Luanda - Na reta final para as eleições em Angola, o cientista político Sérgio Dundão é o convidado do Vozes ao Minuto desta sexta-feira e faz uma análise à campanha eleitoral que culmina a 24 de agosto.

Fonte: Lusa

Angola prepara-se para mais umas eleições históricas. No poder há 47 anos, desde a independência do país, o MPLA procura reter a liderança à frente dos destinos dos angolanos, enquanto a UNITA, o maior partido da oposição, vê uma janela de oportunidade para finalmente chegar ao governo.


O sufrágio realiza-se no próximo dia 24 de agosto. A menos de uma semana de irem às urnas, muitos angolanos, entidades internacionais e observadores estão preocupados com a perspetiva de uma eleição pouco transparente, que resulte em conflitos violentos e contestação popular.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Sérgio Dundão, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e investigador independente sobre o processo eleitoral angolano, esclarece a complexidade das eleições em Angola. Dundão também faz uma análise a uma campanha marcada por 'fait divers', à distribuição do eleitorado e às dificuldades da oposição em difundir a sua mensagem num país onde a máquina do MPLA domina a imprensa nacional.

Pode existir protesto, mas esse protesto passar para uma situação de violência em Angola é muito pouco provável

Do ponto de vista internacional, o grande tema destas eleições é a legitimidade das mesmas e a transparência do processo eleitoral. Quais são as suas perspetivas para o dia após as eleições, tendo em conta os receios de reações violentas aos resultados?

É interessante como muitas vezes os institutos e a comunicação social conhecem pouco o processo eleitoral angolano. É curioso porque, no dia seguinte às eleições, não haverá resultados, é muito pouco provável que os resultados sejam divulgados logo no dia seguinte. É tudo contado em Luanda. Há um conjunto [de fatores] depois da votação que é muito complexo para dizer que no dia seguinte haverá resultado.

Tenho sérias dúvidas que isso vá acontecer. Acredito que, no início de setembro, começaremos a ter os primeiros resultados provisórios. Não vai ser automático. O que as pessoas estão a dizer é que, depois da divulgação dos resultados, seja os provisórios ou os definitivos, poderá existir aqui alguma convulsão, algum levantamento popular, algum descontentamento.


Quero chamar a atenção, porque isto não é assim tão simples quanto parece. Primeiro, devemos atender que nós temos um país com um longo historial de guerra, e países com um longo historial de guerra dificilmente gostam, depois desse período, de entrar em motivações de conflito. Eu percebo que muita gente tende a ver situações em África e dizer que são semelhantes - o Quénia, por exemplo, tem uma longa tradição de violência pós-eleitoral.

O segundo fator que é importante nós atendermos: o rácio de militares ou de forças militarizadas em Luanda é muito alto. As pessoas não têm noção como o aparelho do Estado e de segurança na cidade é tão forte, para impedir que haja algum tipo de levantamento popular. Pode existir protesto, e é bem provável que exista, mas esse protesto passar para uma situação de violência em Angola é muito pouco provável. E existe uma prática da oposição angolana de primeiro contestar junto da Comissão Eleitoral e depois partir para o Tribunal Constitucional.

Existe também um elemento inibidor dos partidos da oposição, que é a reação da comunidade internacional. Vai depender muito se a comunidade internacional disser se o processo eleitoral foi ou não credível. Se os observadores internacionais darem como credível o processo eleitoral, tira margem aos partidos da oposição, ainda que possam reclamar, para envergar pelo caminho da violência.

Se existir uma crítica generalizada sobre irregularidades e elas afetarem a credibilidade do processo, automaticamente aí sim vamos entrar numa zona cinzenta, onde o Tribunal Constitucional teria um papel relevante de mandar repetir o processo eleitoral angolano. Não posso dizer que vai haver conflitos, porque depende de fatores que ainda não conhecemos. Vamos ver.

