Luanda - Pese embora a actual azáfama da campanha eleitoral, há ainda assuntos públicos que não podem ser sonegados sobretudo quando se trata da dignidade humana e dos direitos humanos, mormente o direito à liberdade. Volto a apelar aqui o caso Augusto Tomás/CNC no rescaldo do Acórdão da Reforma do Cúmulo Jurídico do Tribunal Supremo (1ª Secção da Câmara Criminal) referente ao Proc.N.002/19, sobre o qual pretendo partilhar aqui algumas reflexões. Nos meus primeiros artigos em relação ao assunto procurei explorar as causas políticas e demais banalidades que ditaram a desgraça do antigo Ministro dos Transportes no consulado do Presidente João Lourenço. No meu último artigo sobre o caso (vide Club k) fiz uma pequena incursão sobre matérias do Direito numa conjugação dos subsídios técnicos de alguns juristas consultados com a minha modesta (mas necessária) cultura jurídica. Desta feita, volto ao mesmo exercício, valendo-me também de subsídios técnicos de alguns juristas, com o propósito de fazer um enquadramento e buscar alguma inteligibilidade do instituto do PECULATO ora consagrado no actual CÓDIGO PENAL ANGOLANO (CPA) para equacionarmos a sua aplicabilidade no caso em apreço, atendendo ao facto de que o réu Augusto Tomás foi, nesse despacho da revisão da pena, condenado por crime de peculato na pena de 7 (sete) anos de prisão maior e condenado ainda a indemnizar o Estado com os seguintes montantes: kz 1.501.173.202.00 (mil milhões, quinhentos e um milhões, cento e setenta e três mil, duzentos e dois kuanzas), USD 40.557.126.00 (Quarenta milhões, quinhentos e cinquenta e sete mil, cento e vinte e seis dólares americanos), $ 13.857.804.00 (Treze milhões, oitocentos e cinquenta e sete, oitocentos e quatro Euros).

Fonte: Club-k.net

Caso Augusto Tomás

Não me referirei ao crime de participação económica em negócio com qual o TS faz um cúmulo jurídico de pena única de 7 (sete) anos e 1 (um) mês de prisão maior. Este exercício para o qual tenho estado a investir tempo e esforço intelectual pode, para alguns, parecer fútil porque não vai mudar a sorte do visado, tendo em conta o mérito do desempenho laborioso dos advogados da causa que nunca se cansaram de litigar pela inocência do réu, ora seu constituinte. Certo de que a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos, segundo Montesquieu, não posso consentir quedo e mudo que, sabendo como sei o que significa um só dia de prisão, seja alguém privado da sua liberdade quando a culpa não é tão convincente (in dubio pro reo). Voltaire dizia que ´´É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente´´. Esse princípio ganhou carta de cidadania nos meios forenses na medida em que o impacto de uma sentença condenatória sobre um inocente é de longe mais avassalador do que a absolvição de um culpado.


Assim sendo, vamos evocar de imediato o art.º 362 do CPA que dispõe o seguite:


(Peculato)
1. O funcionário público que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou alheio, de dinheiro ou coisa móvel que lhe não pertença e lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que tenha acesso por virtude do seu cargo ou das suas funções é punido, conforme o valor da coisa móvel ou do dinheiro apropriados, com as seguintes penas:

a) Prisão de 1 a 5 anos, se o valor da coisa apropriada não for elevado;


b) Prisão de 3 a 10 anos, se o valor da coisa apropriada for elevado;


c) Prisão de 5 a 14 anos, se o valor da coisa apropriada for consideravelmente elevado.

2. As penas previstas no número anterior são agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando o agente for titular de cargo político.

3. As penas previstas no n.º 1 são especialmente atenuadas se o funcionário:

a) Denunciar o crime no prazo de 90 dias, após a prática do acto e, sempre antes da instauração de procedimento criminal;

b) Auxiliar concretamente na obtenção e produção de prova decisivas para identificação de outros agentes do crime.


Da leitura da disposição do art.º 362.º do Código Penal Angolano, pode-se notar que PECULATO (integrado no capitulo IV dos crimes cometidos no exercício de funções públicas e em prejuízo de funções públicas) é um crime que consiste na apropriação, mediante abuso de confiança, de dinheiro público ou de coisa móvel apreciável, para proveito próprio ou alheio, por funcionário público, que os administra ou guarda. É, por isso, um dos tipos penais próprios de funcionários públicos contra a administração em geral. Notámos ainda que o verbo nuclear do tipo é "APROPRIAR (-SE)" de valores, bens móveis, de que o funcionário tem posse ou acesso justamente em razão do cargo/função que exerce.


