Estimado Manuel Rui, por ti começo por todas as razões e mais algumas;
À Alice, companheira de todas as horas deste grande cidadão, herói e intelectual;
A todas as ilustres personalidades aqui presentes e merecedoras da devida deferência protocolar;

Ao Editor Arlindo Isabel, incansável e oficinal homem da produção de livros e as alegrias, saberes e ensinamentos a eles associados;
Minhas Senhoras e Meus Senhores;
Todos os que nos acompanham esta tarde nesta Casa do nosso orgulho, a União dos Escritores


Temos um grande livro em mãos. Mas temos também, em simultâneo, uma grande dívida a saldar, com esta homenagem ao Manuel Rui pelos seus oitenta anos completados ontem.


Confesso-vos que fui tomado por uma forte onda de vacilação no momento em que pensava no que iria dizer aqui, na presença de tão ilustre plateia, em face de dilema tão avassalador: conto a beleza dos contos de TIO JORGE E OUTROS QUÊS ou me rendo, como muitos de vós, à tentação de falar do autor, de falar de Manuel Rui, o herói, o fantástico cronista de um tempo quase surreal em que fazemos Pátria ao nosso jeito e à nossa maneira, misturando cacussos degustados em lugares ribeirinhos como o Dondo com o rio Cuanza a passar mas, também, caçámos mercenários invasores no denso matagal do Uíge e do Zaire, derrotámos carcamanos no Cuito Cuanavale e exibimos a nossa veia de “invergáveis” que não precisamos de amos e protectores do tempo passado para seguirmos em frente?

 

Foi num castelo da Escócia, erguido em bosques feitos para os excessos do conde Drácula, que comecei na semana passada a ler o livro que o Manuel Rui, por uma generosidade que só me compete agradecer com absoluto entusiasmo, fez questão que fosse eu a apresenta-lo, existindo, quiçá, gente mais habilitada para o exigente empenho.


Foi lá mesmo que me nasceu o dilema da escolha: falo dos contos ou falo do contador das histórias, ele que é de uma imensidão impossível de compaginar na apertada mancha de 20 ou 30 páginas de um livro?


A decisão de como seria só a tomei hoje, ao desembarcar em Luanda depois de uma viagem de avião a lutar entre o sono leve mas persistente das alturas e a leitura do último dos quatro contos, o dos pesadelos da Nadine em busca do pai desaparecido nessa guerra que poderia ter terminado com umas conversas bem faladas…

Vou falar do livro e deixar as homenagens explícitas em depoimentos que outros farão, quer aqui de modo presencial, quer a partir desse longe fulminado pelas bondades das tecnologias que nos colocaram a viver numa espécie de Tomessa global: a aldeia aproximou-nos – e como! – pelo que vamos ouvir gente a falar do Brasil, de Portugal e de outras paragens como se estivessem no jango ao lado.


Pois, o livro…
Recupero o lugar-comum com que iniciei este texto de apresentação: temos um grande livro em mãos! Aos ouvidos de um adolescente da geração do polegar, esta afirmação insossa merecerá logo uma exclamação do tipo: bah…grande novidade, tio!

Ainda bem que as coisas acontecem assim. É a expressão melhor acabada para se exaltar o valor de uma marca: qualidade inatacável aquilo o que Manuel Rui produz, ao menos desde que o lemos – alguns desde QUEM ME DERA SER ONDA, outros desde ONZE POEMAS EM NOVEMBRO. Se não bastassem estes referenciais, temos o conteúdo soberbo da Letra do Hino Nacional, escrito com todas as musas a cercarem MANUEL RUI na frescura dos seus 35 anos de idade!


O que nos oferece Manuel Rui em TIO JORGE E OUTROS QUÊS?

4 contos, distribuídos por 100 páginas. O conto que dá nome ao livro é o primeiro, também o mais extenso, ocupa 37 páginas; O seguinte é o conto MONAMAIOR, depois o PÁTIO DAS INSÓNIAS e fecha com o conto intitulado A OLHAR PARA OS JACARÉS.

São belíssimas histórias, de leitura irresistível. Atrevo-me a considerar que ninguém em sã consciência deixa a meio um relato destes, qualquer que seja o conto escolhido, e – lá está – são sempre contos que se lêem com a marca inconfundível Manuel Rui a perpassar toda a história, do início ao desenlace. Sempre e sempre o humor supremo de Manuel Rui, as gargalhadas que nos acompanham em QUEM ME DERA SER ONDA, com o mais famoso porco urbano de Luanda/Angola e arredores – O CARNAVAL DA VITÓRIA.


Esta obra arranca com um conto genial, fabuloso, auto-biográfico e com uma história em torno de Manuel Rui, não já apenas o escritor mas o homem por detrás do escritor, o cidadão Manuel Rui Alves Monteiro, apanhado na armadilha da pandemia em terras portuguesas e por lá teve de ficar até ser resgatado.


O tio Jorge é um trabalhador doméstico, que liga para o Doutor – podem facilmente chegar à identidade do Doutor -, em desespero, aflito: “Doutor, estou a telefonar, desculpe andar a faltar sem dizer nada. Nunca fiz isso. Estou cheio de vergonha. Não posso andar. Estou na cama doente da ferida na perna, parece a apodrecer”.

O mesmo tio Jorge que engendra soluções bem ao nosso jeito para se livrar do problema físico que o atormenta: “Doutor, já andei aqui num enfermeiro privado e nada. A minha mulher está-me a pôr kizaca”.


