Luanda, 24 de Junho de 2022
Minha família, minhas amigas, meus amigos
Meus caros concidadãos:


Dirijo esta carta a todos os meus concidadãos, a quem a Constituição me confere a honra e o privilégio de representar na Assembleia Nacional, em especial à grande família do MPLA. Decidi escrevê-la, inspirada pela carta aberta de desvinculação do MPLA, subscrita pelo seu veterano militante, Francisco Gentil Viana, que a publicou na semana passada.


Em 2007, quando frequentava o mestrado em Direito Constitucional, na Universidade de Coimbra, em Portugal, também remeti a minha carta de desvinculação do MPLA ao núcleo da JMPLA em Portugal, por razões similares. Hoje, Angola vive um momento ímpar da sua história política, e, por isso, senti ser meu dever fazer um apelo especial aos concidadãos da denominada grande família do MPLA.

Quem é a grande família do MPLA?

A grande família do MPLA, é tida como sendo constituída por todos aqueles cidadãos de origem etnocultural Kimbundu; pelos que, por terem sido violentados ou discriminados pela FNLA ou pela UNITA, buscaram refúgio no MPLA; pelas vítimas dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977; pelos filhos, netos, parentes e amigos dos dirigentes e militantes do MPLA. Inclui também os ex-FAPLA; os que foram ensinados a odiar ou desprezar os outros movimentos de libertação nacional, a UNITA e a FNLA; inclui os cidadãos que foram forçados pelas circunstâncias a se filiar no MPLA; inclui ainda os que em certa altura do percurso se desentenderam ou se afastaram do MPLA; e também, os que, por convicção própria, acreditam que o MPLA é Angola, e por isso a sua vontade deve continuar a ser colocada acima da Constituição da República. Caso você se sinta incluído num desses grupos, então, esta carta é especialmente para si.

 


Permito-me dirigir-lhe esta carta, cara concidadã, caro concidadão, para partilhar uma reflexão sobre o nosso país e convidar-vos a colocar uma pedra sobre o passado de disputas partidárias para construirmos um futuro de concórdia e de paz numa Angola mais justa e solidária, onde todos nos sintamos seguros, mesmo sem guardas.
Os mais velhos, da geração dos meus pais, falharam no alcance dos objetivos da luta pela independência, pela unidade dos angolanos e pela boa governação. A história que nos contaram sobre o passado conflituoso e sobre as divisões do movimento nacionalista, não se mostrou verdadeira. De facto, estaremos mais perto da verdade se reconhecermos que falhamos porque tanto em 1975, como em 1991, em 2002 e depois disso, não fomos capazes de construir um sistema político que valoriza o pluralismo e promova o compromisso entre os vários povos e as várias lideranças sociais de Angola. Não fomos capazes de colocar Angola e os angolanos em primeiro lugar e construir a nossa própria democracia!


Como resultado desta falha colectiva, embarcamos no fratricídio ainda antes da independência, perdemos centenas de milhares de vidas, sacrificamos o futuro de duas gerações e adiamos o País. A restauração da paz militar, em 2002, não anulou os efeitos nocivos da cultura da intolerância, da violência e da exclusão, que presidiu o movimento nacionalista antes e depois da independência. Passados vinte anos, não temos ainda a paz política, que tem como base o primado do direito e da lei. Como afirmou o Mais Velho Daniel Chipenda numa entrevista ao Jornal Público, de 28 de Janeiro de 1994, “Para aqueles que se consideravam os libertadores, a ideia de que outros participassem na resolução dos problemas nacionais era quase inconcebível. Esta psicose permanece ainda e enquanto não se demover tal mentalidade teremos muitos problemas”.


Daniel Chipenda, ex-presidente e ex-vice-presidente do MPLA em dois momentos distintos, prosseguiu: “O papel histórico do MPLA foi ultrapassado. Não conseguiu que se adaptasse à realidade; e se eu lá continuasse teria hoje as mãos sujas, como outros têm. Assim tenho as mãos limpas, mas o coração sangrento, pois o que se passa neste momento jamais me passou pela cabeça. Quando deixei a minha Universidade de Coimbra para ir lutar, se soubesse que isso aconteceria teria de pensar duas vezes, antes de sacrificar a minha vida toda”.


