Paris - “Não existe reconciliação sem verdade” – as palavras são de um dos muitos órfãos do 27 de Maio de 1977, Nelson do Nascimento. Em causa, o processo de reconciliação nacional em curso, marcado pelo pedido inédito de perdão do Presidente, em nome do Estado, às vítimas. Apesar de estar a decorrer o processo de entrega de certidões de óbito e de localização de valas comuns, os familiares das vítimas reclamam "a verdade histórica" sobre o que aconteceu.

Fonte: RFI

Em Angola, continua o processo de entrega de certidões de óbito e de localização de valas comuns para encontrar as vítimas dos conflitos decorridos entre a independência e o fim da guerra civil. Um dos episódios que mais marcou o país foi a repressão que se seguiu ao 27 de Maio de 1977 que deixou milhares de mortos e que foi justificada como uma resposta a uma alegada tentativa de golpe de Estado no seio do MPLA.

Nelson do Nascimento é um dos órfãos do 27 de Maio e reclama uma investigação sobre o que realmente aconteceu. Tinha 12 anos quando o pai desapareceu em Junho de 1977. Em 2003, escreveu um artigo no semanário “O Angolense” a romper publicamente o silêncio sobre os milhares de mortos que se seguiram ao 27 de Maio de 1977 em Angola.

O técnico informático, que hoje tem 57 anos e vive em Paris, faz parte da M27, uma associação de órfãos do 27 de Maio e continua a lutar para que não deixar que “o pai desapareça pior que um cão” e porque considera que a repressão da altura foi uma “mocada na coluna vertebral de Angola” que varreu toda uma geração.

Por isso, Nelson do Nascimento quer uma séria investigação sobre o que aconteceu e que os responsáveis sejam julgados porque acredita que sem verdade não pode haver reconciliação e adiar o problema ameaça uma paz duradoura em Angola.

A última vez que Nelson viu o pai foi em Junho de 1977. Joaquim Maria do Nascimento tinha 31 anos e era um militar dos Serviços de Segurança de Angola, a DISA. Foi levado por um blindado e nunca mais apareceu...

 

RFI: Quem era o seu pai, Joaquim Maria do Nascimento?

Nelson do Nascimento: O Joaquim Maria do Nascimento era um militar dos serviços de segurança de Angola que na altura se chamava DISA, Direcção de Informação e Segurança de Angola. A última vez que o vi foi pouco depois do 27 de Maio de 1977, precisamente um mês depois.

 

Que idade tinha quando o seu pai desapareceu?

Nessa altura eu tinha 12, ia fazer 13 no mesmo ano em Setembro.

 

Tem noção do que aconteceu?

Ah sim. Agora, muito recentemente, é que eu vou obtendo informação aos pedaços. Alguém me abordou uma vez na rua há uns anos, em Luanda, alguém que o conheceu, é uma pessoa que eu até me lembro de ter frequentado a nossa casa. Ele informou-me em que circunstâncias é que o meu pai desaparece.

Ele estava no quartel dele, chega um blindado, vai buscá-lo e inclusive os militares que eram subordinados dele ainda tentaram reagir. Pelo que me contaram, ainda houve troca de tiros mas como os outros vinham num blindado numa missão bastante concreta de apanhar pessoas como o meu pai, não houve como resistir e ele foi levado.

Essa pessoa chegou a dar-me nomes - não me interessa agora estar a dizer - mas chegou-me a dar o nome da pessoa que chefiou essa tropa que foi buscar o meu pai e que é uma pessoa que toda a Angola conhece.

 

Porque é que ele desaparece? Porque é que ele é uma das vítimas pós-27 de Maio de 1977?

Esses comandantes que foram mortos e que são o 'leitmotiv' para toda a purga que aconteceu, dentro desses comandantes havia uma pessoa chamada Eugénio Veríssimo da Costa, o comandante Nzagi, que é primo directo da minha madrasta, da esposa do meu pai, cujo desaparecimento foi, sabe-se lá porquê, atribuído ao meu pai.

Mas, eu já reparei que há outros casos similares de pessoas a quem foram atribuídas culpas pelo desaparecimento de um daqueles personagens, daqueles comandantes, por exemplo, o comandante Dangereux que é um dos que desaparece também. Nota-se que há assim uma espécie de ‘playbook’ que foi utilizado para justificar os desaparecimentos.

Porque é que eu estou a falar nisto? Porque o comandante Nzagi viveu connosco quando regressou do exílio, quando regressou da União Soviética onde fez a formação dele, de Baku. Quando ele regressa de Baku, o primeiro lugar onde ele vive é a nossa casa. Passados uns tempos casa-se e sai da nossa casa.