Estamos a caminhar para um bipartidarismo: o MPLA e a UNITA concentram mais ou menos 80% dos votos

A campanha também ficou marcada por mensagens paradoxais por parte dos dois maiores partidos, o MPLA e a UNITA. Ambos têm apelado para que o dia das eleições corra de forma tranquila e pacífica, mas depois vemos ideias divergentes sobre, por exemplo, a permanência nas assembleias de voto. Como é que avalia o impacto destas mensagens dos dois partidos relativamente ao dia das eleições?

De facto, nós temos uma conflitualidade que não é de hoje. O MPLA e a UNITA são realmente marcados por esse princípio de uma dualidade na luta pelo acesso ao poder. Também é expectável, e não me causa nenhum espanto, porque apesar de termos um sistema proporcional em termos de princípio, estamos a caminhar para um bipartidarismo: o MPLA e a UNITA concentram mais ou menos 80% dos votos. Isso não muito típico nos sistemas proporcionais: no sistema português o PS e o PSD concentram 60%, 70%, mas no caso angolano os dois maiores partidos estão a roçar os 90%. E antes disso, o conflito armado foi também entre MPLA, que suportava o governo, e a UNITA.

Tendencialmente e infelizmente, essa dinâmica de conflito militar também se transferiu para a dinâmica da competição eleitoral. Quando se começa o processo eleitoral, esses fatores de legados não desaparecem, eles mantêm-se.

O que é que normalmente se pede aos atores na competição eleitoral: que eles não levem esse discurso para um patamar que torne o cidadão angolano um inimigo, que gere animosidade política. Existem, de facto, entre os dois grupos, discursos que tendem a fomentar uma certa conflitualidade. Primeiro, porque a desigualdade económica é de facto elevada; depois, existe uma certa expectativa por parte da UNITA de que desta vez é que vão atingir o poder, e essa expectativa está tão elevada que, não acontecendo, a UNITA vai possivelmente alegar que houve fraude. Há uma intensidade da competição que resulta muito da expectativa que a UNITA tem em chegar ao poder.


É muito complicado dizer, com toda a honestidade, se o discurso dos atores políticos vai chegar à base. O que se vai pedir são que outros atores, como por exemplo a Igreja Católica, tenham um papel de obrigar os atores a moderarem o discurso. Isso talvez tenha sortido efeito porque, nos últimos dias, o nível de ataques entre os dois partidos acabou por baixar muito e, possivelmente, na reta final da campanha eles vão todos apelar que no dia seguinte que não devem existir atos de violência.

Obviamente que os partidos da oposição, ou pelo menos a UNITA, alegam que as pessoas, depois de votar, têm de ficar a 500 metros das assembleias. Do ponto de vista prático, eu não entendo como é que, ficando a 500 metros de uma assembleia que está fechada, vão conseguir verificar algum ato, mas eu percebo a pressão de que os resultados têm de ser todos fixados logo na porta. O objetivo da oposição é pressionar para que este ato seja cumprido, dizendo que a população, estando lá, vai contribuir para que tudo se cumpra. O efeito nos meios urbanos é possível, mas não acredito que em todo o país, a população que sai às 08h para votar vai conseguir permanecer nas urnas até às 21h, 22h. Não acredito muito na eficácia, mas acredito que é um ensaio inicial para futuras eleições.

As eleições são um momento de encontrar um 'salvador da pátria' que vai resolver todos os problemas do país

A maioria das notícias provenientes de Angola abordam o processo eleitoral e a legitimidade do sufrágio. Talvez possa ser uma pergunta influenciada por uma perceção externa e de quem está longe, mas preocupa-o que a campanha se foque na campanha em si e não nas ideias para o futuro do país?

Não é uma perceção externa, a perceção genérica é mesmo essa. Tenho chamado à atenção que existe um problema que, na ciência política, consideramos nos regimes presidencialistas. Portugal vive num regime parlamentar, portanto não tem essa perceção. O cientista político argentino Guillermo O'Donnell dizia que as democracias presidencialistas [ou delegativas, como as considera O'Donnell na sua obra 'Democracia Delegativa?', de 1991] têm um problema fundamental: as eleições são um momento de encontrar um 'salvador da pátria', um tipo que vai resolver todos os problemas do país. E há uma hiperpersonalização na pessoa, uma hiperfixação no que ele diz e pensa. Como se nós, em cada ato eleitoral, estivéssemos à procura de um milagre, de alguém que tenha a lucidez e a capacidade de resolver todos os problemas que Angola apresenta. E aqui é que começa o problema, falamos nas figuras, no presidente João Lourenço e do Adalberto da Costa Júnior, e não na complexidade que o país apresenta.

