Luanda - O complexo de cachorro vira-lata foi uma expressão criada pelo dramaturgo, cronista e jornalista desportivo brasileiro Nelson Rodrigues, em meados do século passado, quando o Brasil perdeu o Campeonato do Mundo de Futebol em pleno estádio do Maracanã, em 1950, e continuou a perder no futebol como se tivesse medo de se impor perante os adversários.

Foto: NJ

Em 1958, numa crónica sobre o futebol, Nelson Rodrigues menciona uma figura da Psicologia até então desconhecida: o complexo de vira-lata. Ele gostava de usar o futebol como metáfora para explicar o seu Brasil e as suas gentes, o mundo e a própria vida. Significa, em lato sensu, que o brasileiro é um ser com baixa auto-estima, que está sempre a depreciar a sua cultura, a sua economia, a sua inteligência e o moral nacional. Em contrapartida, admira desavergonhadamente tudo quanto vem de fora como estando acima de qualquer comparação com o Brasil. Há muito que o complexo de vira-lata atravessou o Atlântico e fez morada cá em Angola. O "vira-latismo" é uma espécie de bota-abaixo, uma promoção e valorização constante da nossa mediocridade, falta de ambição e complexo de inferioridade. Dependemos sempre da aprovação que vem de fora. É uma espécie de legitimação que precisa de vir de fora, de vir dos outros.


Um exemplo prático é nas deslocações do PR ao estrangeiro ou quando recebe homólogos cá, a forma como os jornalistas angolanos são destratados ou literalmente humilhados. Complicamos o crédito ou financiamento bancário aos nossos compatriotas, porque não os queremos empoderar, ver crescer e prosperar. Preferimos ver ou fazer encerrar supermercados de empresários angolanos para os entregar de mão beijada aos que vêm de fora. Os nossos nunca podem ter ou nunca poderão ser. É uma síndrome de inferioridade que nos leva quase tudo que é feito pelos nossos e entre nós com negativo, como algo que não presta e que não vale nada. Negamos tudo que vem de nós ou dos nossos. A negação funciona como um mecanismo de defesa contra factos que não queremos aceitar, reconhecer ou valorizar. Este complexo de inferioridade é uma espécie de narcisismo às avessas. É que, do topo à base, fomos criando isso, fomos "institucionalizando" isso e automaticamente as pessoas têm tendências de apenas reagir ao negativo, a "bater no ceguinho".Este "vira-latismo" faz-nos sentir seguros e confortáveis em relação à queda do outro. Se estamos cá em cima, é importante que o outro não cresça para chegar até nós; se estamos cá em baixo, é importante que não suba para ficar como nós, que fique no ambiente de caranguejos no balde.


Um exemplo deste complexo do cachorro vira-lata e nos dois sentidos são sempre as viagens presidenciais. De um lado, é a máquina de propaganda que ignora a nossa inteligência, o nosso sentido e visão das coisas, a nossa lógica e raciocínio, usa e abusa da imprensa ao seu serviço para criar um "alarido" em torno de cada viagem do PR. É preciso uma gravação vídeo palaciana para anunciar a sua saída e quando um comunicado às redacções é muito mais prático e simples.


Depois é o "barulho" mais propagandístico do que propriamente jornalístico para passar a mensagem que o nosso PR é o maior e que a sua visita é a mais importante que o seu homólogo do País acolhedor irá receber em toda a sua governação. É como que uma desnecessária mania das grandezas quando alguma simplicidade, discrição e estratégia para gerar resultados. Então numa Assembleia-Geral das Nações Unidas, em que estão em Nova Iorque quase ou mais de uma centena de chefes de Estados, parece que se passa a ideia de que o nosso PR é o único que lá está ou o mais importante dos que lá estão. Perde-se realmente o foco, destacam-se agendas paralelas e vai-se quase que se esquecendo que João Lourenço está nos EUA para a Assembleia-Geral da ONU.É claro que uma audiência de Joe Biden a João Lourenço na Sala Oval da Casa Branca tem o seu peso e relevância política. Mas é preciso que João Lourenço e os seus auxiliares não vivam obcecados e pressionados por isso.


A legitimação do seu poder ou governação não passa necessariamente por ser recebido na Casa Branca, o seu poder está legitimado pelo voto que os cidadãos angolanos depositaram nas urnas nas eleições de Agosto de 2017. O essencial é fazer bem o trabalho de casa, é melhorar a gestão governativa, é ter mais transparência e lisura, é afirmar o Estado Democrático e de Direito, é respeitar a separação de poderes, melhorar as condições de vida dos cidadãos, fazer de Angola um País melhor para se viver e trabalhar e o resto virá por acréscimos.


É claro que não é bom ver uma parte dos angolanos torcer para que cada visita que cada visita presidencial resulte num fracasso ou que se traga à tona um elemento/facto que nunca esteve na agenda de uma visita de trabalho. É claro que existem graves falhas de comunicação na governação, que há uma máquina que ainda confunde propaganda com jornalismo de um lado, mas também é preocupante ver este complexo de vira-lata que vão crescendo entre nós e a todos os níveis.