Luanda - A semana findou com a estampa do acórdão n.º 700/2021 do Tribunal Constitucional de Angola que sintetizamos nos seguintes termos:

Fonte: Isto É Notícia

Cidadãos nacionais afectos ao partido UNITA apresentaram-se ao Tribunal Constitucional a fim de requerer a impugnação do processo de candidatura de Adalberto da Costa Júnior, dezassete (17) meses depois do acto eleitoral ter ocorrido. Os requerentes aduziram na sua reclamação que o acto esteve eivado de vícios de facto e de direito de entre os quais “a realização do processo eleitoral após a aprovação dos Estatutos que dispunha que …o candidato do Partido ao cargo de Presidente da República (…) e são inelegíveis ao cargo de presidente da UNITA os membros que sejam titulares de alguma nacionalidade adquirida. Porque quem detinha duas nacionalidades estava ferido de uma inelegibilidade absoluta”, por isso, pediam que “fosse declarada nula a candidatura de Adalberto da Costa Júnior”.

 

A UNITA, de entre vários argumentos em defesa do seu Presidente, disse que a “inelegibilidade por se ser detentor de uma segunda nacionalidade foi aprovada naquele exacto Congresso electivo e por isso os critérios são os do Estatuto aprovado em 2015 e naquele não constava essa inteligibilidade, por um lado, e, por outro, a perda da nacionalidade portuguesa ocorre com a renúncia, o que ocorreu a 28 de setembro de 2019. A questão da nacionalidade, sua renúncia e prazos foram de forma reiterada discutidos pela Comissão Política, que à data aprovara três candidaturas das quais duas aprovadas à condição, o que ficou sanado a 11 Outubro de 2019. A defesa destacou, igualmente, “a diferença que existe entre a formalização da candidatura e o apuramento da mesma”, dito de outro modo, 30 dias antes do pleito eleitoral e 27 dias antes do prazo concedido pela Comissão Permanente.

 

O acórdão entre as páginas 1 a 16 apresenta as alegações das partes e o visto do Ministério Público, da página 17 até 30 responde questões sobre legitimidade, capacidade, filiação e outras laterais.

 

O desenho da decisão tem início exactamente na página 32, quando o Tribunal relaciona directamente a violação de princípios da Lei dos Partidos Políticos – doravante LPP – à sanção nulidade “somente apreciável em sede de processos que venham a ser espoletados por militantes no exercício do seu direito basilar ao tribunal”; entretanto, nos parágrafos abaixo, o acórdão não considera o lapso temporal de 17 meses – entre a realização do Congresso e a propositura da acção – defendendo que o n.º 3 do artigo 29.º da LPP deve estar sujeita a prazos expressamente previstos na lei, porém nem a LPP nem as normas do Processo do Tribunal Constitucional preveem prazos de impugnação de conflitos internos de partidos políticos e remete para o processo civil, com as devidas adaptações.

 

O acórdão segue a opção da nulidade (n.º 1, do artigo 205.º do Código de Processo Civil) concretizando, de seguida, que a nulidade pode ser arguida enquanto o mandato dos órgãos eleitos não cessarem as suas funções. A questão que se coloca é a seguinte: é a nulidade o acto que melhor resolve a questão? Mais ainda, em relação à possibilidade de impugnação enquanto não se cessam os mandatos, a decisão do Tribunal é contrária ao entendimento vertente no Acórdão N.º 141/2011, de 29 de Agosto, do próprio Tribunal Constitucional, onde se afirma: «Um acto lesivo não confere ao lesado a possibilidade de reagir a todo tempo. Haverá sempre prazos em homenagem ao princípio da estabilidade e da segurança jurídica para o exercício dos direitos que lhe são reconhecidos quer pela Constituição como pela lei»; a decisão em análise optou por um sentido diferente daquele que o próprio Tribunal Constitucional fixou como jurisprudência em 2011 e, na presente decisão, optou por uma outra arguição (artigo 286.º do Código Civil). Quanto a essa solução vale igualmente sublinhar a declaração de voto, que é parte integrante da decisão, ao entender que “o mais coerente com a natureza de associação privada com dignidade constitucional reconhecida aos partidos políticos seria (…) submeter ao regime da anulabilidade os actos dos órgãos partidários que infrinjam normas estatutárias ou legais, por analogia com o disposto no artigo 177.º do Código Civil, vertido no actual n.º 2, por virtude da redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2012, de 18 de Janeiro, Lei Angolana das Associações Privadas”. Ao não fundamentar ou justificar essa opção e/ou preferência de um regime em detrimento do outro, apresentando argumentos a favor e contra que justificassem a opção do regime da nulidade em detrimento do regime da anulabilidade a decisão, neste particular, fica subjacente a tendência para o regime mais grave e fere, deste modo, a exigência constitucional do processo e julgamento justo e equitativo consagrado no artigo 29.º e 72.º da Constituição da República de Angola.

