Lisboa - Cumpriram-se 45 anos desde o evento mais traumático da história de Angola, uma tentativa de golpe contra o então presidente Agostinho Neto, que respondeu de forma brutal

Fonte: O Globo

Ontem, dia 27 de maio, cumpriram-se 45 anos desde o evento mais traumático da história de Angola — uma tentativa de golpe de Estado contra o então presidente Agostinho Neto. Este respondeu de forma brutal, ordenando a prisão e o fuzilamento de um largo número de presumíveis desafetos políticos no seio do seu próprio partido, o Movimento Popular para a Libertação de Angola, MPLA. Acredita-se que durante essa vaga de cruel e violentíssima repressão terão morrido entre 30 a 50 mil pessoas.

Um filme que acaba de chegar às salas de cinema em Portugal, “Sita — A vida e o tempo de Sita Vales”, dirigido por Margarida Cardoso, revisita esses dias de intenso terror, focando na figura de uma jovem estudante de Medicina, Sita Valles, que, depois de ajudar a fazer a Revolução de Abril em Portugal, retornou ao seu país. Em Luanda, Sita juntou-se à ala esquerdista, pró-soviética, do MPLA, encabeçada por Nito Alves e José Van Dunem — com o qual viria a casar.

Margarida Cardoso entrevistou antigos presos políticos, bem como amigos e familiares de Sita Valles. Conseguiu, além disso, reunir imagens e filmes privados de Sita, mostrando-a ainda criança, na época colonial, e, mais tarde, em Portugal e em Angola, durante comícios e reuniões de estudantes. O resultado é um testemunho extremamente perturbador e, em alguns momentos, muito comovente, como quando se vê Sita brincando com o filho recém-nascido. Meses depois, José e Sita seriam forçados a entregar o bebê à avó paterna, antes de abandonarem Luanda, buscando refúgio em aldeias de camponeses, numa fuga desesperada e inútil, que terminaria com a sua prisão e fuzilamento, após longas sessões de tortura.

O atual presidente angolano, João Lourenço, cuja esposa, Ana Lourenço, também foi presa em 1977, já pediu perdão, em nome do aparelho de Estado, pelos inúmeros crimes cometidos na época. Lourenço prometeu também entregar os restos mortais dos desaparecidos às respetivas famílias.

A imagem de Agostinho Neto sai muito chamuscada do filme de Margarida Cardoso. Até há poucos anos, Neto era uma figura intocável em Angola — o grande herói nacional. Nos últimos tempos, contudo, têm sido publicados, quer em Angola, quer em Portugal, dezenas de testemunhos de antigos presos políticos, e de sobreviventes dos massacres de maio de 1977, além de extensos ensaios históricos, que implicam o antigo presidente, de forma direta, em todo o processo de repressão.

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Num famoso discurso, no próprio dia 27 de maio de 1977, Agostinho Neto chegou a dizer que as autoridades angolanas não iriam “perder tempo com julgamentos”. Cumpriu a promessa: nenhum dos presos foi julgado. Os sobreviventes só foram libertados após a morte de Agostinho Neto, a 10 de setembro de 1979, por decisão do homem que o substituiu, José Eduardo dos Santos.

No ano em que se comemora o centenário do nascimento de Agostinho Neto, a 17 de setembro, convém recordá-lo nas suas diversas facetas: como um combatente pela independência e poeta bissexto, de limitado mérito; mas também como um déspota cruel que, para se manter no poder, foi capaz das piores atrocidades.