Um dos problemas fundamentais em Angola, que adotou a partir de 2010 o regime presidencialista, é este: não se vai discutir muito política, vai-se discutir muito poder.

Exercício de poder e exercício de governação são coisas diferentes: exercício de poder devia visar a governação, mas não é necessário. Por exemplo, não é necessário em Angola que o presidente apresente um programa do Governo. Não é obrigatório, enquanto em Portugal é um elemento estruturante. Isso significa que a vontade e as ideias do presidente são vinculativas para a governação do país. A partir daqui, temos um grave problema na construção do próprio modelo: é uma consequência da alteração constitucional de 2010, da vontade do presidente ser elemento suficiente para a governação do país.

 

As campanhas não poderiam ser diferentes do que isto: se a pessoa é competente ou não, se é capaz, se tem boa imagem, se fala bem... São esses 'faits divers' que marcam a campanha eleitoral angolana.

Diria que essa questão nos regimes presidencialistas acaba por se refletir numa vantagem dos incumbentes, na lógica do eleitor preferir o mal que conhece ao que desconhece?

Aqui gostaria de dividir a resposta. Num primeiro momento, existe uma saturação da população, principalmente da população mais jovem, aquela que de facto tem uma visão sobre poder muito mais crítica. Na questão do emprego, há um 'boom' das universidades, cujo efeito se começa a notar agora, mas não há capacidade de empregar toda a gente que sai da universidade. No meio urbano, existe uma maior consciência cívica das necessidades: aí, os resultados mostraram na última eleição, principalmente em Luanda, que o MPLA tem muita dificuldade porque há cada vez mais jovens, e são eles que muitas vezes ocupam o processo político angolana. Nas redes sociais, este discurso antigovernação, antigestão, demonstra um descontentamento acentuado face ao governo.


Depois, existe um eleitorado que não tem tanto esse descontentamento, principalmente o eleitorado mais velho que está fora do meio urbano, e que o MPLA, por via das suas estruturas provinciais e da mobilização da sua capacidade financeira, consegue mobilizar. Esse eleitorado vota normalmente MPLA, mas diria que o voto de protesto está no eleitorado jovem, que vai votar massivamente contra o próprio MPLA, e a UNITA tem uma grande expectativa de crescer no meio urbano.

Mas nós temos de ter uma noção de que, os jovens muitas das vezes, têm um baixo nível de perceção dos processos eleitorais. Infelizmente, os estudos tendem a mostrar isso, e não é um caso de Angola, é genérico. O direito está lá, mas o jovem, para se mobilizar, tem de ter um fator decisivo. E há ainda a nossa taxa de exclusão. Os jovens completam 18 anos, mas não se dirigem para fazer o recenseamento pela primeira vez. Apesar de Angola ter inscrito o recenseamento automático como tem Portugal, não temos bilhete de identidade, então aquele jovem tem de se registar.


Quanto à exclusão, há o fator das zonas excluídas e se foram excluídas zonas em que normalmente têm votado favorável à UNITA - quem faz o recenseamento é o Ministério da Administração do Território (MAT). Aqui podemos encontrar fatores de inibição à participação, o governo pode inibir por via da forma como fez o recenseamento eleitoral, ou se mete mais ou menos mesas, em zonas como Viana, onde a UNITA teve um crescimento.

Esse processo de excluir determinadas zonas é comparável ao 'gerrymandering', aplicado nos EUA [processo através do qual os governantes de diferentes estados redesenham os distritos eleitorais, de modo a tentar diluir os eleitores da oposição em distritos que votem favoravelmente no partido no poder]?