De facto, também não passou pela cabeça de outros nacionalistas, como Deolinda Rodrigues, Matias Miguéis, Viriato da Cruz, Hoji Ya Henda, Joaquim Pinto de Andrade, Gentil Viana, Lúcio Lara, José Eduardo dos Santos, Adolfo Maria, Jacob Caetano (“Monstro Imortal”), António Jacinto ou Carlos Rocha (“Dilolwa”). Mais tarde, Lopo do Nascimento veio a reconhecer, no seu discurso de despedida da Assembleia Nacional, que ainda não construímos a Nação: “proclamamos o Estado, em 1975, mas ainda não construímos a Nação”.


Para construirmos a Nação, advogo que a minha geração tem de se libertar da cultura da intolerância, da defesa do poder pelo poder, do primado do partidarismo sobre o nacionalismo; e das acusações e recriminações sobre o passado, para poder, enfim, quebrar o ciclo vicioso das rivalidades irracionais e dos bloqueios psicológicos à conquista da unidade nacional.


Temos de ser primeiramente e acima de tudo ANGOLANOS, cidadãos iguais, irmanados num projecto comum de Nação. Temos de transpor as fronteiras dos partidos para sermos País em primeiro lugar. Porque de facto, nenhum dos Movimentos de Libertação - em particular a UNITA e o MPLA - constitui hoje um Partido político no sentido clássico do termo. Ainda não chegamos aí. A paz que nos governa ainda não é a paz política, das liberdades civis, é a paz militar, negociada pelos militares, em ambiente militar, com objectivos hegemônicos.


Falta-nos a paz das liberdades civis, a paz que está consagrada no artigo 11.º da Constituição, que deve ser negociada pela Nação, todos em igualdade. A paz dos cidadãos, que nos permitirá construir a democracia dos cidadãos, e não apenas a democracia dos Partidos! Esta é a paz que nos libertará do passado conflituoso para podermos discutir em liberdade a ANGOLA que em Alvor e em Bicesse não foi discutida. Só esta paz nos permitirá fazer a transição da cultura autoritária para a cultura democrática, da cultura “neocolonial” para a cultura da liberdade, da independência e da igualdade. Só esta paz produzirá o renascimento de Angola e sua renovação ou desenvolvimento social.


Há entre os patriotas angolanos fortes sinais de que o País amadureceu, há um novo pensamento político, há mais participação cidadã e, acima de tudo, existe a constatação de que a vontade de mudar já é mais forte do que o medo da mudança. Por isso, a hora da mudança é agora!


O actual processo de democratização de Angola surgiu como um subproduto do processo de paz militar, que foi imposto aos angolanos, em grande medida, pelos patrocinadores da guerra fria, os governos dos Estados Unidos da América e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, para se pôr fim ao conflito político-militar que assolou o país de 1975 a 1991. As causas desse conflito incluem a ausência de uma cultura democrática entre os “libertadores” angolanos; os resquícios de um processo de descolonização mal conduzido; e os interesses geopolíticos dos governos de Portugal, Estados Unidos da América e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Estas causas não foram discutidas, nem no Alvor, nem em Bicesse, nem em Lusaka ou no Luena. Pelo contrário, foram exacerbadas e asfixiaram o interesse nacional. Por isso, a democracia tarda a chegar e a busca da unidade nacional é objecto de ostracismo.


O processo de paz deu mais ênfase aos aspectos militares do conflito político, sendo a democratização do país equiparada à simples realização de eleições, para legitimar os ganhos militares das partes em conflito. Questões fundamentais da construção do sistema democrático, como a participação política dos cidadãos na vida pública, o modelo adequado de representação política, a descentralização política, o desenvolvimento comunitário, a estrutura dos contra-poderes, a democratização da economia ou a matriz cultural do desenvolvimento, não foram sequer afloradas.


Aliás, são testemunho disso as expressões «a democracia nos foi imposta»; «vote pela paz (militar)»; «ninguém nos tira nas urnas o que conquistamos no campo de batalha»; «a democracia não enche a barriga»;


Se no plano jurídico-constitucional os Acordos de Paz de Bicesse originaram uma ruptura na ordem constitucional estabelecida em 1975, tal ruptura não ocorreu na cultura política autoritária enraizada desde 1975 nem no ordenamento político-administrativo dirigido por um Partido Estado, que se posiciona acima da Constituição. Consequentemente, o país não teve uma ruptura constitucional efectiva, mas passou a viver, desde 1992, um conflito real permanente entre a conduta dos poderes públicos e os preceitos do Estado de Direito Democrático, constitucionalmente consagrados desde 1992.


