Paris  - Quem é angolano, verdadeiro, sobretudo quem vem da Angola profunda, desta Angola desprezada, longe de Luanda, longe das belas vivendas que o Colono deixou, a Angola de baixo, a Angola que mais sofreu com a nossa Guerra injusta, sabe como a voz de Jacinto Tchipa soube encontrar as palavras certas, a tessitura exacta e o tom que precisava para consolar todas as nossas mães que estavam a sofrer com a nossa Guerra Civil interesseira. Se há coisas que uma criança não pode esquecer, é precisamente a expressão da dor que ela experimentou. É isso, Jacinto Tchipa é para mim a expressão da minha inesquecível dor de infância. Esta memória revelou-me mais tarde a importância de Jacinto Tchipa para a memória do nosso passado, para o arquivo da nossa experiência humana, e que foi um homem que não se corrompeu para exprimir a nossa dor colectiva de maneira egoísta, unilateral, tendenciosa ou de forma politizada. Na “Cartinha da Saudade”, Jacinto Tchipa não só expressa a dor da mãe de um filho que estava na guerra do MPLA, mas também expressa a dor da mãe do filho que estava na guerra da UNITA. Cada um dos soldados, de um lado ou do outro das trincheiras, sem dúvida escutava as palavras desta canção com os mesmos calafrios, a mesma emoção e derramou as mesmas lágrimas ardentes. Cada um era filho de uma corajosa mãe angolana que esperava e por quem cada um esperava construir uma Angola maior e mais bela. Jacinto Tchipa soube falar dessa Angola que ainda tinha alma, da alma da nossa Angola sofredora. E, por ricochete, soube expressar a dor de qualquer mãe, seja ela quem for e onde quer que esteja, que, desamparada, com o coração pesado e em lágrimas de desespero, um dia vê o seu filho ir para uma guerra injusta que ela não pode entender ou endossar. Esta canção é, portanto, universal em escopo.

Fonte: Club-k.net


É a canção para uma mãe amorosa e triste. Nunca a escutei sem derramar uma lágrima, ela exprime algo muito profundo, traz de volta a memória, lembra que a nossa Guerra matou o João-Diaketé, o marido da mana Rita também, e tantos outros filhos de Angola que foram para Mbanza-a-Kongo e que começavam a ensinar-me algumas palavras das suas línguas maternas; herero, nganguela, umbundu, kioku, kimbundu. Eram irmãos angolanos que iam para a nossa região fazer a guerra; iam para a guerra e muitas vezes voltavam sem o outro e mais sem um outro. Ou iam e nunca mais voltavam. Sempre organizávamos vigílias em homenagem a eles, é a nossa cultura. Mas no dia seguinte a Guerra recomeçava, o MPLA mandava-nos outros filhos de Angola, outra bucha de canhão, que ia arrancar debaixo das suas camas, do forro onde se escondiam. Vinham de Kwando-Kubango, Moxico, Kunene, Lunda Norte, Uíge. A UNITA, por sua vez, fazia o mesmo. Muitos desses filhos de Angola não tiveram sepulturas. Ainda hoje, outros vivem sem braços ou sem pernas ou sem braços nem pernas. Outros têm balas inteiras e projécteis de bomba alojados nos seus corpos, outros perderam um olho ou ambos, e outros enlouqueceram. E outros ainda vivem sem qualquer reconhecimento ou pensão. Essa foi a nossa Guerra. Para essa guerra, ainda não conseguimos criar uma consciência real para que nunca mais volte. Em vez de memória, oferecemos festas, música e álcool. E criamos uma juventude inconsciente que ainda não sabe o que realmente foi essa Guerra e quantos irmãos perdemos por causa dela. Os nossos jovens perdidos nem sequer pensaram em criar uma página da Wikipedia dedicada ao Jacinto Tchipa, então eles prontamente aceitam a invisibilização inclusive daqueles que fizeram a sua história. Esta é a sua norma, a cultura em que foram criados. Os Ruandeses criaram museus para comemorar o seu genocídio, para que as gerações futuras nunca mais pensem em se matar. Isso é chamado de memória, memória consciente. Nós continuamos na inconsciência. Mas ensinamos a nossa juventude a usar fatos de marca e sapatos bicudos; ensinamos a eles o enriquecimento material e o empobrecimento espiritual. Esquecemos o essencial: a consciência e a memória.

 

Agradeçamos a Jacinto Tchipa por nos ter deixado arquivos que, quando Angola se tornar uma Nação Consciente, podem ajudar-nos a chegar mais perto da compreensão do que foi a nossa Guerra. Sim, a chegar mais perto da compreensão. Pois é impossível para quem não a viveu na pele compreender verdadeiramente. Quem nunca viu um tecto explodido por um obus não pode entender o que foi a nossa Guerra. Quem nunca viu uma velha de quase cem anos, cega, esfarrapada, descalça, que fugiu da sua aldeia sozinha sob as bombas, apalpar o chão em súplica para perguntar aos seus ancestrais porque é que mataram o seu neto remanescente que sustentava toda a sua família não pode entender o que foi a nossa Guerra. Quem nunca viu os caminhões de uma coluna, que deviam vir da Capital com comida; carne, peixe, arroz, óleo - atulhados com os corpos sem vida ensanguentados dos filhos de Angola não pode compreender como foi a nossa Guerra. Jacinto Tchipa deixou-nos o seu testamento para um dia compreendermos. É uma compreensão que requer sabedoria que ainda não possuímos. É uma compreensão que exige uma irmandade que ainda está por criar. É uma compreensão que diz "Nunca mais!".

 

Agora que a única coisa que realmente importa para nós é o dinheiro e o poder, agora que a única coisa pela qual realmente lutamos é salvar a nossa própria pele às custas da maioria, agora que a única coisa que faz sentido para nós é cuidar da nossa família e dos nossos amigos, o sofrimento que a nossa Guerra criou parece ter sido em vão. Jacinto Tchipa, mesmo vestido com a farda das FAPLA, fez a sua parte: consolou todas as mães angolanas. Todas as nossas mães. E quem conhece "África", mais uma das suas lindas canções, da qual creio ter compreendido a essência, já que falo kikongo, língua irmã do umbundu também, sabe qual era o apego de Jacinto Tchipa ao nosso continente, terra legada pelos nossos antepassados. A ironia é que o citei como feliz referência, juntamente com o Bonga, outro grande angolano por quem tenho carinho e estima, no meu texto de 15 de outubro. Provavelmente foi um aceno dos ancestrais, antes de virem buscá-lo na quarta-feira desta semana. Durante o Live no Kubico dedicado aos nossos soldados em novembro passado, Jacinto Tchipa veio cantar as duas canções e queixou-se no palco da falta de reconhecimento do seu empenho militar. Mas não sei o que aconteceu com ele depois da Guerra, não me lembro de ter ouvido nenhuma outra música dele depois dessa época. Se se tornou outro homem, como muitos depois, aqueles que saquearam o nosso povo e decidiram travar guerras vis, deixando para trás todo o talento e génio que tinham - às vezes é a consequência do enriquecimento material -, Jacinto Tchipa será sempre uma referência eterna para mim. E sei que será assim para muitos angolanos da minha geração e além. Por isso, e na falta de uma homenagem nacional, uno-me aos que estão dispostos a prestar uma forte homenagem a este irmão que foi para nós um grande angolano. Desejamos-lhe um repouso pacífico na aldeia dos nossos antepassados e rezemos para que a sua voz, bela e generosa, continue a zelar por nós até ao fim dos tempos.

 

Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é headhunter.