Luanda - A Lei de Revisão Constitucional, aprovada pelo plenário da Assembleia Nacional, a 22 de Junho de 2021 — e cujo processo se encontra no Tribunal Constitucional para a sua “fiscalização preventiva”, nos termos da Lei do Processo Constitucional (LPC) —, deve ser devolvida ao Parlamento para que este corrija as normas declaradas não conformes ao estabelecido em algumas das alíneas de pelo menos um dos artigos da Constituição da República de Angola (CRA).

*Nok Nogueira
Fonte: IstoEnoticia

A “decisão” consta do “projecto de memorando” a que o jornal !STO É NOTÍCIA teve acesso, elaborado pelo juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, Carlos Manuel dos Santos Teixeira, que, na qualidade de relator do processo n.º 894-D/2021, elenca um conjunto de normas propostas que colidem com questões que têm que ver com o chamado ‘limites materiais’ da Carta Magna do país, consagrados no seu artigo 236.º.

 

São ao todo quatro as alíneas em sede das quais algumas normas propostas pela Lei de Revisão Constitucional, de iniciativa do Presidente da República, são apreciadas, questionadas e declinadas pelo relator do processo, pelo facto de algumas das suas disposições atentarem contra a constitucionalidade de determinados princípios sobre os quais assentam as bases do Estado democrático de direito.

 

“Tudo visto e ponderado, acordam em plenário os juízes conselheiros do Tribunal Constitucional em: 1.º Declarar que a Lei de Revisão Constitucional, aprovada pela Assembleia Nacional, está conforme aos princípios e limites fixados nos artigos 233.º, 234.º, 235.º e 237.º da Constituição da República de Angola, com excepção dos supramencionados artigos…]”;

 

“2.º Devolver a Lei de Revisão Constitucional ora apreciada à Assembleia Nacional para que expurgue as normas ora declaradas não conformes ao estatuído nas alíneas c), e), h) e i) do artigo 236.º da CRA”, pode ler-se na versão de 23 de Julho de 2021 do “projecto de memorando”, elaborado pelo juiz Carlos Teixeira sobre a matéria.

 

As alíneas da Constituição a que faz a alusão o juiz relator com as quais colidem algumas normas propostas pela Lei de Revisão Constitucional estão relacionadas com a “forma republicana de governo”; com o “núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias”, com “o sufrágio universal, directo, secreto e periódico para a designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania e das autarquias locais” e com “a independência dos Tribunais”.

 

Muito embora reconheça não ter “competência para apreciar e decidir sobre o mérito ou demérito das opções e soluções políticas do legislador”, a redacção do “projecto de memorando” de Carlos Teixeira — que deverá, primeiro, merecer a apreciação do plenário daquele órgão e só depois seguir para a Assembleia Nacional em forma de Acórdão — explica que o acto de “fiscalização preventiva” se limita ao pronunciamento e deliberação sobre a validade do procedimento [de revisão proposta], a fim de se verificar a legitimidade constitucional da referida lei e evitar que ela seja promulgada incluindo inconstitucionalidades.

 

É assim que em matéria de “elegibilidades, inelegibilidades e impedimentos”, consagradas no Artigo 110.º da proposta de revisão, que define e separa as situações que constituem causa de inelegibilidades das situações que constituem impedimentos ao concurso ao cargo de Presidente da República, o relator aponta como normas inconstitucionais as alíneas d) e e) daquele articulado.

 

Para o juiz relator, as respectivas alíneas “espelham situações que constituem limitações aos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, desrespeitando, assim, a alínea e) do artigo 236.º da CRA, por violação do artigo 53.º, que prevê o acesso aos cargos públicos em condições de igualdade e liberdade”.

A Constituição da República, exemplifica o relator, “para o acesso a cargos electivos”, determina que “a lei apenas pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos”.

Carlos Teixeira encontra igualmente indicadores de inconstitucionalidade no n.º 1 do artigo 132.º da proposta de Lei de Revisão Constitucional. O referido articulado estabelece que, em caso de vacatura do cargo de Presidente da República, “as funções são assumidas pelo Vice-Presidente da República, até ao fim do mandato, não sendo este período considerado como cumprimento do mandato presidencial, para nenhum efeito”.

A norma ali prevista é questionada pelo juiz relator do Constitucional que recomenda a sua conformação com a Constituição em vigência, sob pena do supracitado artigo vir a constituir-se numa inconstitucionalidade.