Por exemplo, (1) o «direito» do MPLA de exercer a «direcção política, económica e social da Nação», nos termos do artigo 2.º da Lei Constitucional (LC) de 1975, não parece ter sido «revogado» da mente dos decisores públicos pela ruptura constitucional de 1992. De igual modo, (2) o direito de acesso dos cidadãos, individualmente, ao exercício do cargo de Presidente da República, consagrado no artigo 60.º da LC de 1992, foi tido como uma imposição inconveniente do estrangeiro, e, como tal, foi revogado pela Constituição de 2010. A revisão constitucional ocorrida em 2021 manteve tal revogação. (3) A irresponsabilidade civil e criminal do Presidente da República, já indevidamente consagrada no artigo 65.º da LC de 1992, foi agravada pela Constituição de 2010 e pela jurisprudência que lhe seguiu, isentando o Titular único e singular do Poder Executivo do Estado do dever de prestação de contas e da fiscalização parlamentar, antes previstos nos artigos 83.º e 101.º da LC de 1992. É nesta cultura de subversão do constitucionalismo que radica a institucionalização efectiva da corrupção dos processos eleitorais em Angola.


Com efeito, a Constituição formal, promulgada em 2010, ainda não é tida por todos os poderes públicos como Constituição material, real, porquanto, a vontade do Partido Estado e de seu Presidente têm-se afirmado, ao longo dos anos, como a constituição material, real em Angola, às quais os órgãos de soberania do Estado devem submeter-se. Tanto a Assembleia Nacional como os Tribunais Superiores e a Comissão Nacional Eleitoral sucumbem aos ditames da «força normativa» desta «Constituição real, super atípica», que a classe jornalística já apelidou ironicamente de «ordens superiores». Esta realidade, torna a democracia angolana numa democracia tutelada e estéril, porque não produz os ingredientes da alternância, que são, entre outros, a liberdade de imprensa, o funcionamento independente de um serviço público de rádio e televisão, a imparcialidade e a isenção da Administração pública e da Administração eleitoral, a independência dos tribunais, a igualdade de tratamento de todos os partidos políticos pelos poderes públicos e o exercício do direito de oposição democrática. Além disso, transforma o Estado constitucional angolano num Estado falhado, no sentido jurídico-constitucional do termo. Os meus colegas da academia sabem bem do que estou falando.


As consequências dessa subversão são a captura do Estado constitucional por uma oligarquia que reconheceu já ser corruptora e predadora, a pobreza crónica para as maiorias, a asfixia do desenvolvimento humano e a institucionalização do peculato, da corrupção e da impunidade para beneficiar uns poucos.


Os cerca de 36 programas sociais em curso, ajudam a mitigar de certa forma a pobreza de algumas famílias, mas não eliminam as suas causas estruturais nem reduzem os efeitos das desigualdades e do subdesenvolvimento. Os recursos alocados para as transferências monetárias, para os programas de geração de trabalho e renda e de ampliação da infraestrutura, dos serviços sociais, da oferta de bens e da capacidade institucional, incluindo doações, são uma gota de água quando comparados com os desvios estruturais que uma minoria faz do erário por via da corrupção de alta hierarquia.


Este quadro, aliado ao desinvestimento na educação de qualidade para as maiorias, inviabiliza a longo prazo o desenvolvimento harmonioso do País e periga a paz social, porque rouba o futuro à juventude e produz desesperança.


Em 2017, ao consagrar como política pública o lema «corrigir o que está mal», o MPLA reconheceu em parte ser o principal autor moral e material das práticas sistêmicas de peculato, improbidade e de corrupção. Porém, tal reconhecimento não lhe confere capacidade nem legitimidade para restaurar a República e dirigir o desenvolvimento social. Porque simplesmente esgotou e já não consegue.


Primeiro, subverteu a democracia para deter e exercer o poder absoluto. Depois, utilizou o poder absoluto para corromper a sociedade e o Estado de modo absoluto. Este facto coloca-o na posição de principal adversário político das aspirações de liberdade do povo angolano e desqualifica-o para dirigir o combate à corrupção e os desafios da reforma do Estado.


De igual modo, o resto da Nação também não pode proceder às reformas numa atitude “anti-MPLA” ou “sem o MPLA”. Advogo que ninguém deve ser excluído desse processo transformacional que vimos adiando desde 1975. É um processo que deve ser objecto de um compromisso nacional, sem KO´s, mas com grandeza moral e civilidade, no espírito da reconciliação e com sentido de Nação.