Inventaram que o meu pai é que era o culpado da morte do comandante Nzagi e isso é uma das mentiras inventadas para justificar a eliminação das pessoas. Porque foram muitos militares daquela faixa etária dele, e alguns mais novos, que foram eliminados. Foram aprisionados, torturados e mortos. Em que circunstâncias? Vamos tendo relatos bastante concretos, muito realistas e demasiado tangíveis e concretos para que se trate de invenção.

 

Concretamente, o que é que espera deste processo de reconciliação nacional?

Nós preferimos ser positivos e encarar com optimismo essa iniciativa corajosa do Presidente da República de abrir um dossier que ainda em véspera da intervenção dele as pessoas do seu próprio partido continuavam a negar a veracidade e gravidade. O que é muito mais grave: pessoas do CIVICOP ainda na véspera da intervenção do Presidente estavam a dizer que determinadas reivindicações vêm de gente de fora que não quer que haja paz em Angola. Felizmente, esse tipo de declaração foi desmentida pela intervenção do Presidente, foi desautorizada.

Precisamos que a verdade venha ao de cima. Por um lado, que os corpos sejam encontrados, identificados no contexto de uma ‘task force’ credível, internacional, com créditos firmados nesse tipo de actividade, neutra, e que conduza todo o trabalho de escavações das ossadas de todas as pessoas que desapareceram nessa altura.

Isso é um trabalho que não pode ser feito por simples coveiros de cemitérios, isso é um trabalho a ser feito por pessoas devidamente credenciadas porque é de cunho científico e forense. Isto por uma questão de respeito pela memória das pessoas desaparecidas, por respeito da dor dos órfãos e parentes...

 

A restituição das ossadas às famílias e a entrega das certidões de óbito é uma das coisas que quer ver realizadas. Mas há mais...

Sim. A informação sobre a verdade histórica do que realmente aconteceu: em que circunstâncias é que foram conduzidas todas aquelas execuções à escala industrial porque o que aconteceu foi uma coisa absolutamente dantesca. Não estamos a falar de 500 pessoas, nem 1.000, 2.000 ou 5.000. Não. Estamos a falar de entre 30.000 a 80.000!

 

A Amnistia Internacional falou em 30.000...

Exactamente. Tendo em conta a gravidade do que aconteceu e a duração dessas execuções - porque aquilo aconteceu ao longo de mais ou menos dois anos, de 77 a 79, altura em que finalmente o Presidente Agostinho Neto decide dissolver os serviços que andavam ali a executar as pessoas - é necessário fazer um trabalho de resgate da verdade histórica sobre o que de facto aconteceu. E não se pode falar em reconciliação sem que a verdade venha ao de cima. Não existe isso, reconciliação sem verdade. Não existe. Doa a quem doer.

 

Que verdade histórica procura?

Quando se fala em verdade histórica é, por um lado, em que circunstâncias é que foram executadas as pessoas e porquê; quem mandou executar e porquê; e, por outro lado, há um facto muito importante dentro do processo do 27 de Maio que é o álibi que foi usado ao longo desses anos todos para essa purga que é o assassinato dos comandantes cujos corpos foram encontrados parcialmente calcinados numa ambulância nas barrocas de Luanda.

Tendo em conta que esse facto, o assassinato desses comandantes, é que foi o ‘trigger’ para que o Presidente Agostinho Neto diga, nos media públicos, que não haverá perdão, que não vão perder tempo com julgamentos e que isso é que despoletou todas as matanças ao longo desses dois anos, tendo em conta esse facto, é muito mais importante ainda averiguar o que se passou porque ninguém acredita naquela versão que foi contada ao longo de 44 anos sobre a ‘pseudo-autoria’ da morte desses comandantes. O álibi foi que os fraccionistas, entre aspas, é que mataram esses comandantes, mas isso nunca foi investigado, nunca.

 

Mas a busca da verdade poderá coincidir com identificar responsáveis. Se calhar isso nunca poderá vir ao de cima politicamente...

Tem de vir ao de cima porque a Nação inteira, um grande número de famílias foi impactado pelo que aconteceu e impactado de maneira absolutamente avassaladora. Os angolanos deixaram de se comportar normalmente, noções como ética, moral, valores universais foram varridos do léxico, mas sobretudo, dos comportamentos porque as pessoas deixaram de poder lidar com a verdade das coisas, com a noção da liberdade...

 

Mas acredita que, de facto, algum dia, os responsáveis vão ser apontados, tendo em conta que entre eles há, provavelmente, altos representantes do MPLA que ainda estão vivos?

Eu quero acreditar que sim porque senão as palavras do Presidente serão palavras vãs. Depois, há toda uma Nação que está na expectativa.

 

Se, de facto, algum dia forem apontados os responsáveis, o que é que espera em termos de justiça?

Nós, os angolanos, Angola, fazemos parte do Planeta Terra. Temos noção entre o Bem e o Mal e, numa sociedade dos Homens, existem leis. Se não houver leis e não se respeitar determinadas normas consideradas universais, então não é diferente da vida dos animais selvagens que, mesmo assim, têm também as suas normas. O que se espera é que se faça cumprir a lei, a moral, enfim, aquilo que nos caracteriza como seres humanos.

