Paris  - Agora que vimos Higino Carneiro cantar, uma paixão partilhada pela elite do MPLA por razões que desconheço mas que se devem certamente a um suposto requinte, e ele cantava em espanhol por favor!, outra característica dessa elite; cantar em línguas latinas para ter a sensação de ser superior e de estar mais próximo da América Latina ou de Portugal, portanto perto dos imaginários do Lusoquistão e o mais longe possível de África (excepto quando a elite quer cantar em kimbundu, a língua política do MPLA que na realidade não fala, por escolha e complexo!), agora que vimos as sanzalices de Marcelo Rebelo de Sousa, dignas de um conquistador do Far West e bem escondidas sob a cool attitude, pelas ruas de Luanda - quando não estava dentro da casa que representa o nosso Povo, onde trata por "tu" os nossos deputados que ele não conhece diante das câmaras de televisão, pois, digamo-lo, a história colonial ensina-nos que o Branco sempre se recusou a dirigir-se a um Negro com formalismo, pois, como Fanon explicou claramente, sobre o olhar do Branco no Negro, o Negro não é um Homem, se for um Homem, é um homem negro, e que foi justamente por isso que miúdos brancos que ainda faziam xixi na cama chamavam os nossos avós "rapaz" -, agora que vimos o regresso de Barcelona do Filho Pródigo (e aparentemente já não tem sapatos, o que o torna a sua própria caricatura!), que continua o mesmo ; pálido, frio e distante (diz-se que isso é outra forma de cinismo, já que cínico no país que ele construiu tem outra definição, é um adjectivo ou substantivo bastante lisonjeiro; é definido lá quase como sinónimo de "fino", o que sem dúvida teria feito Diógenes de Sinope rir no seu barril, agora que vimos a anulação política da eleição do Presidente da UNITA, Adalberto Costa Júnior, e a sua reeleição resoluta e aclamada logo a seguir, agora que vimos a organização de Congressos pelos dois partidos políticos que se julgam os únicos mais legítimos a reinar eternamente sobre Angola - porque fizeram a Guerra e mataram milhares de angolanos úteis -, agora que vimos, e pela primeira vez, o MPLA realmente duvidar e começar a pensar com medo na ideia de uma possível perda das próximas eleições, mesmo que a sua arrogância cultural não lhe possa permitir mostrar isso abertamente, agora que vimos níveis nauseantes de miséria e o grau alucinante de violência atingido que nos diz que os angolanos caíram bem no fundo do precipício, agora que vimos imagens surpreendentes de um oficial da polícia de joelhos, durante uma parada e entre centenas de outros, fazendo uma comovente oração invocando a intervenção de um deus trazido pelos Brancos, o que nos autoriza a perguntar se devemos também mudar a nossa Constituição e tornar Angola uma teocracia - já que a actual diz que o nosso Estado é laico -, o que realmente queremos como País a partir de agora, em 2022?

 Fonte: Club-k.net

Da minha modesta condição de cidadão, patriota e observador, pois, como muitos outros compatriotas, penso que é hora de devolver ao nosso povo a sua dignidade, pela qual tão heroicamente lutou contra a dominação colonial; pela sua liberdade para usufruir de todas as riquezas que o seu país, Angola, lhe pode oferecer na sua busca da verdadeira felicidade, o meu maior desejo é que ousemos começar a construir o nosso país sobre uma base mais sólida. Sim, vamos ousar redesenhar o nosso país, e é possível! Basta querer. Tal como se o MPLA o quisesse, o kimbundu tornar-se-ia uma língua falada por todos os angolanos hoje, 46 anos depois! Não o fez por causa do seu problema com a africanidade. Porque não vejo como teria sido pior do que o que gerou: uma Angola que é uma caricatura feia de Portugal, o lusotropicalismo, o colorismo, o Ngangula, o ódio pelo "zairense", o desprezo pelos outros africanos e tudo o que evoca África, os marimbondos, a existência de cantores de talento questionável que cantam "Escuro não!" e ainda outros que só cantam a beleza da "mulata" e da "morena", para que governantes que têm mães, irmãs, avós e esposas negras se saracoteiem nas suas festas pomposas pagas com o dinheiro do Povo que é maioritariamente negro! Dado que o kimbundu é a língua política do MPLA, tal como a Rainha Nzinga-a-Mbandi (nome que os lusotropicalistas afro-convenientes escrevem Njinga, Jinga ou Ginga mas parece que o Cavazzi que a conhecia bem e conviveu com ela escreveu Nzinga!), que o Partido açambarcou, porque não o impôs como língua como todas as outras coisas que foram despejadas para poluir a saúde mental e espiritual dos angolanos? E as novelas, que os angolanos assistem em família, que mostram imagens que queremos perpetuar da dominação do Negro pelo Branco e de mulheres nuas, sem falar nas cenas de sexo e todos os vícios dos brasileiros? Então, quem teria sofrido se o kimbundu tivesse sido imposto a todos os angolanos? Eu não, isso até me teria oferecido uma sétima língua, teria três línguas africanas, e seria mais rico, mais interessante e mais capacitado para viver neste mundo!


