Luanda - O Delta era um acampamento que albergava, principalmente, pessoas da terceira-idade e crianças vítimas da guerra pós-independência. Na época, foi chefiado pelo meu tio Lohoka Malheiro, com a patente de Major, e tinha como adjunto o Capitão Mateus Njimbo.

Fonte: Club-k.net


As populações do Delta dependiam totalmente daquilo que os camiões traziam a partir da Namíbia e, provavelmente, também, da África do Sul. – Era quase impossível fazer agricultura por causa dos seus terrenos arenosos e sem rios nas proximidades.


Para facilitar o corredor logístico, foi criada uma base conjunta, com pessoal da UNITA e militares sul-africanos, a que chamaram de Mbambi, também conhecido como Quadrado. Era lá onde se concentrava todo o apoio em viveres, medicamentos, roupas e material de guerra que a UNITA recebia dos sul-africanos. Na época em que vivi no Delta, o representante da UNITA no Mbambi era o Brigadeiro Lissumbissa ”Samakuva” e, mais tarde, o General Andrade Tchassungo Santos, irmão mais-velho do meu amigo Helder Santos.


Do Mbambi, partia boa parte do Apoio Logístico dos Primos, como eram chamados os sul-africanos. Os meios eram transportados por camiões de marcas “Magirus”, “Samil” e “Kwefu”.

 

O abastecimento militar: material de guerra, ração de combate etc., seguia para o Likuwa, uma base banhada pelo rio lwengue. Foi no Likuwa onde se instalou a Direcção Geral de Logística de Guerra, DGLOGUE, chefiada sabiamente pelo carismático e lendário cabo de guerra, o general Altino Sapalalo, mais conhecido por Bock, dos generais mais dinâmicos e inteligente que conheci na guerrilha.

 

Para o Delta, os víveres eram transportados por camiões conduzidos por jovens militares sul-africanos, todos eles trajados a rigor, com a farda da South African Defense Forces(Forças de Defesa da África do Sul), do general Magnus Malan.

 

Os militares trajavam o seu fardamento castanho, que combinava com o castanho das botas de cabedal. Dos pés à cabeça, era a mesma cor. As calças tinham vários bolsos, acho que passavam de 8; também havia os “dolmans”, uma espécie de casaco; e para dormir, eram os “Sleep-sac”.


Ao chegar ao Delta, os kwefus ou as Magirus paravam, para o descarregamento, no Stock que ficava ao centro do acampamento.

 

Os miúdos atrevidos, também apelidados de malandros (eu, o Lukamba, o Vadinho Kapango, o Pelé, o Dito Tchimbili, o Sakupya, o Tchihinga, o Victor Wanga), assim que ouvíssemos os roncares dos kwefus, corríamos alegremente até ao Stock para assistir ao descarregamento dos mantimentos e, ao mesmo tempo, aproveitávamos ver de perto os camiões e os motoristas que os conduziam. Dos nossos amigos, os únicos que não apareciam, dos que me lembro, eram: o Sakatu Savimbi, o Victor Hugo, os meus primos Arão Ngamba e Délio Kakinda; de resto, estávamos quase sempre presentes e víamos os choferes sentados na cabine dos kwefus, com as portas abertas, enquanto os estivadores do Stock da alferes Augusta Sakuanda, mãe do Piaku, descarregavam os mantimentos, que eram: sacos de fuba, sacos de açúcar, sacos de café; sacos de sal; caixas de carne em bife, carne moída, carde em bola, carne cebolada; caixas de kavango(carne fresca de vaca); caixas de sumo Orange, “granadile”, “guava”; caixas de quitaba; caixas de leite moça, leite catermate, caixas de bolacha “fort-bicks”, etc., etc.


Na medida em que faziam o descarregamento, nós, com cara de curiosos, apreciávamos aquele monstruoso camião, o kwefu, cuja cor era igual à da farda dos soldados; com umas rodas que tinham uma altura que passava das nossas cabeças; para subir à cabine, havia uma escada com vários degraus e corrimão; os vidros azulados, grossos e à prova de bala, aumentava na beleza do camião, que também tinha uma carroçaria longa e alta com grelhas. Eram, quase assim, os camiões que nos traziam comida.


Vendo-nos encantados com o que víamos, os motoristas não resistiam à nossa curiosidade e desciam: apenas diziam: “how are you?...” e de seguida, ofereciam-nos “xingomens”, ou melhor, chocolates, que eles retiravam das suas caixinhas de ração de combate.


Assim que o pessoal terminasse com o descarregamento, começavam as manobras para colocar os camiões no trilho. Como havia muitas árvores, as manobras exigiam certa perícia, e para nós era outro momento interessante, víamos o kwefu a avançar, por aí, meio metro, com as rodas gigantes, ora, viradas para a direita, ora, para a esquerda, depois fazia uma marcha-atrás rápida, com a ajuda dos retrovisores, ou, às vezes, o motorista tinha de esticar o pescoço fora da cabine para se certificar do trilho, até colocar o carro em posição de saída.


Estando no trilho, era arrancar: primeiro, com a primeira; depois, com a segunda, e lá iam pela estrada, entre árvores e arbustos, com poeira à mistura, até desaparecerem..., apenas se ouvia, ao longe, os roncos rocos dos motores: rrrumm, rrrrummm, rrrrummm...

Voltarei...

Luanda, 23 de Novembro de 2021
Gerson Prata