branco, Pepetela, quase com o mesmo júri porque se arranjou no último minuto um preto tapa-buracos, Manuel Muanza, porque o branco Agualusa, que tinha sido anunciado, já não podia participar! Visto que a Angola de Teresa Cohen e do Hotel Portugália resiste e não deixa de nos dizer, com escárnio, que em toda uma nova geração de escritores angolanos - e sobretudo Negros! - ninguém mostrou criatividade suficiente e, portanto, ninguém tem mérito, devemos repudiar este prémio racista que quer continuar a servir-nos o mesmo prato reaquecido para manter o espírito colonial! Porque isso significa que os outros angolanos são desprovidos de espírito, não sabem escrever, porque escrever para os nossos irmãos brancos e Assimilados é escrever como eles, com as suas palavras, as suas piadas e os seus imaginários que a maioria dos angolanos não partilha! Para eles, uma literatura que não tem a sua sensibilidade ou a sua assinatura não é literatura, é preciso encarnar o seu pequeno mundo para ter o direito de entrar nele - e encarnar significa imitá- los com dedicação e prosternar-se! Sabemos, portanto, que os critérios serão sempre deles, de acordo com os seus códigos, não os mudarão para se colocarem em competição e em perigo.


Chegou então a altura para os Negros lusófonos, além de Angola, criarem os seus próprios prémios! Chegou a hora de ocuparmos o ofício da escrita com as nossas sonoridades e os nossos imaginários para nos emanciparmos com insolência deste mundo apertado e insensível ao nosso mundo! É hora de trazer alguma diversidade para este pequeno lote de escritores monocromáticos que deixamos representar-nos em todo o mundo!


E, para terminar, vamos falar um pouco sobre a nossa fi-política, pois neste momento já começamos a sentir que vamos ter uma fi-campanha eleitoral como as anteriores. Embora o MPLA ainda não tenha começado a oferecer aos seus eleitores decalitros de vinho tinto, em bidões, em guisa de programa, a emoção já está a indicar que os seus irrecuperáveis ​​propagandistas continuarão a saracotear-se nos palcos com bacias cheias de mandioca na cabeça para mostrar que são amigos do povo e que simpatizam com o seu sofrimento! E a fi-oposição que temos no Parlamento ainda não consegue negociar as coisas mais básicas, como uma data específica para as autarquias ou a introdução na Constituição de círculos eleitorais para representar a diáspora. Mas em outros lugares, nos chamados países democráticos, são os deputados que se altercam, brigam e até se dão socos e cabeçadas para chegar a um acordo a fim de aprovar um projecto de lei. Em Angola, é um ministro que vai à tribuna da Assembleia do Povo, perante os deputados do Povo, anunciar em tom peremptório que não adianta criar círculos eleitorais para a diáspora! Sim, uma vez que a diáspora não pensa com estômago e conheceu as delícias da democracia - bem, o que ainda se chama democracia noutros locais ou pelo menos o que dela resta - é muito temida em Angola! Tudo isso nos mostra claramente que o nosso país tem um longo caminho a percorrer para deixar de ser uma Fi-Ngola.


Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é empresário.