E como os nossos intelectuais que frequentaram a Casa dos Estudantes do Império não souberam inventar uma corrente intelectual benéfica para os Negros e para a África, uma filosofia para proteger a identidade dos Negros dos PALOP como os outros fizeram noutros lugares, e que ficaram contentes em aprender o sotaque português e recitar os clássicos da Grécia Antiga - já que nenhum deles se tornou uma referência mundial do Pensamento ou das Artes, não chegou a hora de nos inventarmos com e pelos nossos próprios meios? Mas como me diz sempre uma amiga portuguesa, branca e nascida em Angola, na Chibia, Huíla, já idosa, que frequentou essa Instituição colonialista, “foi uma instituição fundada por Salazar, Ricardo!", sim, está tudo dito mesmo! Então, já que não podemos pedir aos nossos grandes estilistas da Casa dos Estudantes do Império que sejam o que não puderam ser, vamos deixá-los como estão e compor com os que ainda estão vivos para seguir em frente juntos para o nosso futuro. Ainda que a tentação seja muito grande e legítima de perguntar a certos grandes estilistas que ainda estão vivos, que tiveram um poder de fazer cultura dentro do MPLA e que têm kambas que gostam de cantar em kimbundu, porque é que não souberam usar a sua influência para que essa língua se torne a língua de todos!


Mas tudo bem. Já que estamos à espera do fim desta maldita pandemia, que também estamos à espera que os colunistas do Jornal de Angola que assinam com PhDs aprendam a soletrar correctamente o nome de um dos reis africanos mais famosos do mundo, Mvemba-a-Nzinga -, que todos os "doutores" sérios por sinal sabem escrever em outras partes do mundo -, e que esperamos sobretudo as eleições livres e justas, então devemos esperar legitimamente que Angola, por extensão África e as suas culturas, esteja no centro da invenção do nosso futuro. Não importa quem vença essas eleições. Mesmo que eu ache o Adalberto Costa Júnior um bocado aportuguesado nas maneiras, no tom e não conheça bem o seu nível de complexo, diz-se que ele fala umbundu. Isso já me tranquiliza. E não ficaria chocado se ele impusesse esta língua a todos os angolanos. Isso só poderia tornar-nos melhores, como outros povos que falam pelo menos duas línguas nacionais, os sul-africanos, por exemplo. Se o MPLA não o fez com a sua língua política, qualquer angolano esperto deveria esperar que a UNITA o faça se chegar ao poder. Não nos retirará nada, pelo contrário, nos ampliará e será um começo, um verdadeiro começo para a Emancipação. E qualquer que seja a língua, no final, deve haver uma língua nacional comum, com respeito por todas as outras línguas nacionais que não devem ser minoradas no seu meio natural. E essa língua deve ser imposta. Em dez anos, poderíamos ter uma língua nacional oficial comum. É Poder, é Emancipação! É isso que desejo que comecemos a fazer, a partir deste ano.


Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é headhunter.