Suiça - No desporto Angola foi sempre melhor do que nós. Só que nunca dei muita importância a isso porque sempre achei que fosse o reflexo duma definição defeituosa de prioridades (da parte deles). Há muitos anos fui convidado para dar uma palestra. Durante a minha estadia em Luanda, encontrei-me com um diplomata moze que me confessou estar orgulhoso por me ver lá. Disse-me que nos tempos da luta anti-colonial os angolanos tratavam os mozes com soberba porque se consideravam mais estudados do que eles. Ao que parece, isso sempre doeu aos mozes da Frelimo, por isso ver-me ali a falar para angolanos que me escutavam com atenção era uma coisa que lhe enchia de orgulho. Tomei nota mental para registar isso como a confirmação do meu palpite de que eles estavam a definir mal as suas prioridades.

Fonte: Facebook

É claro que a coisa não é assim tão linear. Deus pode ter sido injusto em muitas coisas, menos na distribuição proporcional de inteligência. Proporcionalmente, a Suíça ou os EUA não têm mais gente inteligente do que o Malawi ou o Congo. A diferença é sempre ao nível dos espaços que existem para que a inteligência se revele. Angola tem académicos de grande qualidade. Os anos de guerra não criaram condições para que essa intelectualidade evoluísse, talvez, com a mesma celeridade com que a moze evoluiu. Também a maior capacidade do MPLA de co-optar académicos pode ter contribuído para isso.


Em Moçambique, veio mais cedo a necessidade de os académicos se emanciparem do poder político porque as oportunidades e o tamanho dos benefícios não justificavam esse tipo de investimento. Isto são apenas hipóteses de trabalho. A questão do espaço que os intelectuais têm numa sociedade é muito importante para avaliar também a qualidade da política. Angola e Moçambique são casos de estudo muito interessantes (e intrigantes).



Há coisas, em Angola, que são surpreendentes no sentido positivo do termo. Uma, muito recente, foi a coragem que o Presidente da República teve de tentar sarar as feridas dum início doloroso da independência. Independentemente das insuficências do pedido de perdão pelo 27 de Maio, aquilo foi enorme. Como eu próprio insisto que devíamos fazer o mesmo em Moz o gesto angolano tocou-me profundamente. Ganhei respeito por João Lourenço que, confesso, não era assim tão grande quando vi os seus passos iniciais como Presidente.

A esse propósito recordo algo que disse numa entrevista que concedi ao Gaspar Micolo do Jornal de Angola. Eu disse: "[Não] acredito que Angola precise dum João Lourenço, se com isso nos referimos a um político voluntarista e mão forte. Com isto não quero desqualificar o que o vosso Presidente tem feito. Acho que foi o homem certo para suceder José Eduardo dos Santos e o que ele tem feito mostra também que ele tem consciência dos problemas do País e tem um interesse genuíno em os resolver. O problema é que muito do que ele tem feito revela o mesmo tipo de perplexidade que me parece característica dos nossos políticos também. Ele quer acabar com a corrupção, acha que o analfabetismo entrava o desenvolvimento e, ultimamente, decidiu embarcar numa campanha de moralização da sociedade".


E prossegui: "Em Moçambique, o nosso Presidente também fala assim, porque pensa que a corrupção é uma questão de ausência de valores morais. Na verdade, muita corrupção resulta do excesso de valores morais! É porque quero ajudar aos meus amigos, familiares, colegas partidários, etc. que pratico o nepotismo, aceito subornos, etc. O corrupto não é, necessariamente, um indivíduo imoral. É um indivíduo que tem um sentido moral desarticulado, talvez com aquilo que algumas pessoas pensam que devia ser. O problema de insistir na moralização da sociedade é de incorrer no risco de transformar o País numa teocracia. Excesso de moral produz despotismo como a gente vê no Irão, na Arábia Saudita e, porque não, no Brasil agora".


Não é preciso ser vidente para recear que as coisas fossem correr mal em Angola com esse tipo de discurso político. Os terríveis problemas que Angola enfrenta agora reflectem a fragilidade do voluntarismo político como filosofia de liderança política. João Lourenço lembrou-me um pouco Guebuza que também foi voluntarista e tinha visão, mas não teve quem traduzisse isso de forma sistemática numa agenda política que articulava a promoção de princípios para a protecção de valores.


O que impediu Guebuza de fazer isso é o mesmo, quer me parecer, que impede João Lourenço de fazer isso também. Em ambos os países, a dominação da política por um partido político com forte tradição autoritária e que durante anos cultivou a ideia de que o alinhamento ideológico era mais importante do que a evidência factual (estou a simplificar as coisas) nutriu na classe intelectual uma cultura de subserviência ao que os próprios intelectuais pensavam ser a versão oficial das coisas. Isto atrofiou a criatividade ao mesmo tempo que privou a política da ousadia do pensamento.