 

Ou seja, que haja um Tribunal dos Direitos Humanos a julgar essas pessoas? Um Nuremberga, por exemplo?

Absolutamente, absolutamente. Não se trata de vinganças pessoais, não. É a tal questão da Verdade. Mesmo os algozes são humanos. Eu tenho a certeza que eles têm projectos para os filhos, netos. Para que haja uma paz duradoura em Angola, mesmo para lá das nossas vidas, mesmo quando nós não estivermos cá neste mundo, o ideal é que reparemos as coisas e não deixemos problemas dessa gravidade para gerações futuras. Portanto, é necessário limpar, é necessário preparar o futuro das novas gerações. Sem tratarmos da verdade não vamos a lado nenhum, é só adiar o problema.

 

O que é que representou para Angola o 27 de Maio de 1977?

É como dar uma mocada, uma valente mocada na coluna vertebral de alguém e deixa-lo tetraplégico para o resto dos seus dias. Foi o que aconteceu com Angola porque ali eliminou-se uma geração absolutamente dourada, uma geração de pessoas relativamente jovens, eram muito bem formadas, com altos padrões cívicos e um alto sentimento patriótico.

As pessoas não eram perfeitas, mas muitas delas tinham um sentido de Estado, tinham sonhos muito elevados, muito bonitos para o país deles. As pessoas estavam imbuídas num espírito altamente patriótico e positivo e, sobretudo, tinham planos muito bonitos para o país deles. Não é justo essa geração ser varrida do mapa como foi varrida.

 

Além disso, também tinham lutado pela libertação...

Exactamente. É uma grande vergonha. Justamente, uma das grandes vergonhas para o MPLA é que essa gente que eles eliminaram foram, simplesmente, os mais valorosos combatentes pela independência, nomeadamente um grande número de pessoas que pertenciam à chamada 1ª região político-militar.

Esta 1ª região era caracterizada por uma grande autonomia porque estavam isolados da gestão central do MPLA e tiveram de se desenrascar, literalmente. Eles organizaram-se e mobilizaram a população em Luanda para aderir ao MPLA e para receber o MPLA em Luanda. Os próprios elementos da direcção central do MPLA que estavam no exílio, quando regressaram do exílio não conseguiram esconder a surpresa.

 

Tem uma página no Facebook em memória do seu pai. Em 2003 publicou um artigo em que quebrou um pouco o silêncio e o tabu em torno deste tema em Angola. Isto é uma luta que já vem de há muito tempo...

De uma coisa eu tenho a certeza: pelo menos até aquela altura, eu acho que fui o único órfão que ousou publicar num media angolano um artigo sobre o 27 de Maio. Isso foi em 2003, num jornal independente chamado “O semanário Angolense.

Não se pode pura e simplesmente virar a página para pessoas que, ainda por cima, deixaram descendentes e mesmo que não tivessem deixado. É não deixar que o meu pai desapareça pior que um cão porque não é um marinheiro cujo barco desapareceu em alto mar, não é um passageiro de um avião que desapareceu dos radares e que nunca mais foi encontrado. Não. É uma pessoa que um dia foi trabalhar, depois não voltou mais e, como sabemos, vários milhares de outros tiveram o mesmo destino.

Assim que eu tive consciência, ainda relativamente jovem, do que tinha acontecido com o meu pai, eu sempre tentei ir inquirindo. Rapidamente me apercebi que era um assunto de que todo o mundo fugia. Lembro-me perfeitamente dos olhares da sociedade, das pessoas, da maneira como olhavam para mim, ao se aperceberem que eu era filho de quem era filho e, se calhar, pela minha relativa verticalidade porque eu acho que sempre dei um ar de pessoa absolutamente sem nenhuma vergonha em relação ao meu pai e com a minha dignidade no lugar. Dignidade e, até, um certo orgulho.

Na realidade, não é por acaso que se conseguiu abafar o assunto ao longo de 44 anos. Quarenta e quatro anos a abafar um tema que afectou tanta gente, que afectou pelo menos metade da população, imagine o dia-a-dia dos sobreviventes, dos órfãos.

Lembro-me dos olhares mal-intencionados e, enfim, quase tentando fazer com que te sintas desconfortável. Eu licenciei-me em Outubro de 1989 na universidade pública brasileira, regresso a Angola licenciado em Informática e, mesmo assim, tinha dificuldade em encontrar emprego em determinados lugares.

 

Por causa do seu nome?

Claro, por ser filho de quem eu era filho, de alguém que eles eliminaram. Uma das crueldades que caracteriza esse dossier é que o regime conseguiu fazer com que a memória das pessoas fosse vilipendiada ao longo dessas décadas.