Luanda - 24/05/2022, terça-feira, igreja do Carmo, Luanda. Reza-se missa de um mês pela alma de Cláudio Manuel Pereira da Gama (Cláudio Gama), filho de Manuel Pereira da Gama Júnior e de Maria de Lurdes Pereira da Gama. Cláudio Gama (04/07/1966 - 24/04/2022), deixa viúva, Helena Vaz Pereira da Gama, dois filhos e duas netas - estava separado.

Fonte: JA

1984, conheço o Cláudio Gama no pré-universitário de Luanda (PUNIV). Encontramo-nos na mesma turma. Somos colegas. Não tarda, sentimos fluir boa energia entre nós. Fazemo-nos amigos.

 

No PUNIV, nos momentos de aperto das matérias, combinamos, vamos estudar juntos. Amarramos física, os movimentos, cálculos de velocidade, espaço, planos inclinados, blá, blá. É bom estudar em casa do Cláudio. O seu pai, Manuel Pereira da Gama Jr., era o DG da Endiama. Eu desfrutava do bom acolhimento familiar. Das boas condições. E do tratamento VIP que nos era dado pelos empregados da casa, com lanches deliciosos para ajudar a matéria a entrar mais suave.

A primeira vez que o Cláudio vai à minha casa, admira-se. Moras aqui? Sim, respondo. Ali - aponta com o dedo - vive a minha tia Zé Gama (Maria José Pereira da Gama), diz. Uma casa separa a minha da da tia Zé Gama. A tia Zé é irmã mais nova do meu pai, continua ele. Ai é? A minha mãe, Luzia Alves Bettencourt Mateus e tia Zé Gama, faziam parentesco afastado. Rimos os dois. Ele com aquela gargalhada forte e funda que lhe estremece o bigode farto. Epá, então somos também um koxito parentes. Outras risadas.

Além da tia Zé Gama, conheço, de Cabinda, anos 70, a tia Aninhas, Ana Beatriz Pereira da Gama Maguejo e sua família. A tia Aninhas era madrinha de minha irmã Toyota. Pela proximidade e boa amizade que tínhamos com a tia Zé Gama, conheço mais membros da família Gama: Ângela Pereira da Gama, Clara Pereira da Gama Elvas, Maria da Glória Pereira da Gama Gomes, Mário Pereira da Gama (Mário Gama, cantor), Serafina da Gama Paulo, de entre outros. Conheço também o patriarca dos Gama: Manuel Pereira da Gama, o avó Gama. O avó Gama ia à nossa casa de vez em quando, depois de visitar a sua filha, Zé Gama. Senta-se na nossa varanda e conversa com a mãe e o pai. Vem sempre muito bem apresentado. E humorado. Usa um lenço à volta da gola da camisa, para evitar que o calor a suje. Depois vai, num passo enérgico e saudável não obstante os muitos anos que carrega nas pernas.

1986, os meus caminhos e do Cláudio voltam a se cruzar: vestimos a farda militar. O país está em guerra. Encontro o Cláudio na Escola Político-Militar Comandante Gika, em Luanda. Somos jovens militares, recém entrados na casa dos vinte anos. Trabalhamos na mesma secção: a Cátedra de Ciências Gerais. Leccionamos a mesma disciplina, física; aos alunos do 5º curso militar. Entre nós, sempre a boa amizade fluída e o respeito.

A determinada altura, na escola militar Gika, as aulas são no período da manhã, somente. Eu sou estudante do 1º ano do curso de geofísica na Faculdade de Ciências. As minhas aulas são no período da manhã, outrossim. Bem, aquilo lá é tropa, não é? Ou o camarada sub-tenente Décio dá as aulas aos alunos, ou então trancamos-lhe! Possas pá, a minha aflição, o meu pânico. Possas! Quem me acode? Não percas o ano lectivo. Vai à faculdade. Eu cubro as tuas aulas. Sério? Assim aconteceu. O Cláudio Gama, de livre vontade, passa a dar as minhas aulas. Para eu continuar os meus estudos. Estão a ver? Mais tarde as coisas melhoram e passo a dar as minhas aulas no período da tarde.

Eterna dívida, eterna gratidão para com o Cláudio, eternamente guardada em mim. É também isto que precisava partilhar convosco. O Cláudio sacrificou-se por mim, como um verdadeiro irmão! Nga sakidila.