 

O acórdão (pág. 38) concluiu que em relação ao pedido dos requerentes sobre a inelegibilidade de Adalberto da Costa Júnior, nos termos do Estatuto da UNITA, não se verificou nos termos do Estatutos da UNITA quer de 2015, quer de 2019 e, por isso, improcedente o pedido dos requerentes. Lembre-se que este era o pedido principal dos requerentes, a ilegibilidade de Adalberto da Costa Júnior nos termos dos Estatutos aprovados antes do Congresso.

 

O acórdão n.º 700/2021 do Tribunal Constitucional (págs.39, 40, 41 e 42) extravasa o poder de cognição do Tribunal delimitado no objecto do processo que, por sua vez, é delimitado pelos requerentes – “a verificação da conformidade legal e estatutária do processo de candidatura do Presidente eleito do Partido Politico UNITA…” – e passou a sindicar as deliberações e competências do Comité Permanente tentando uniformizar os critérios de realização e de estabelecimento das fases do processo eleitoral e é com essa tese de intromissão na esfera de actuação do Partido Politico UNITA e dos seus órgãos para vir concluir que “nos dias 7 e 10 de Outubro, em que encerrou a fase da apresentação e apuramento das candidaturas, o pré-candidato Adalberto da Costa Júnior ainda possuía a nacionalidade portuguesa adquirida, um elemento essencial de inelegibilidade que obriga à rejeição, in limine, da candidatura e nunca pode, por isso, dar lugar à sua aprovação, mesmo condicionada”, ora o que o Tribunal Constitucional apresenta uma forçada conclusão, um equívoco e demonstra a tendência por tentar transmitir uma monofocada visão quer em relação à inelegibilidade e impondo uma cessação do prazo de conformação da candidatura ao inicio da campanha eleitoral, é tão só uma intromissão “abusiva e desnecessária” na esfera e no âmbito de competência de uma organização política, quer numa errónea interpretação dos destinatários das inelegibilidades vertidas na LPP (Lei dos Partidos Políticos), ou seja destinados aos presidentes dos Partidos Políticos e não aos seus candidatos e mais, como admitiu o próprio Tribunal Constitucional, a inelegibilidade não constava dos Estatutos de 2015 que regeram o Congresso de 2019, apenas no seu Regulamento Eleitoral, ou não constando dos Estatutos (2015) nenhuma inelegibilidade é racional e justo que o Tribunal se socorra do Regulamento Eleitoral aprovado pela mesma Comissão Permanente que aprovou, a condição, primeiro, e em definitivo depois a candidatura do candidato que viria a ser eleito Presidente do Partido? A nossa resposta só pode ser negativa.

 

Outra curiosidade é demonstração da leviandade com que a decisão foi tomada, é a subjectivação do Tribunal ao afirmar que o “pré-candidato se mostrou indiferente, ou seja ‘deu de barato’ o requisito legal” em alusão a um requisito, que não só não se aplica ao candidato no interior de uma candidatura partidária, ou também resulta da própria decisão que “o pedido de renúncia da nacionalidade deu entrada no dia 28 de Setembro de 2021” ora, como é que alguém que formula um pedido formal de renúncia da segunda nacionalidade pode ter dado de barato um requisito que lhe não é exigível e tão aplicável aos candidatos à dirigentes dos Partidos Políticos. A interpretação do Tribunal Constitucional sobre a aplicabilidade dos requisitos do n.º 3, do artigo 25.º da Lei dos Partidos Políticos a um candidato a membro de direcção de um partido político é extravagante, excessiva, intrusiva e, por isso mesmo, ilegal. Mais surpreendente ainda é a invocação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 da qual nada se extrai em relação ao caso afigurando-se- nos completamente desconexa e despropositada, criando, em vez disso, a ilusão de que a decisão se socorreu de instrumentos internacionais quando, na verdade, os instrumentos internacionais servem de proteção das liberdades e não de instrumentos de limitação do exercício das liberdades.

 

Invocar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 para no final vir dizer que a candidatura de Adalberto da Costa Júnior é nula porque viola o artigo 33.º do Regulamento Eleitoral aprovado para o XIII Congresso é um exercício de “fundamentação” obtuso e anedótico.

