Paris - O Augusto, a quem chamávamos de Gusto por afecto, tinha pele clara e teria sido Negro em qualquer parte do mundo excepto nas terras dos Negros colonizados. Foi furriel e viveu em vários países com os seus amos portugueses antes de chegar a Mbanza-a-Kongo, aos dezasseis anos, para continuar a sua missão como agente colonial, como "filho especial" de Portugal. “Eles são nossos filhos, pretos especiais”, era assim que o Salazar mentia aos cabo-verdianos para defender a sua participação na colonização e fabricar Augustos. O Augusto viveu sob a influência do pensamento dos Claridosos; na alienação que negava a africanidade e a Negritude de Césaire, que consideravam degradantes, preferiam a assimilação. Eles, portanto, rejeitaram a matriz africana de Cabo-Verde e ensinaram ao Gusto que a sua origem negra era vergonhosa, ignominiosa; e que eram cabo-verdianos e não africanos. Os Claridosos optaram por apagar a sua africanidade e afirmaram ser crioulos, com o incentivo de Portugal.

Fonte: Club-k.net

Após a Independência, o Gusto foi abandonado em Mbanza-a-Kongo, e não conseguiu compreender porque não tinha sido tratado com diligência e com o mesmo sentido de prioridade e generosidade que os Brancos que fugiram no avião que os nativos chamavam de Balikudo, porque ainda acreditava que ele não era Negro! Então viveu assim depois, isolado e fora da comunidade local, que ele nunca entendeu. A tia Carolina, irmã mais velha da minha mãe, conheceu-o no tempo colonial, ele ia regularmente à sua casa para deixar a roupa suja que os soldados portugueses mandavam lavar. Posteriormente, ela o salvou do abandono, deu-lhe abrigo e empregou-o nas suas lavras, tornando-se assim a sua única relação sólida na cidade. Ele tinha até vindo morar num dos anexos da casa dela e ela ofereceu-lhe depois uma casa maior, em outro bairro não muito longe dali, a menos de dez minutos a pé. Mas o Gusto não gostou desse bom gesto, zangou-se com a separação que ele não podia aceitar e zangou-se gravemente com a tia Carolina porque ele tinha o hábito de ser tratado como um "filho especial" pelos portugueses. E partiu para viver com um grupo de outros cabo-verdianos que também tinham sido abandonados pelos seus amos portugueses em Mbanza-a-Kongo e juntos afogavam as suas mágoas no álcool e continuaram a cultivar a cabo-verdianidade. O medo da liberdade fendeu o adulto Gusto que os portugueses mantiveram na infância.


Depois, o Filho Especial passou à clandestinidade na Angola Independente. Manteve conscientemente o espírito dos Claridosos; a África era um longínquo e medonho planeta para ele. Perdeu-se assim o Gusto na ambiguidade, não percebeu que era apenas da raça dos “mais próximos de Portugal” e que não era português no verdadeiro sentido do termo. Ficou espantado ao descobrir que não era um cidadão português de pleno direito, mas sim um cidadão português completamente distinto. Nunca soube que era o resultado de um estupro e que era esse impacto indelével que lembrava a escravatura e a colonização. Mas isso não fazia parte do seu quadro mental, não!, ele não sabia que a ode da Claridade só se expressava em preto na metrópole colonial, onde ela percebia com desagrado que não era nada branca! Lá, a presença do seu rosto no Rossio despertava tensões reveladoras e denunciadoras; a tensão do silêncio cheio de coisas indizíveis.


Mas já era tarde, os portugueses haviam mentido para o Gusto, dizendo-lhe que ele não era um Indígena; porque o seu arquipélago de origem, Cabo Verde, cujos habitantes adquiriram a cidadania portuguesa em 1947, era considerado especial para Portugal e essa mentira se repetia. E porque os seus compatriotas se tornaram, apesar de si mesmos, a faixa intermediária entre o Colono e o resto das colónias; os auxiliares do sistema colonial, os serviçais da ordem. Foram empregados na administração colonial na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique, enquanto outros foram feitos escravos noutras colónias. Mas o Gusto era uma boa pessoa, apesar de tudo. Era a nossa referência em “beleza colonial”. Contava-nos histórias que apenas uma pessoa culturalmente alienada poderia contar. Era naturalmente calmo, talvez porque estivesse perdido, não havia identidade ou mundo adequado para ele, parecia entorpecido, quase apalermado. Nunca contraíra matrimónio, não teve filhos e com o tempo foi ficando estranho: pois Mbanza-a-Kongo não tinha mulher que queria ler com ele a poesia dos Claridosos. Morreu sozinho, de tuberculose, abandonado, teve apenas a tia Carolina no seu funeral e foi sepultado no Kianganga na década de 1980.


Muitos angolanos fabricados e alienados pelo MPLA desde a Independência lembram-me do Gusto quando vejo a sua incapacidade de forjar genuínos laços de amizade e fraternidade espontâneos com outros africanos não lusófonos. Assim que saem de Angola, Portugal e Brasil, ficam completamente perdidos. Encontro-os nos círculos brasileiros em Paris disfarçados de brasileiros. Encontro-os em Londres, em círculos onde se dança a música latina disfarçados de latinos, encontro-os também em círculos cubanos em Nova Iorque disfarçados de cubanos. E encontro ainda outros em círculos de Brancos onde se fazem pequenos e se comportam como o Gusto. Estão amputados. Estão diminuídos. Foram desenraizados. Acostumaram-se à obliteração, ao apagamento e invisibilização. Infelizmente, criamos em Angola pessoas inaptas e incapazes de expressão cultural através da africanidade, com africanos e Negros conscientes. Apenas alguns, do Norte e dos territórios fronteiriços em particular, conseguem sobreviver. Ainda que alguns vejam isso como uma marca de alguma superioridade, que não se justifica nem pela beleza nem pela inteligência e que só pode ser justificada pela vileza e baixeza obtusas herdadas do colonizador português, a regeneração é essencial. Será longa e dolorosa, mas é urgente Resgatar o Soldado Angolano para que ele possa entrar plenamente com os outros africanos e Negros neste novo século que é deles.


Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é empresário.