Lisboa - Podemos dar o desconto por Tchizé dos Santos, filha do falecido José Eduardo dos Santos, ter perdido, como aconteceu a tantos de nós, o seu pai. Mas ao contrário de outras vítimas da fúria mediática, ela não foi exposta. Decidiu expor-se. Ou “aproveitar o tempo de antena”, como disse. E, se quisermos ser honestos, nada no seu comportamento durante a entrevista que deu à CNN resulta do trauma, porque nada foi novidade no que já era o seu perfil público.

Fonte: Expresso

Na segunda-feira fomos atropelados pela filha de um ex-ditador. Ela não deve saber. Nem que atropelou toda gente, pois estava entretida a ouvir a sua própria gritaria. Nem que o seu pai era ditador. Até garantiu que, tendo estado 38 anos no poder sem ter sido nominalmente eleito, ele desejava a alternância democrática. Falou várias vezes dos atuais atropelos ao Estado de Direito Democrático, uma fantasia que acredita ter existido em Angola quando a ditadura a protegia a ela e que deixou de existir quando passou ela a estar, apesar do conforto de um exilio dourado, no lugar em que tantos outros sempre estiveram.

“O governo de Angola é criminoso, liderado por um criminoso. Que viola a separação de poderes e que viola a constituição de Angola. (…) O presidente de Angola é um ditador corrupto.” A frase podia ter sido dita por qualquer opositor do ex-presidente, seu pai.

Quem vive em tal dissonância com a realidade até pode acreditar que foi por mérito próprio que a sua empresa geriu parte da Televisão Pública de Angola no preciso momento em que, por mero acaso, o seu pai era Presidente da República. “Subi a pulso”, disse Tchizé. E eu acredito que ela acredite nisso. Um dos sinais do privilégio absoluto é a total ignorância desse privilégio. É a convicção, mesmo quando isso é inverosímil, que o mérito explica o privilégio. Em Angola, dá-se o acaso dos filhos do ex-presidente concentrarem em si uma extraordinária dose de mérito e dinheiro. Prova que há mérito? Ela estava ali, na CNN, a dar uma entrevista. Não ocorreu à política e empresária e produtora que a entrevista era sobre… o seu pai.

A entrevista foi torrencial, com uma violência torrencial e uma falta de educação torrencial. A evidência torrencial de que estamos perante alguém que nunca teve de cumprir regras, esperar pela sua vez, ouvir uma pergunta, dar uma resposta, respeitar um jornalista ou qualquer outra pessoa, ser contrariada. O que vimos foi a exibição, ao vivo e a cores, da arrogância agressiva de uma descendente da casta. Eles existem em todos os cantos do mundo. Filhos de ditadores milionários que cresceram insuflados de arrogância, prepotência e arbitrariedade. Quando tudo desaba fica o triste espetáculo que vimos na segunda-feira.


Aquela entrevista, que deixou derreada qualquer pessoa que a ouviu, a começar pela paciente jornalista, não passou de um lavar de roupa suja entre herdeiros de um milionário falido. História banal entre irmãos e madrastas desavindas. Não merecia mais do que a gritaria dos programas da manhã, se não se tratasse da filha do homem mais poderoso da história de Angola e herdeira da que já foi uma das famílias mais ricas de África.

Confesso que ouvir uma milionária (ou ex-milionária?) mimada a dizer que tinha sido corrida do Comité Central arrepiou a minha sensibilidade de esquerda. E o que a senhora falou do povo. Que o povo angolano tem José Eduardo dos Santos como pai. Que o povo angolano acha que quem vá ao funeral de José Eduardo dos Santos em Luanda é um traidor. O povo é ela e as mensagens que ela recebe – uma das suas maiores conquistas são os muitos seguidores que tem nas redes sociais, garante. Angola deve-lhe dinheiro, Portugal deve-lhe dinheiro, eu próprio acho que lhe devo dinheiro, diz uma mulher que nasceu rica graças ao roubo do povo.

Mas, apesar de tudo, foi instrutivo. Aquela meia hora de impertinência foi a caricatura do legado deixado por uma geração de homens e mulheres que corajosamente lutou contra o colonialismo, arriscando a vida pela sua liberdade e independência. Se alguém precisava do retrato da decadência do sonho que o MPLA representou para muitos angolanos e até portugueses solidários com a luta de libertação, ficou tudo muito claro. Uma peixeirada entre famílias de milionários, de que João Lourenço, sejamos justos, não se distingue.