Esta cultura intelectual misturou-se de forma explosiva com o instinto de ambos os partidos de preservação do poder a todo o custo dentro duma convicção nutrida por narrativas ideológicas que colocavam todo o pensamento diferente como algo malévolo e contra a pátria. A entrada em cena dum reformador (em Moz, Guebuza e em Angola, Lourenço) só pode fruir se o líder tiver a audácia de libertar os intelectuais (e se estes também tiverem a ousadia, claro). Caso contrário, cai-se vítima da pobreza do discurso de desenvolvimento (que pensa por nós). A ênfase que João Lourenço colocou no combate à corrupção revelou que ele tinha chegado ao fim, digamos, da sua imaginação.


Acresce-se a isto algo que é característico da Frelimo e do MPLA (na sua condição de partidos com cultura política autoritária). Quando há mudança na liderança, o pior inimigo não é o adversário político da oposição. É todo aquele que serviu o chefe anterior. Em Moz nunca existiram “Chissanistas” ou “Guebuzistas” senão na mente torturada de quem faz a sua militância num ambiente de subserviência ao discurso do momento. Tenho a certeza que quando o próximo vier, daqui a 4 ou 9 anos, não haverá mais “Chissanistas”, nem “Guebuzistas”. Só “Nyusistas” nesse círculo irracional de asfixia do debate.


Tal como em Moz, o poder em Angola continua a ser protegido por uma falange “intelectual” que age contra o seu próprio interesse no sentido em que a sua intervenção é quase sempre para asfixiar a liberdade do pensamento. Em Angola, como em Moz, faz-se um investimento enorme para revelar a maldade no que um intelectual diz do que para ver o que se pode aproveitar nisso.


A questão até nem é de esperar que os intelectuais tenham a ambição de governar, um pouco no espírito da exortação platónica de reis-filósofos. Nenhum país precisa de governantes filósofos/intelectuais. A história mostra, aliás, que são muito poucos os países que prosperaram porque foram governados por intelectuais. De resto, a ambição dum intelectual de verdade nunca é de governar. É, sim, de influenciar, positivamente, os governantes.


E essa influência não se exerce necessariamente como assessor oficial dos governantes. Exerce-se no exercício da cidadania. Os países que prosperaram são os que tiveram governantes que souberam criar espaço para que as ideias dos intelectuais fossem ouvidas. Em Moz (e receio em Angola também), a tendência é quase sempre de ter governos que promovem o tipo de intelectuais que apostam em convencer os seus governantes que eles (os governantes) são os verdadeiros intelectuais. Escrevo este reparo ainda na ressaca das aspas que o nosso Presidente colocou na palavra estudiosos no seu discurso à nação. Aquilo foi, de certeza, obra de “intelectuais”.


Mas há uma razão muito importante por detrás da inveja que tenho de Angola. Vi uma entrevista recente do líder da UNITA, Adalberto Costa Júnior, à RTP África. Impressionou-me bastante a sua lucidez, o seu discurso bem estruturado e articulado, mas também a sua ponderação. Moz não tem o privilégio dum político da oposição desta qualidade. E isto não é porque não haja gente capaz nos vários partidos que temos.


É porque não existe espaço para ela, mas também porque a qualidade da política é baixa. Para Angola ter um político da oposição como aquele é porque, de alguma maneira, a sua política tem mais qualidade, apesar de tudo quanto disse anteriormente. Em Angola não pode haver voto imbecil porque, ao que tudo indica, parece existir alternativa. Li também que os partidos da oposição se juntaram para fazer frente ao MPLA, algo impensável em Moz hoje.


Como é da praxe para um simpatizante da Frelimo (e, por isso, também do MPLA) como eu sou, não nutro simpatia política pela UNITA e, ainda que possa parecer incoerente, espero que o MPLA ganhe as próximas eleições. Só que para isso acontecer o MPLA vai ter de criar condições para que a oposição seja mais forte ainda e, por via disso, aumente ainda mais as suas próprias hipóteses de ganhar.


É uma situação curiosa. É como se alguém tivesse que cavar a sua própria sepultura para não morrer. Mas se o Presidente Lourenço está de facto comprometido com a sua agenda de transformar a cultura política do seu país (e não acabar com a corrupção) não tem outro remédio senão se distanciar de todos aqueles que asfixiam a liberdade de pensamento e promovem a unanimidade. Ele vai ter de acarinhar ainda mais a oposição, pois a força desta será também a sua força.


Eu fico com vertigens quando vejo Angola com João Lourenço e Adalberto Costa, dum lado, e vejo Moz com Nyusi e Momade, doutro lado. E não é por falta de melhor em Moz. Nem é mesmo porque os nossos não prestem. Claro que prestam. Mas eles precisam mais duma massa crítica de qualidade do que parece ser o caso dos angolanos. E não a têm, não a nutrem ou simplesmente apostam no que de mais medíocre existe num País que se orgulha de ter produzido muita mente brilhante.


Ir à Angola para mim hoje é um martírio, já não é motivo de orgulho. Como posso brilhar quando os políticos que me governam não têm qualidade?