Luanda - No pretérito dia 16 de Setembro, o director de Conteúdos da Televisão Pública de Angola chocou a opinião pública com a afirmação de que a estação televisiva de que é servidor não via qualquer interesse noticioso no regresso ao país de José Eduardo dos Santos, após dois anos de exílio voluntário em Espanha.

*Graça Campos
Fonte: CA

Explicando o silêncio da TPA relativamente ao regresso a Angola do cidadão que conduziu o país por longos 38 anos, Neto Júnior disse que tal acontecimento “não é assunto do ponto de vista jornalístico”.

 

Segundo ele, o “regresso de José Eduardo do Santos ao País não é um critério editorial. A TPA tem uma direcção de informação e a direcção informação é legítima, tem autonomia para definir a sua pauta editorial”.

 

Apoiando-se numa escola de Jornalismo que, por certo, só vingou na própria TPA, Neto Júnior acrescentou que “os princípios editoriais que norteiam a TPA são aqueles que estão assentes em critérios objectivos, os critérios de noticiabilidade”, nos quais não há espaço para o regresso de José Eduardo dos Santos a Angola, dois anos depois de se ter auto-exilado em Espanha.

 

No dia 16 de Abril de 2019, toda a imprensa pública noticiou a partida de José Eduardo dos Santos para a Espanha num voo comercial da TAP, após haver recusado uma oferta do Presidente João Lourenço, que colocou à sua disposição uma aeronave da TAAG.

 

Numa nota tornada pública no dia anterior, a Casa Civil do Presidente da República considerou surpreendente a decisão de José Eduardo dos Santos de viajar pela TAP, uma “aeronave comercial estrangeira”.

 

No documento, a Casa Civil disse que a decisão do ex-Presidente da República “contraria diligências protocolares e logísticas desencadeadas pelo Estado angolano nas últimas semanas, que pôs à disposição uma aeronave compatível com o seu estatuto”.

 

Sexta-feira, 19, a Televisão Pública de Angola seleccionou um repórter sénior da estação para fazer a cobertura de uma diligência particular de um cidadão junto da Procuradoria Geral da República.

 

Rui Manuel Galhardo era um cidadão anónimo até 13 de Março deste ano, dia em que ganhou súbita notoriedade pública porque foi à direcção-geral do Serviço de Investigação Criminal fazer queixa de Adalberto Costa Júnior por pretensa tentativa de homicídio.

 

Foi a primeira vez, em Angola, que a diligência de um cidadão junto do SIC mereceu a cobertura integral das televisões públicas.

 

Depois da ruidosa cobertura de sexta-feira à ida do dissidente da UNITA à PGR é de todo impossível evitar a conclusão de que, nos estranhos critérios editoriais da Televisão Pública, Rui Manuel Galhardo, um zé-ninguém que ganhou notoriedade às costas de outro, é mais “gente” do que José Eduardo dos Santos, que a própria Televisão Pública de Angola venerou até ao enjoo durante 38 anos.

 

Se fosse chamado para avaliar os estranhos critérios editoriais da TPA, o Prof. Dr. França Van-Dúnem não se perderia em labirintos. Repetiria, simplesmente, o que tem dito em situações análogas: “a questão está entendida”.

O regresso de José Eduardo dos Santos, dois anos depois, coincidiu com a ida de João Lourenço a Ndalatando. Se noticiado pela comunicação social pública, esse acontecimento ofuscaria completamente a visita do Presidente da República ao Kwanza Norte.

 

Já encostado às boxes, José Eduardo dos Santos não representa nenhuma ameaça ao projecto de João Lourenço de continuar no palácio da cidade alta.


Com todos os movimentos e decisões decididos e monitorados pelos Serviços de Inteligência, Rui Manuel Galhardo tornou-se num bom “activo noticioso” para a comunicação social pública desde o momento em que alguns “cientistas”, pagos com dinheiro público, descobriram que o dissidente da UNITA pode ser uma boa pedra no sapato de Adalberto Costa Júnior, o único e verdadeiro opositor perante quem o Presidente João Lourenço parece tremer que nem varas verdes.

 

Se solto e livre como os pássaros, Adalberto Costa Júnior pode, na verdade, causar estragos ao projecto político de João Lourenço.

 

Apesar do seu nulo impacto na opinião pública angolana, a imprensa pública está orientada para dar enorme visibilidade aos actos de Rui Galhardo que possam causar algum dano a ACJ, por insignificante que seja.

 

Depois do Acórdão 700/21, que anulou o XIII congresso da UNITA e, consequentemente, afastou Adalberto Costa Júnior da sua liderança, a atenção que a imprensa pública voltou a dedicar ao zé-ninguém Rui Manuel Galhardo é comprovação de que o “regime” assume, sem disfarce, o controlo remoto de todas as instituições que podem concorrer para a fragilização – se não coisa pior – do verdadeiro opositor de João Lourenço.

 

Também capturada para servir o mesmo propósito, até a Procuradoria Geral da República é, agora, forçada a aceitar o que negava há pouco mais de um mês.

 

Com todas as instituições públicas no “cafrique” – como diria o sociólogo João Paulo Ganga – não há a mais leve hipótese para um Estado Democrático e de Direito.

Deixemo-nos de ilusões.

No dia 26 de Setembro de 2017, no discurso da sua investidura como terceiro Presidente de Angola, João Lourenço alertou: “Para corresponder à grande expectativa criada em torno da minha eleição e a confiança renovada no MPLA, governarei usando todos os poderes que a Constituição e a força dos votos dos cidadãos expressos nas urnas me conferem”.

 

Na prática, a nossa Constituição, que o ex-Presidente José Eduardo dos Santos, qualificou apropriadamente como atípica, coloca o país e todas as suas instituições no cafrique do Presidente da República. Como cantaria o Bonga, o Presidente da República é o dono da bola.

 

O “suicídio do Estado democrático e de Direito” de que nos alertou o demitido presidente do Tribunal Constitucional, Manuel Aragão (na foto principal), está a ser meticulosamente executado.