1992, os senhores da guerra entendem-se. Apertam as mãos. Largamos a farda, com a patente de capitão nos ombros. O Cláudio emprega-se numa companhia aérea internacional com escritório na Marginal. Eu emprego-me na educação. Dou aulas no Instituto Médio Industrial de Luanda (IMIL). Todavia, ainda estudante na Faculdade de Ciências. Ali na Marginal, também. Somos vizinhos. Estamos próximos outra vez. Volta e meia, saído da faculdade, toca de procurá-lo. Bom dia, gostaria de falar com o Cláudio. O Cláudio demora um bocadinho, mas vem. Conversamos e lembramos. É bom. Assuntos de bilhetes de passagem, o Cláudio resolve de boa vontade, não há maka, diz.

2009, Setembro ou Outubro, encontramo-nos num casamento em Luanda. Alegria. Apresentamo-nos as esposas. O Cláudio conta-me, tive um pequeno problema de saúde, mas está superado. Ok. Os nossos lugares são distanciados. De vez em quando, estico o pescoço e espreito. Onde está o Cláudio? Ah, está na pista a dançar com a esposa. Epá, abro a boca: o Cláudio baila. Baila bwé, bwé, grandes passadas. Levanto-me discreto, para melhor apreciar. Ele continua a dançar: tem a arte de dançar nas pernas dele. Fico alerta: o Cláudio levanta, eu levanto também, para saborear o seu dançar. É assim.

2018 ou 2019, estou na tuga. Desenrasco o phone do Cláudio. Ligo várias vezes. Nada. Não atende. Ligo mais, até que, sim. Oiço a sua voz poderosa. Alô Cláudio, é o Décio! Epá, Décio, meu mano. Como é? Estás melhor? Yá, graças a Deus. Falamos. Visitamos momentos e saudades. É bom.

2022, abril, principio do mês. Ligo para o Cláudio. Uma, duas vezes. Nada. Deixa lá, tento noutra altura. Vai atender.

2022, 21 de Maio. Converso com o primo Kakulo (Carlos Pereira da Gama). O primo Kakulo é primo-irmão do Cláudio. Apresento-lhe pêsames pelo falecimento da sua irmã Samahina Pereira da Gama, falecida a 24/04/2022. Conheci a Samahina em 1993 ou 94. No meio das lamentações o primo Kakulo: olha perdemos também o nosso primo Nené. Fico alarmado e desconfiado: mas qual Nené? O Nené que foi teu colega na tropa. Pronto, está tudo escangalhado! O Nené, o Cláudio? A pergunta sai-me aos gritos a martelar o teclado do phone. Sim, esse mesmo. Um câncer no esófago!

Foi assim. Afinal, o nosso encontro naquele casamento, foi o último nesta dimensão física terrestre. Por isso o Cláudio dançava feliz para eu apreciar. E me recordar mais tarde. E depois vos contar. Foi assim. Lamentei e senti muito. Primo Kakulo, envia-me só algumas informações para eu escrever um texto bem bonito ao meu amigo (a Tany, Marilina Pereira da Gama Elvas e o Márcio Pereira da Gama, filho do Cláudio, contribuíram igualmente com informações). É esta crónica-homenagem ao Cláudio Manuel Pereira da Gama, meu amigo e colega várias vezes.

Todavia, não é só da arte de dançar que o Cláudio entende e gosta. É um bom apreciador da boa música. Desde o nosso Samba, Jovens do Prenda, Zeca Moreno, Carlos Burity, Paulo Flores; a música negra norte-americana, Jazz, Blues, Otis Redding, Ray Charles, Louis Armstrong; à música clássica, e por aí em diante. Gosta particularmente do Otis Redding, Pain in My Heart, These Arms of Mine. Canta também, o Cláudio. Saca da viola, que muito bem toca, e põe lá a sua voz grossa inspirada, bem em harmonia com os acordes. Interpreta as músicas que muito gosta. Senta-se no sofá e aprecia um bom filme com a família. É assim o Cláudio Gama. Gosta só de bom ambiente, boa companhia. Aperto de mão forte, boa gargalhada e sorriso largo para os amigos.

O Cláudio, que teve o mui nobre e inolvidável gesto para comigo: deu as minhas aulas de física na escola militar comandante Gika para eu puder prosseguir com os meus estudos de geofísica na Faculdade de Ciências! Eterna gratidão. Nega sakidila.

Era oficial do exército na reserva. Capitão.

Minhas sentidas condolências à sua família.

Descansa em paz Cláudio Manuel Pereira da Gama!

(Por estes dias, vou (re)ouvir o Otis Redding que o Cláudio muito aprecia)

 

Décio Bettencourt Mateus