 

O acórdão depois dessa “fundamentação” começa por construir argumentos de suposições e conveniência com a decisão pretendida sem nenhuma ratio lógica e constitucional, legal ou suportada pela jurisprudência, pois ao afirmar que “a apreciação conferida à singularidade da matéria em apreço SUGERE, da parte do Tribunal, UMA APRECIAÇÃO DEVERAS INCONTORNAVEL (…) que os estatutos devem incluir os órgãos competentes para a apresentação de propostas de candidatos. (…) só respeitado a supra disposição legal passa a ser possível garantir a transparência, a isenção e a lisura em todo processo de renovação dos órgãos directivos de um partido político”. Parece-nos que ninguém melhor que concorrentes ao cargo da presidência do partido em questão estariam em melhores condições para aferirem ou questionarem a lisura do processo eleitoral, mas, mesmo assim, os requerentes não questionaram a lisura do processo eleitoral, não cabendo, por isso, que esta seja objecto do acórdão. Torna-se por isso incompreensível que o Tribunal diga que a actuação da Comissão Permanente contraria o princípio da competência.

 

O acórdão atribui ao Comité Permanente “uma actuação ilegítima que ao invés de regulamentar os prazos optou por agir de motu próprio e não fixou prazos”, a verdade, porém, é que os prazos foram fixados: o dia 11 de Outubro como o dia da apresentação das candidaturas apuradas. Mesmo assim o Tribunal concluiu que não seria apenas a inelegibilidade de Adalberto da Costa Júnior, mas também as violações por si (Tribunal Constitucional), em excesso de pronúncia, e entendeu que tenha havido, e por isso anulou, todo o processo de candidaturas e decidiu, em objecto diametralmente oposto aos requerentes, em “dar provimento ao pedido dos requerentes, por violação da Constituição, da Lei e dos Estatutos de 2015 e declarar sem efeito o XIII Congresso” e como suporte da decisão invoca o Acórdão n.º 109/2009, também conhecido como acórdão da FNLA. E tem sido esse o histórico evocado para fazer jurisprudência.

Ora, chegados aqui vale dizer o seguinte:

1. Se o Tribunal pretendesse aplicar subsidiariamente o CPC deveria ter respeitado o pedido dos requerentes, pois o CPC impede que os tribunais possam decidir em mais do que se lhes pediu (cfr. Alínea e, do n.º 1, do artigo 668.º do CPC); entretanto, a decisão socorreu-se apenas das normas do Processo Civil para determinadas questões tendo ignorado as demais;

 

2. Caso a inelegibilidade fosse de facto fundamentalmente bem poderia o Tribunal Constitucional socorrer da sua própria jurisprudência ( cf. acórdão n.º 141/2011, de 29 de Agosto) para assegurar a estabilidade e a segurança jurídica para o exercício dos direitos que lhe são reconhecidos quer pela Constituição como pela lei», e, mais, invocando o Tribunal a violação da Constituição, querendo e sendo Tribunal Constitucional, poderia limitar os efeitos aplicando com a devida adaptação o n.º 4, do artigo 231.º da Constituição da República;

 

3. Ao invocar como força argumentativa o acórdão 109/2009 o Tribunal induz em erro a comunidade, confunde e destrói no final os argumentos que construiu para com o sentido da decisão, ou seja, o acórdão 109/2009 é do conflito que opôs duas alas da FNLA e o que aí aconteceu foi a irregularidade e falta de legitimidade da entidade que convocara e dirigira o referido Congresso, o que não ocorreu no XIII Congresso da UNITA, que foi regularmente convocado e dirigido, aliás os requerente em momento algum colocaram a convocatória do Congresso, a sua legitimidade ou o seu normal funcionamento, pelo que o acórdão 109/2009 configura-se numa infeliz bengala e mais uma vez demonstra a fragilidade argumentativa do acórdão em análise;

 

4. Entretanto, se uma lição se pode tirar do acórdão 109/2009 é que um dos documentos, se não mesmo o documento principal que esteve na base da decisão do Tribunal Constitucional, foi o compromisso, não foi o Estatuto, nem Regulamento, de reconciliação a que as duas ALAS, à data dos factos, haviam chegado sobre a realização de eleições num período de 18 meses, o que acabara por não ocorrer e daí resultou uma dissidência e desta um processo de expulsão, acto contínuo a impugnação junto do Tribunal Constitucional da irregularidade de convocatória do Congresso pelo segundo vice-presidente, com a morte do Presidente do Partido, quando o Primeiro Vice-Presidente estava em vida. Assim a existência de um “Compromisso de reconciliação” com prazos aí fixados entre as partes e respeitados, e reconhecidos pelo Tribunal Constitucional, é uma manifestação do reconhecimento da autonomia funcional e modeladora dos partidos políticos, autonomia essa que o acórdão n.º 700/2021 veio sancionar e coatar, no mesmo sentido a existência de dois vice-presidentes na FNLA, a data dos factos e reconhecidos e valorados pelo Tribunal, atesta que os Partidos Políticos são livres de modelar os seus órgãos, estruturas e competências, desde que isso não signifique o aniquilamento da democracia interna;