O peculato é um crime próprio do funcionário público contra a administração, diferentemente de apropriação indébita que é praticada por qualquer pessoa contra o património. Também pode ser praticado por pessoa alheia à Administração Pública - particular -, no caso desta ter ciência de que o delito está a ser praticado por um funcionário público, aproveitando-se desta qualidade.
Constituem ainda traços característicos do crime os seguintes:


1. É um crime funcional impróprio: se o autor do crime não for funcionário público, a conduta continua típica, mas o tipo crime será outro e não peculato. Muito embora se trate de crime cujo sujeito activo deve ser funcionário público, pode haver concurso de pessoas, envolvendo um particular. Neste caso, por força do disposto no art.º 24.º do Código Penal Angolano, se o particular tem conhecimento da qualidade de funcionário público do co-agente e concorre com a conduta, então responderá por peculato, comunicando-se a condição pessoal do co-agente ao particular. Se este desconhece a qualidade funcional do co-agente, mas também concorre para o delito, então responderá por apropriação indébita ou furto;


2. O sujeito passivo do delito é o Estado: trata-se de crime contra a Administração Pública. De todo modo, em algumas circunstâncias o sujeito passivo pode ser um particular, que é o proprietário do bem apropriado, que se encontrava sob a custódia da administração (no caso, peculato-malversação). Se o produto do crime for de natureza pública, o sujeito passivo será o Estado. Se for de natureza particular, o sujeito passivo será o particular;


3. O delito é classificado como material: para que seja consumado o crime é exigido que haja benefício auferido pelo agente;


4. O elemento subjectivo do tipo é o dolo: o elemento subjectivo específico consiste na vontade de apossar, definitivamente, de bem mediante benefício próprio ou de terceiro. Para obter a tipificação do peculato, é necessária a consciência e a vontade do agente activo em praticar o crime para obter o facto típico. Exige-se a intenção de, definitivamente, não restituir o objecto e de obter proveito em virtude da ilicitude.


Atentos ao que já foi dito, pode-se afirmar que o funcionário público poderá cometer o crime de peculato se:


• se apropria, intencionalmente, do dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem posse em razão do cargo (peculato-apropriação);


• aplica ao objecto material destino diverso que lhe foi determinado, em benefício próprio ou de outrem (peculato-desvio);


• não tendo a posse do objecto material, o subtrai ou concorre para que um terceiro o subtraia, em proveito próprio ou alheio, por causa da facilidade proporcionada em razão do cargo (peculato-furto).
Para a melhor compreensão do nosso tema, julgamos necessário saber:


1. O Ministro é funcionário público?
Em atenção à redacção do nr. 2 do art.º 108.º da Constituição da República de Angola, o Ministro é um Auxiliar do Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo. Por isso, ele, o Ministro, não pratica actos próprios, senão por delegação do Presidente da República.


2. O Ministro tem posse de dinheiro ou coisa móvel que não lhe pertença?


3. O Ministro tem acesso a dinheiro ou coisa móvel que não lhe pertença?


4. O Ministro, por virtude do seu cargo ou das suas funções, tem posse ao dinheiro ou coisa móvel da entidade que superintende?


5. O Ministro, por virtude do seu cargo ou das suas funções, tem acesso ao dinheiro ou coisa móvel da entidade que superintende?


6. O que é, afinal, superintendência do Ministro sobre um Instituto Público?


Em termos elementares, segundo os juristas, “(..) existe administração autónoma quando uma determinada esfera da administração está confiada, em maior ou menor medida, aos próprios interessados, que assim se auto-administram, em geral por intermédio de um órgão ou organismo representativo (..)” reflectindo-se a autonomia administrativa na capacidade de praticar actos jurídicos susceptíveis de surtir efeitos jurídicos imediatos na esfera jurídica dos destinatários individualizados, os denominados actos lesivos, portanto, apenas sujeitos a controlo judicial e a autonomia financeira na “(..) garantia de receitas próprias e [n]a capacidade de as afectar segundo orçamento próprio às despesas definidas e aprovadas com independência (...)”.


Se entendermos a hierarquia como um “(...) conjunto de órgãos administrativos ligados por um vínculo de subordinação que se revela no agente superior pelo poder de direcção e no subalterno pelo dever de obediência(...)”, a tutela como consistindo no “(...) conjunto dos poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da actuação(...) daqui resultando que a tutela administrativa pressupõe a existência de duas pessoas colectivas distintas e a superintendência como “(…) o poder conferido ao Estado, ou a outra pessoa colectiva de fins múltiplos, de definir os objectivos, de guiar a actuação das pessoas colectivas públicas de fins singulares colocadas por lei na sua dependência (...), vemos que os poderes de tutela e superintendência excluem a hierarquia, na medida em que esta pressupõe o poder de direcção por meio de comandos concretos, a tutela, o poder de controlo sobre a regularidade ou adequação da actuação e a superintendência, o poder de orientação por orientações genéricas e conselhos.


É neste sentido que o Prof. Diogo Freitas do Amaral afirma que a tutela administrativa corresponde “ao conjunto de poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito na sua actuação”.


Repetindo o que dissemos acima, a tutela administrativa pressupõe a existência de duas pessoas colectivas distintas - a tutelar e a tutelada. Entre estas duas pessoas colectivas a primeira é, necessariamente, pública, a segunda é, na maior parte dos casos, também.


Os poderes desta tutela são de intervenção na gestão da pessoa tutelada, sendo, por isso, o fim da tutela administrativa o assegurar, em nome da entidade tutelar, que a entidade tutelada cumpre as leis em vigor e garantir que são selecionadas soluções convenientes para a prossecução do interesse público.