É evidente que salta a tampa ao Doutor. Mas o que é isso? Tentar curar ferida com kizaca? E aí o temos a repreender:

- Tio Jorge. Você não deve andar em médico de quimbundo, e kizaca é comida, não é medicamento mesmo no tradicional.


O Pedro que já conhece a tua casa vai-te apanhar ká, prepara uma mochila com os teus quês pois não sabemos se vais ficar internado no hospital”.


A narrativa gira em torno deste processo de busca intrépida por uma cura do mal, intercalada com um conhecimento que nos vai sendo dado em recurso flash-back, ou seja, uma viagem ao passado de Ti Jorge, recurso graças ao qual ficámos a saber que Tio Jorge é um antigo soldado da UPA – UPA que depois evoluiu para a FNLA -, é do município do Milunga, antiga Santa Cruz, na província do Uíge, com passagem por bases de treinos no antigo Zaíre, a RDC dos nossos dias.


Muito para conhecer, das peripécias deste mordomo leal e, nos momentos mais sérios, as reflexões avulsas e muito actuais, muito dos nossos dias, em que nos preocupamos com o destino, o amanhã, dos trabalhadores que nos servem em nossas casas e que, contas feitas, sabemos que não têm preparado a reforma, o período complexo da velhice, sem descontos para a Segurança Social, com os riscos quase inevitáveis de um fim de linha na miséria e na indigência. É estremecedor este diálogo quase no fim do conto, entre patrão e empregado. “TIO JORGE, ESTOU A FICAR VELHO. Você nunca quis tratar da assistência social porque não acredita, como andou a esconder a ferida porque não acreditava no hospital. No entanto, pode espalhar por aí que se curou no Hospital Maria Pia. E depois, quando eu morrer?

“ Doutor – replica Tio Jorge – eu sou o seu mordomo, preferia morrer antes que o doutor para me arranjar no funeral, mas o doutor depois ia morrer de tristeza, sabe? Nenhum de nós pode morrer primeiro que o outro…porquê? Não sei como vai ser o que ficar vivo”.


E, à nossa boa maneira festiva e sempre com um fantástico humor do autor que nos reúne aqui esta tarde, esta reflexão séria, existencial, à volta do drama profundo que é a morte, lá termina tudo com uma celebração à vida:


-“Então puxa aí a garrafa de vinho tinto, uma vez só e pouco não atrapalha os antibióticos….vá lá, meio copo, vou deitar um bocado no chão para os espíritos e para que continuemos vivos os dois, aleluia!” .

Amém, falou o Jorge com as lágrimas a descerem…


Grande conto, sem dúvidas. Há anos que ouvimos dizer que os gostos não se discutem, cada um saberá o que o torna feliz mas sinto-me quase tentado a contrariar/a desafiar, esta velha afirmação e deixar aqui dito que “não pode haver leitor que consiga dizer que não gostou das peripécias do mordomo Tio Jorge.


MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES


Sem pretender, como é óbvio, contar-vos o livro todo nem pouco mais ou menos, peço-vos mais um breve tempo para que me seja permitido falar-vos, mas de modo muito leve, sobre o poderoso MONAMAIOR , um chefe militar da linha dos duros e que adorava fazer umas viagens a Lisboa, acompanhado da secretária sua amante e adorava jantares bem regados e que não se importava de pagar convidando meio batalhão a coberto de despesas de representação.


Um figurão o nosso homem, sem dúvidas. Mais uma vez haverão de se rir a sério, às gargalhadas, sobretudo pelo modo muito a cowboy como o nosso tropa gostava de resolver as pequenas brigas do dia a dia: tiro nas pernas. Tiro ao sujeito que lhe raspa o espelho retrovisor do jeep de alta cilindrada, tiro na perna do peão que é lento a atravessar e não acelera nem mesmo com as buzinadelas do grande comandante…e uma rajada aos canalizadores que tinham ido lá a casa e mudaram a sanita e não se sabe porquê carga de água quando o homem se sentou e puxou do autoclismo, um jacto forte de água a ferver deu-lhe cabo dos instrumentos da zona baixa…


Rajadas nos pés, como era de esperar…

Confesso-vos que este livro, estes contos, são para ler com a boa disposição ao mais alto nível. Recomendo-vos. Leiam sobre a quitandeira que foi à casa do poeta pedir um emprego:

-“Bom dia, tio Poeta”
- Sim, então?
-Venho pedir emprego aqui na casa.
-Como é que soubeste que eu precisava de empregada?
- Sou quitandeira. Daquele grupo que fomos desfilar com as nossas bacias, no lançamento do livro que fala em nós, as quitandeiras e…”
-E digo eu..
- Lá sabemos tudo. Que o tio Poeta ficou doente, dois meses, a empregada fugiu com um sargento da Polícia para Benguela e…”

Agora “e” digo eu, o apresentador. Está na hora de deixar-vos que descubram, pelos vossos próprios pés – olhos, no caso – as magníficas histórias contadas por este genial fabulador, este incrível escritor do nosso orgulho, Manuel Rui, a quem volto a agradecer o facto de me querer para esta missão prazerosa de falar sobre uma nova obra sua, como já havia acontecido, há uns anos, em MANINHAS, no interior da Casa 70.
Mestre, Muito Obrigado por marcares o nosso tempo!

Luís Fernando |
Sede da União dos Escritores Angolanos, Luanda |5 Novembro 2021