 

5. O Tribunal Constitucional não fez suficiente abordagem sobre o princípio do suprimento das irregularidades, que de resto existem também na Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, fez descaso sobre a paz interna quer entre os concorrentes, quer no seio da corporação partidária e com isso introduziu com a sua decisão um potencial de instabilidade;

 

6. Ao anular o XIII Congresso da UNITA o tribunal confunde os requisitos de validade de um Congresso (legitimidade, competência, tempestividade e quórum…) e actos laterais e não essenciais para a validação das deliberações do Congresso, portanto, a decisão é ela própria mais confusa e equívoca do que o Congresso que invalidou.

 

7. Por último, caso a inelegibilidade vertida da Lei dos Partidos Políticos fosse realmente aplicável previamente aos candidatos à liderança dos partidos e, no caso, do Partido UNITA, dado o lapso de 23 meses entre o Congresso e a decisão do Tribunal, e uma vez conhecida o averbamento de 30 dias antes da realização do Congresso, um processo justo e equitativo levaria o Tribunal a optar pela declaração de inutilidade superveniente da lide já que muitas vezes o fez em vários outros acórdãos (acórdão nº 107/2009, de 14 de abril; Acórdão nº 114/2010, de 9 de fevereiro; Acórdão 120/2010, de 8 de setembro; Acórdão 123/2010, de 16 de dezembro).

 

8. Com o que fica dito resta-nos apenas concluir que, juridicamente, a decisão é inconsistente, contraditória, invasiva, excessiva e transbordante e por isso mesmo desprestigiante para o próprio Tribunal Constitucional. A decisão denota também um enviesamento político ao interferir de forma desproporcionada na vida e organização interna de um partido político ao condicionar, com a sua decisão, o processo de preparação da disputa eleitoral. Esta decisão acontece, surpreendentemente, quase dois anos depois da realização do congresso em que o líder do principal partido da oposição foi eleito, menos de um ano da realização da próxima disputa eleitoral, seis meses depois da entrada do processo em tribunal e, mais curiosamente ainda, a decisão tornou-se pública e de forma oficiosa, através dos meios de comunicação social do Estado, no mesmo dia em que foi anunciada uma plataforma eleitoral liderada pelo presidente do principal partido da oposição oriundo de congresso objecto de nulidade do Tribunal Constitucional.

 

9. As democracias não se constroem por magia, mas por adesão de indivíduos a certos valores através dos quais moldam as instituições que tornam estes mesmos valores possíveis e em criar mecanismos através os indivíduos negociam os seus conflitos. Num país como o nosso, marcado por clivagens sociais, económicas e políticas e que num passado não muito distante se dirimiam as diferenças de forma violenta, tem sabido, nos últimos quase vinte, criar consensos que têm reduzido a tensão política e a instabilidade social. Um dos caminhos para criação desses consensos são os espaços de negociação pacífica das clivagens através de instituições em que indivíduos através dos seus representantes eleitos apresentam os seus interesses sob forma de propostas políticas. Uma das instituições através dos quais os indivíduos participam das decisões da comunidade a que pertencem de forma pacifica e regulada, são os partidos políticos. São eles que deveriam garantir, no nosso modelo político, o esteio através do qual a liberdade é exercida e a hegemonia política asfixiante é cerceada. São eles que deveriam absorver as tensões da comunidade e canalizar as propostas de melhorar as condições dessa mesma comunidade. É desse modo que a nossa frágil democracia e o nosso tecido social têm sido reconstrituido depois de décadas de divisões e violência. O Acórdão do Tribunal Constitucional ao não ter em conta este contexto, ao tomar como essenciais elementos laterais na decisão de um partido político, interfere de forma desproporcionada, no exercício de liberdade de indivíduos no modo como estruturam os seus recursos de intervenção pública. O acórdão rompe um consenso tácito de convivência pacifica entre forças políticas que tem vigorado nos últimos vinte anos; ao não estarmos diante de uma violação gritante de regras de procedimento que ponham em causa a legitimidade, a competência e o quórum, ou seja a validade de um congresso como atestam os juristas competentes, o Tribunal Constitucional, num exercício meramente especulativo e teórico, introduz um elementos de desconfiança nas instituições e, desse modo, mina o consenso tácito que constitui a garantia da estabilidade política e social, a base para a construção de uma sociedade democrática sólida.

 

*Benja Satula/Vice-reitor nomeado da Universidade Católica de Angola

*Paulo Inglês/Vice-reitor da Universidade Jean Piaget de Angola