Para terminarmos a nossa abordagem com a diferença entre TUTELA ADMINISTRATIVA e SUPERINTENDÊNCIA, reiteramos que aquela, de acordo com os Professores Marcello Caetano e Sérvulo Correia, quer assuma as formas de tutela correctiva, tutela inspectiva e substitutiva, não se confunde com esta, embora a doutrina reconheça que duas pessoas colectivas possam estar, simultaneamente, ligadas por relações de superintendência e tutela. Esta ocorrência pode dar-se em relação às entidades que compõem a administração instrumental do Estado.


Ora, nos vários Estatutos Orgânicos de Ministérios, lemos “O Ministro (…) exerce, por delegação do Titular do Poder Executivo, a superintendência sobre os Institutos Públicos (…) existentes ou criados na sua esfera de competência”. Quanto ao Ministro dos Transportes, por exemplo, nas suas competências sobre as entidades que superintende, lemos, no nr. 2 do art.º 5.º do Estatuto Orgânico:


(i) “h) Nomear e exonerar os membros de direcção dos Órgãos


(ii) a participação activa dos trabalhadores dos (…) serviços estatais sob sua superintendência na elaboração e controlo dos planos de actividade”; Superintendidos”;


(iii) “i) Conferir posse aos titulares de cargos de Direcção e Chefia por si nomeados”;


(iv) “l) Assegurar o cumprimento da legislação em vigor ao nível (…) dos órgãos sob sua superintendência inseridos na administração indirecta do estado”;

(v) “m) Promover

(vi) “o) Assegurar o acompanhamento e o apoio à auditoria e controlo das actividades dos (…) órgãos superintendidos, no que se refere à legalidade dos actos, à eficiência e rendimentos dos serviços, à utilização dos meios, bem como às medidas de correcção e melhoria dos procedimentos”;


(vii) “t) Exercer as demais competências estabelecidas por lei ou determinadas superiormente”.


Podemos ver que da superintendência do Ministro dos Transportes não cabem a prática de actos de gestão dos Institutos Públicos; O Ministro dos Transportes não faz ou determina pagamentos no Instituto Público, não autoriza celebração de Contratos, bem como não aprova os Relatórios de Gestão e Contas dos Institutos Públicos. Os Directores-gerais dos Institutos Públicos são autónomos e respondem, directamente, pela gestão dos respectivos Institutos Públicos. Neste sentido, a Agência Reguladora de Certificação de Carga e Logística de Angola (ARCCLA), sucessora do Conselho Nacional de Carregadores (CNC) por força do Decreto Presidencial n.326/20, de 29 de Dezembro, é um instituto sob a superintendência do Ministério dos Transportes, dotado de personalidade jurídica própria, autonomia administrativa, financeira e patrimonial. Por isso, será, de todo impossível, o Ministro dos Transportes cometer crime de peculato, apropriando-se para si ou para terceiros dinheiro ou coisa móvel do instituto que superintende.


Considerando que o Ministro não é funcionário público, poderemos concluir que ele SÓ COMETERÁ o crime de peculato:


1. se houver concurso de agentes, ou seja, se o Ministro cometer o crime com o Director (ou os Directores) do Instituto Público;


2. se se provar e precisar a co-autoria entre o Ministro e o Director (ou os Directores) do Instituto Público;


3. se se provar que o Estado (ou um particular), proprietário de dinheiro ou coisa móvel apreciável, ficou desfalcado ou teve prejuízo. O bem, juridicamente, protegido, nesse caso, é a Administração Pública, no que diz respeito à preservação do património público (conotação patrimonial) e à integridade dos agentes do poder (conotação moral). Eventualmente, também, protege-se o património de particular nos casos em que a Administração Pública, por qualquer motivo, estiver sob a guarda deste;

4. se se provar que teve a intenção de apropriar-se (para si e/ou para o Director) de dinheiro ou valor móvel, que subtraiu;

5. se se provar, determinando e/ou precisando, a quantidade de dinheiro ou valor móvel, que foi subtraído do Estado ou de um particular;


6. se se provar que o produto do crime (dinheiro ou coisa móvel apreciável) beneficiou o Ministro ou o Director (ou os Directores) do Instituto Público.


Desta forma, não tendo sido cometido o crime de peculato, o comportamento do Ministro pode ser, em algumas situações, confundido na confrontação com um acto de improbidade, o que não é crime. Por exemplo: se o Ministro utilizar a viatura pública para fim particular, devolvendo-a na sequência do acto, haverá um acto de improbidade. Pelo contrário, se ele se apropria da viatura ou a desvia, este acto já constituirá crime de peculato, uma vez que existe a intenção de apropriar-se, de tomar posse, efectivamente, do bem público (da viatura). Portanto, atendendo a esse excursus entre o Direito e a lógica dos factos, salvo o devido respeito à decisão soberana dessa instância judicial, a culpa imputada ao antigo Ministro dos Transportes afigura-se opaca e sem sustentabilidade. Respeito as instituições, mas respeito acima de tudo a verdade.