Sim, há 'gerrymandering' em Angola, e faz-se muito! Em vários níveis: está-se a pensar dividir várias províncias, o que vai afetar a representação. Em Angola, pode-se ganhar as eleições no parlamento com 37%, bastaria ao MPLA chegar aos 37% para ter maioria parlamentar. Não seria suficiente para ter a presidência, mas pelo menos para dominar o parlamento era possível.

O governo não devia estar associado ao processo de recenseamento eleitoral

Eu tenho dito que o MAT e o governo não deveriam estar associados ao processo de recenseamento eleitoral, mas sou uma voz única, porque até pessoas na oposição dizem que deve ser o governo a fazê-lo. Acho que deve ser uma comissão independente, técnica, sem objetivos políticos.

Em Angola faz-se muito 'gerrymandering': desta vez não se fez ao nível da divisão administrativa do país, não se aumentou municípios ou províncias, mas eu não sei se a nível do recenseamento eleitoral não se fez. Desconfio que sim. Não sei ainda a intensidade, tenho de ver números e dados, mas acredito que o MAT deve ter feito.

E fora do voto de protesto e do voto mais velho?

O MPLA tem um voto mais cristalizado em alguns grupos, principalmente as pessoas que estão no funcionalismo público, nas administrações, nas forças de defesa e de segurança... E o MPLA tem capacidade de mobilização porque tem o aparelho do Estado a seu favor, e tem beneficiado disso.


Há outro aspeto muito importante, e vamos ser corretos e honestos, é que a nossa imprensa está dominada por um partido. Para fazer oposição, os partidos teriam que ter meios de divulgação da sua mensagem política. No meio urbano ainda há essa difusão, mas fora de Luanda, fora do meio urbano, não é assim tão fácil ter acesso à televisão.

E a informação que chega é através dos meios oficiais.

Exato. Eu acompanho a campanha a partir de Luanda, mas seria muito interessante se eu acompanhasse a campanha fora de Luanda, para termos uma perceção sobre o que lá chega. A agenda já não passa por discutir política, mas imagine o que os órgãos de difusão, principalmente a rádio - a rádio continua a ser o principal difusor do país, e é o mais barato, basta uma pilha e consegues ouvir em todo o lado -, que é totalmente controlada pelo governo, deve estar a difundir. Não estará a difundir uma agenda antigovernação, portanto a agenda da oposição não chega, e isso condiciona a capacidade da oposição de crescer a níveis que seriam expectáveis.

Uma posição portuguesa favorável ao processo eleitoral significa que Angola terá uma voz junto da União Europeia

Portugal vai ter três observadores nestas eleições: José Luís Arnaut, Paulo Portas e Carlos César. O país é um dos principais parceiros económicos de Angola, portanto qual é a importância e o impacto dos observadores portugueses nestas eleições e na transparência das mesmas?

Claro que nem todos os observadores têm o mesmo peso histórico. Portugal não é um parceiro menor, é um parceiro importante e a maior comunidade angolana está em Portugal. O país tem sido muitas vezes uma voz em defesa dos interesses de Angola, principalmente do Governo. Portanto uma posição portuguesa favorável ao processo eleitoral angolano significa que Angola terá uma voz junto da União Europeia.

Do ponto de vista da diplomacia angolana, não é irrelevante o posicionamento de Portugal. Esses três observadores são figuras de peso. Angola sabe perfeitamente que essas figuras têm acesso a links e a contactos internacionais que são importantes para o seu posicionamento.

Não há aqui uma certa ingenuidade. Os estados não agem de forma benévola, têm os seus interesses e sabem que essas pessoas são capazes de dar uma credibilidade ao processo eleitoral angolano. O estado angolano tem noção de que se o processo não tiver um reconhecimento internacional, poderá ficar numa situação muito, muito complexa e difícil para os seus interesses. Um governo que não tem esse reconhecimento pode sofrer sanções, que significam um condicionamento forte ao país, principalmente na economia. Somos um país extremamente exportador: se nos fecharem a porta, está a imaginar a convulsão social.

O facto de Portugal ser um dos países que melhor conhece a política angolana e os bastidores da diplomacia é sempre relevante. Em todos os processos políticos que a Comissão Europeia tem com Angola, a porta de entrada é sempre Portugal.