O MPLA deve fazer parte desse nacional nacional, porque é este partido que tem tido as maiores dificuldades em construir a unidade no seu seio e no País. É o único partido que, mesmo em 1974, estava dividido em 3 facções É o único que promoveu um “golpe de Estado”, em 1975. Dois anos depois, em 1977, estava dividido em 4 facções e transformou-se no único Partido africano (ou do mundo!) que utilizou o Estado para violar barbaramente os direitos fundamentais dos cidadãos no contexto de um conflito intra-partidário.


De facto, os nossos Mais Velhos não nos contaram a verdadeira História do MPLA. Há muito que o MPLA se desviou dos seus fundamentos e dos objectivos da unidade do movimento nacionalista angolano. O presidente João Lourenço teve a coragem política de iniciar o processo de reposição da verdade, mas ainda não destampou a panela toda!


Para nos reconciliarmos com a verdade histórica e encontrarmos a liberdade, temos de fazer uma ruptura com o passado e vencer o medo. Não precisamos de violência, nem de actos subversivos à Constituição. Precisamos apenas de coragem interior, no dia 24 de Agosto, para votarmos por Angola, encerrando o ciclo das makas antigas dos “Mais Velhos”, e abrindo o ciclo da construção da unidade nacional. Votar por Angola é perseguir desta vez o voto patriótico, o voto útil.


Com o voto útil estaremos a dar o primeiro passo na construção do novo País, isto é, impedir que o MPLA, sim, este MPLA que se desviou dos seus fundamentos e das aspirações dos seus fundadores, tenha uma maioria subversiva para continuar a legitimar a corrupção e adiar o País. O voto útil do próximo dia 24 de Agosto não é um voto partidário, no Partido do nosso coração, é um voto patriótico, um voto extraordinário, uma excepção, um voto por Angola. O voto útil é a forma mais inteligente e pacífica de garantirmos a formação de uma nova Assembleia constituinte para discutir uma nova agenda nacional, centrada no futuro, sem olhar pelo “retrovisor do passado”, como gosta de dizer o meu caro colega Adão de Almeida (espero que não seja molestado por eu o citar)!


Naturalmente, o MPLA não iria aprovar uma lei que permitisse criar um novo ente jurídico para quebrar com os vícios do passado e congregar a vontade nacional de mudança sem constrangimentos burocráticos. Ele prefere apostar na divisão dos angolanos. Para contrariar isso, é imperativo evitar a dispersão do voto pela mudança. Para tal, os amantes da mudança terão de concentrar o voto útil numa só candidatura, a candidatura da UNITA. Não porque a UNITA seja o ideal nem porque gostamos todos dela, ou dos seus líderes, mas é um imperativo das circunstâncias. Devo confessar-vos que eu também não gosto do comportamento e das taras de todos, mas considero ser a melhor ponte para terminarmos o ciclo da intolerância, da mentira, da corrupção e do desgaste. Pior do que está, Angola já não fica.


Ao apresentar uma candidatura inclusiva e firmar por escrito compromissos de participação política e de unidade de acção com outras forças, da sociedade política e da sociedade civil, a UNITA está a dar provas de que pode liderar o processo de construção da unidade nacional e ser depositária fiel do seu voto por Angola!


Estou ciente de que nem todos apoiarão ou compreenderão este meu apelo, incluindo alguns dos meus colegas da UNITA. Mas estou igualmente convencida, em sã consciência, que este é o caminho certo para Angola. Quanto mais concentrarmos o voto útil numa só candidatura, melhor! Se advogamos a paz e a reconciliação para o País todo, então, que o façamos primeiro entre nós, com o nosso próximo mais próximo. A hora é agora! Angola em primeiro lugar!


O voto por Angola, não é um voto militante, é um voto dos patriotas - com ou sem partido - para tirar Angola deste ciclo vicioso e nos permitir fazer aquilo que os nossos mais velhos não foram capazes de fazer em 1975, em 1991 ou em 2002: lançar as bases das reformas para a construção da Nação.


O voto patriótico é o voto que nos permitirá de facto corrigir na raiz o que está mal e melhorar com sustentabilidade o que está bem. Porque a cultura dos Mais Velhos que nos trouxe até aqui dificilmente mudará agora aos 70 anos!


Não vos peço para deixarem o MPLA, o Partido do vosso coração! Não é preciso.


Apenas me permito pedir-vos que, desta vez, e só desta vez, votem por Angola. Votem pela paz política e social. Votem pela unidade nacional. Deem uma chance à construção da democracia angolana!


Atenciosamente,
Vossa serva,
Mihaela Neto Webba