Paris  - "O que eu disse foi mal pensado, e eu não vou me defender por isso, mas eu vou deixar claro que o termo é um daqueles largamente e historicamente usados de forma coloquial no português brasileiro como sinônimo de 'cara' ou 'pessoa' e nunca com intenção de ofender…." , essas são as palavras do Piquet para se defender do racismo que demonstrou. "Historicamente", ele disse calmamente. Estou até surpreso que ele não tenha acrescentado à sua cândida defesa, "O meu melhor amigo é negro!", a réplica natural dos seus semelhantes pegos num acto de jactância no seu racismo cultural e fundamental. E costumam falar de um amigo negro do tipo alienado que encontramos em Angola, um tipo que não tem meios ou consciência para os ajudar a se purificar da sua sujidade supremacista para entrarem limpos no mundo de hoje, pois um Negro consciente que aceitaria ser amigo de uma pessoa como o Piquet o mudaria com o tempo ou não permaneceria seu amigo por muito tempo. O Piquet é o tipo de pessoa que os franceses chamariam desdenhosamente de "beauf", ou seja, alguém que eu chamaria de cretino falocrático do mundo branco do passado que ainda vive com os imaginários da Idade Média, consciente ou inconscientemente. Mas muitas vezes inconscientemente. Ele é um pouco como muitos dessa geração que criaram o hábito ao longo da vida de estuprar mulheres com prazer e que, na era do #MeToo e da emancipação das mulheres, não entendem porque razão são chamados a prestar contas hoje. É, portanto, uma cultura fundamental e bem enraizada.

Fonte: Club-k.net


Mas o próprio Piquet admite, provavelmente sem saber, que o seu racismo é histórico. Diz alegremente "neguinho" porque é assim e, portanto, normal para ele, o que mais uma vez prova que ele é apenas um resíduo da substância obscena do racismo cultural e estrutural banalizado na Lusofonia, um espaço triste que ainda não foi vigorosamente desafiado neste campo. Então o problema não é o Piquet, é a cobardia e complacência dos intelectuais das sociedades lusófonas. O Piquet apenas expressa o que realmente é o Brasil e por extensão todo o mundo lusófono onde a elite, principalmente a negra, é essencialmente alienada, pois quer ser branca, e está desprovida de armas para decodificar adequadamente e combater efectivamente o racismo. Por exemplo, se aqueles que são chamados de intelectuais em Angola encontram tempo, na velhice, uma grande idade de sabedoria para um africano, para exibir todo o seu conhecimento e se gabar no Jornal de Angola do seu vigor sexual através de uma cena vulgar iniciada num elevador inocente na Etiópia, vamos concordar que é algo difícil de imaginar em alguém como Wole Soyinka, fora da ficção, porque ele sabe que culturalmente não se espera que um africano sério na sua idade aborde publicamente tais assuntos pessoais com tão pouco pudor, especialmente quando não trazem nada filosoficamente essencial ou útil no contexto africano, excepto talvez para nos mostrar a vaidade sombria e revelar a verdadeira essência cultural do seu autor, como lutar efectivamente contra o racismo se os imaginários estão tão desalinhados e perdidos?


E se no seu texto publicado no passado dia 28 de Maio no jornal brasileiro O Globo, outro, Agualusa, afirmou que o dia 27 de Maio foi "o evento mais traumático da história de Angola ", sem nos dizer como chegou a esta conclusão e qual foi a unidade de medida, como pode ele com essas aproximações voluntárias ou involuntárias realmente contribuir para um trabalho memorial pacífico que respeite a dor de cada um dos seus compatriotas que ele deve representar objectivamente no mundo, levando em conta o lugar que ocupa em nome de Angola? Esta alegação não tem fundamento concreto devido ao facto de o MPLA também ter assassinado pessoas do mundo do Agualusa? Então nessa classificação de memórias que o Agualusa quer estabelecer, em que estudos ele se baseou para afirmar que o trauma criado por esse evento é mais traumático do que aquele criado pela nossa Guerra Civil, por exemplo? Pois mesmo entre os Assimilados de Luanda, que foram poupados graças aos confortos materiais que herdaram dos seus amos portugueses na Independência e que, portanto, nunca ouviram o som de um verdadeiro obus, ainda há pessoas que vivem com uma bala alojada no corpo, consequências desta guerra! E enquanto o Agualusa nos convida a participar plenamente neste concurso de memórias que ele quer lançar, o que dizer da Colonização e Escravidão? E os recentes acontecimentos de Cafunfo? A Lusofonia é realmente um mundo estranhamente à parte! Mas é assim toda vez que leio um texto desse escritor. Continuo com fome, principalmente quando ele se aventura a tratar de assuntos fora do seu campo artístico e ficcional, já que, aparentemente, tudo para ele é ficção! Em todo o caso, se a DISA deixou elementos que permitem medir o nível deste trauma, uma vez que nem a ONU sabe realmente a extensão desse crime (um dos eventos mais traumáticos da história de Angola e não "o evento mais traumático da história de Angola") e ainda menos o seu grau traumático, alguns juízes dos macabros assassinatos do 27 de Maio organizados pelo MPLA continuam vivos e sabem escrever. Pedimos, portanto, que nos digam se o que o Agualusa diz sem provas é verdadeiro e justificado.


Por outro lado, não devemos perder tempo com a polémica em torno de Nelson Piquet. Ele é apenas um resíduo de uma substância mais suja e insidiosamente sórdida: o racismo no mundo e em particular no mundo lusófono. O mundo do Piquet criou uma mentira na qual ele ainda vive, até se perdeu nela. Brancos como o Piquet ainda não entenderam que o Negro nunca foi essa entidade imaginária que foi criada para eles. Eles não sabem que a sua fraqueza está precisamente no facto de terem menosprezado outros humanos, de terem tentado negar a sua humanidade para dar a si mesmos um sentimento de superioridade limitante; porque eles não conhecem os humanos além de todas as certezas brancas que eles mesmos inventaram. É uma forma engraçada de justificar uma superioridade, é até contraditória com a ideia. Devemos antes começar por nos questionar mais seriamente sobre as razões perniciosas que ainda autorizam em Angola os pais de uma mestiça sem interesse (claro, além de ser reificada como objecto de cobiça) a se oporem a uma relação entre a sua filha e um homem negro como eu. É verdade que a ideia de uma união com uma mulher de tal mundo nunca passou pela minha cabeça. Mas pais que fazem isso com um homem como eu, um Negro que as mulheres mais dinâmicas e interessantes da minha geração acham interessante; mulheres das sociedades modernas em que vivo, belas, educadas e dotadas de carácter, de todas as origens do mundo e às vezes mais ricas do que eu, deveriam chocar-nos mais do que a baixeza de um Nelson Piquet. É esta doença que a sociedade angolana deve combater, por exemplo, e devemos começar por dissecar clinicamente as obras daqueles que se dão a missão de criar imaginários que não edificam todos os angolanos e que, por extensão, mantêm a discriminação.


Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), colunista lifestyle da revista Forbes Afrique, cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é headhunter.