Para sanar o problema, o juiz propõe que se opte por uma solução que defina, com a fixação de limites temporais, as condições ao abrigo das quais o Vice-Presidente que substitui definitivamente, em caso de vacatura, usufruiria da prerrogativa, se assim entendesse, para concorrer à eleição ou reeleição para um novo mandato como Presidente da República.

“Dito de outro modo, a formulação deste n.º 1 poderia, exemplificativamente, reflectir a ideia segundo a qual, em caso de vacatura do cargo de Presidente da República, sendo as funções assumidas pelo Vice-Presidente, o período de exercício contaria como um mandato, se tais funções fossem exercidas por [um] período superior a dois anos (ou outro) do mandato em curso do Presidente da República substituído”, frisa.

Carlos Teixeira encontra uma outra inconformidade no aditamento que se faz em relação à “substituição do Vice-Presidente da República”, consagrado no artigo 132.º da proposta de revisão, que estabelece as condições de substituição do Vice-Presidente da República, em caso de vacatura simultânea do cargo de Presidente da República e de Vice-Presidente da República. O documento proposto atribui esta competência ao órgão designante, que passa a ser o Partido e o Presidente.

Ou seja, a proposta de revisão constitucional, de iniciativa do Presidente da República, pretende que, em caso de vacatura simultânea das duas figuras cimeiras da lista submetida ao sufrágio universal, seja o partido vencedor das eleições a designar uma outra figura que não necessariamente o ‘n.º 3’ da lista vencedora das eleições.

“Fica aqui uma situação de incerteza, pois pode ser designado Presidente alguém que os eleitores nunca cogitaram. O mais correcto seria que fosse respeitada a ordem da lista dos deputados, pelo que haveria a certeza e a segurança jurídica sobre a sucessão desde o momento das eleições”, propõe o relator.

Uma outra norma que colide com as questões dos “limites materiais” da Constituição identificadas pelo juiz relator tem que ver com a introdução da terminologia ‘apropriação’ ao invés da expropriação em matéria de limites da propriedade privada. O juiz relator questiona se a referida terminologia é ou não sinónimo da expressão confisco.

Carlos Teixeira entende que a palavra apropriação, nos modos e nos termos nos quais se apresenta, é “manifestamente inconstitucional, em sede de tutela do direito à propriedade”, pelo que depreende que “não é possível conceber a terminologia apropriação fora do instituto da expropriação, concebido como procedimento com carácter ablatório, através do qual a administração pública adquire coactivamente os bens de propriedade privada”.

O juiz defende que “é necessário a integração da expressão ‘sem prejuízo de indemnização’, realçando que uma redacção respeitando a indemnização asseguraria “a reafirmação plena da titularidade privada evitando subordinação do interesse privado àquele colectivo, por um lado”. Por outro, “garante-se o interesse do Estado nos casos de enriquecimento ilícito”.

Carlos Teixeira propõe igualmente que se altere a alínea e) do artigo 110.º da proposta de revisão sob convicção de que viola o artigo 53.º da CRA, por barrar a candidaturas a cargos electivos a pessoas condenadas a penas correcionais, “como se de uma pena perpétua se tratasse”.

“Na ratio deste artigo 66.º da CRA, vemos que a Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que aprova o novo Código Penal, no seu artigo 133.º que tem como epígrafe ‘prazo de prescrição das penas’, trouxe-nos uma inovação que pretende efectivamente traduzir essa ideia de que as condenações não são perpétuas, e porque assim não o são, seria um contra-senso que um cidadão fosse obrigado a carregar por toda a sua vida, um registo de um crime, a muito cumprido”, contextualiza, indo mais longe:

“Assim, se lei infra-constitucional, para se conformar com a Constituição, introduziu uma norma que prevê um prazo para a prescrição da pena, parece-nos claramente inconstitucional, que a alínea e) do n.º 2 do artigo 110.º (norma reproduzida na alínea a) do artigo 145.º da presente LRC, e igualmente questionável), torne inelegível um cidadão condenado a pena de prisão superior a três anos, se à data do concurso ao cargo de Presidente, tiver já decorrido o prazo previsto na Lei Penal para prescrição de tal pena”.

Assim sendo, o juiz relator propõe a retirada da alínea e) do texto constitucional, por estar, segundo defende, em contradição com os artigos 53.º e 66.º da CRA. É certo que o referido artigo não é novo no texto constitucional, no entanto, ao ter sido actualizado nesta Lei de Revisão Constitucional, e a motivação para a presente revisão do texto constitucional é a de garantir a sua adequação ao actual contexto do país, é inadmissível a manutenção de normas que atentem contra os direitos liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos”.

*A abordagem sobre o Memorando continua nos artigos relacionados