Luanda - O texto desta semana corresponde, com ligeiras modificações, a uma crónica com o mesmo título que publiquei no ano de 2008 na revista África 21. Reproduzo-o agora, catorze anos depois, por considerar que o mesmo pode ser útil ao debate sobre um dos episódios mais sombrios da história da Angola pós-independente. A rigor, esse debate continua por fazer, pois as sucessivas direções do partido no poder no país têm evitado o mesmo, sem explicações convincentes.

Fonte: DN

Há 31 anos, no dia 27 de Maio de 1977, registou-se em Angola uma tentativa de golpe de Estado levada a cabo por um grupo do MPLA, liderado pelo ex-ministro da Administração Interna, Nito Alves, apoiado pela antiga União Soviética. A intentona fracassou e, em resposta, o Estado desencadeou uma onda de repressão que, de tão desproporcional, deixou sequelas que permanecem até hoje. Uma dessas sequelas, quanto a mim, é a já referida dificuldade do MPLA em abordar este tema.

 

Devido a esse estranho silêncio, assiste-se, ano após ano, à reafirmação de uma visão unilateral e incompleta desse trágico episódio da história angolana recente. Declarações, artigos, livros são publicados, sobretudo no exterior do país, mostrando - e, muitas vezes, exagerando sem qualquer necessidade para tal - apenas um dos lados do referido acontecimento. Até a literatura tem sido usada para o retratar de forma parcial, curiosamente por alguns autores que dizem não gostar de "literatura política" (embora a façam, quando lhes convém).

 

Participam nessa démarche desde vítimas da repressão que se seguiu à tentativa de golpe de Estado, até alguns membros da atual oposição angolana que, na altura, foram perseguidos e presos a mando de Nito Alves. Não esquecer que este, como membro do Bureau Político do MPLA e ministro do Interior, tinha muito poder. Sabe-se, por exemplo, que foi ele quem inviabilizou um entendimento que estava a ser discutido entre a direção do referido partido e a designada Revolta Ativa. O grande nacionalista Joaquim Pinto de Andrade, falecido este ano, só não foi preso por decisão pessoal do próprio presidente Agostinho Neto.

 

Um dos aspetos mais controversos da narrativa das vítimas é o número de mortos provocados pela repressão estatal. À falta de elementos mais concretos, e com todo o respeito por aqueles que perderam a vida, vários deles meus amigos, confesso a minha dificuldade em assumir com factos as cifras que todos os anos são avançadas. A possibilidade que agora existe de os familiares das vítimas pedirem a emissão das respetivas certidões de óbito talvez ajude a clarificar a questão, mas a verdade é que o número de vítimas comprovadas é tão grande, que não precisa de ser empolado, para dar à tragédia toda a dimensão que ela realmente teve.

 

Ainda a propósito das vítimas desse episódio, é imperioso relembrar que houve vítimas entre os dois lados que se confrontaram naquele fatídico dia. Sabe-se, obviamente, que os números não se comparam, nem de perto nem de longe, mas as circunstâncias também. Por isso, a análise não pode deixar de fazer a seguinte pergunta: o que teria acontecido se os golpistas tivessem sido vitoriosos? Afinal, a cultura política da época era comum aos atores de ambos os lados.

 

A minha tese, por isso, é que é imperioso diferenciar o 27 de Maio e o "28 de Maio". No dia 27 de Maio de 1977 houve uma intentona, tendo Nito Alves e o seu grupo sido responsáveis pelo assassinato de alguns dos mais brilhantes dirigentes políticos da altura. No dia seguinte, o Estado desencadeou uma intensa repressão, que se transformou rapidamente num momento de excessos, arbitrariedades e oportunismos, que levou o país a perder uma plêiade de jovens talentos que poderiam, hoje, ser muito úteis à nação.

 

Estes são, em síntese, os factos, que qualquer análise equitativa não pode ignorar. Portanto, ou todos os atores neles envolvidos, quer num lado quer no outro, os reconhecem, assumindo cada um a sua parte, ou será extremamente difícil superá-los.