Lisboa - Se crocodilo voa, também ouve. Numa Angola com mais chapas do que portas, tudo se sabe. O crocodilo soube que no gambito a Torre tinha regressado e havia de a fazer cair.

Fonte: Publico


No “Tempo das Bessanganas”[1] se canta assim, aquelas mulheres de corpos proeminentes, bem alimentados, vestidos de roda, colares de enrolar missangas não precisavam de quem lhes fosse buscar no musseque, punham e dispunham dos homens que perante elas se vergavam porque elas eram o feitiço e faziam-se disso.

O tempo das bessanganas não está assim tão longe daqueles cantados anos 70 e se Luiz Visconde orou e clamou para o carro de praça[2] o levar até ao seu amor, nestes últimos meses “a chuva que caiu aí na minha Luanda” só deu razão a Paulo Flores, pois que “a nossa independência está num balde”.

Naquele dia 27 o meu pai não tinha para onde fugir. Não podia colocar a família no lugar da desconfiança, desconfiava em que amigos confiar e sabia que aos inimigos não se poderia entregar. Restava-lhe a alternativa ser o adversário e assim foi bater à porta de um na altura conhecido militante da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Sobreviveu mais do que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) havia traçado que sobreviveria, não sobrevivendo ao MPLA, pois que ao MPLA, desde os tempos do maqui que está gravado: “diz-ninguém” sobreviverá.

A maka[3] toda começou assim:

Estávamos em finais de 2016 e José Eduardo dos Santos, a braços com uma Primeira-Dama descontente, que não deixava o sol entrar sem antes chochar[4] o quanto lhe enfadava a vida na Cidade Alta, que lhe fatigava o tempo do tempo e que queria ir mas’mbora, abandonou o poder pelo próprio pé. O dono do oxigénio cedeu e fez as vontades à Primeira-Dama, deixando o poder sem apagar a luz, não fosse João Lourenço tropeçar nos fios.

Já as suas mais-velhas o haviam convencido na intentona de deserdar de vez o filho varão com quem não partilhavam ADN. O outro, meia vida esquecido, também “se estava” (com as mãos no Fundo Soberano e o nariz sabe-se lá onde). Como diz o meu tio: - “Não peças nada ao lençol quando tens o cobertor” e José Eduardo dos Santos, mesmo que lhe fervesse a manta, teve de sair com ela e deixar Manuel Vicente, o lençol que criou toda a vida para vir a ser, ele sim, seu filho varão, o cobertor, destapado. E se há característica que os angolanos não deixam de reconhecer em José Eduardo dos Santos é que ele foi pai uma vida inteira. Nenhum outro foi tão papá e com tanto afinco defendeu o seu primogénito. Mas chegaria o dia em que o kakela[5] da Dona do Diaki[6] se fez ouvir mais-alto e venceu o pai pelo cansaço. A senhora queria a Sonangol e quando a galinha levanta a crista em Angola dikolombolo[7] se baixa. Manuel Vicente saiu pela porta dos fundos, a Sonangol foi tomada pela verdadeira, um outro varão apareceu com notas de crédito… Só faltava um sucessor para assinar de cruz e como a tarefa era de menos os Caluandas[8] do MPLA logo se lembraram: “Mas não tem ninguém de Benguela?” Com o pé que estava à mão, as mais-velhas empurram João Lourenço para o colo do velho pai e do ainda mais-velho, caquético mesmo, partido.

José Eduardo dos Santos preparava-se para mais uma visita particular pelas ramblas quando a esposa virou moma[9]. Bem muambada,[10] jiboiou: “Vai na frente e não esperes por mim”. Seria a primeira grande jogada da Dama do Gambito, mas não a última.

A maka continua já com José Eduardo dos Santos en las ramblas, sozinho em casa, em plena campanha eleitoral de João Lourenço, quando o crocodilo, imagine-se, deu o primeiro voo. Numa entrevista a um reputado jornal da terra dos irmãos de quem nunca foi pange etu[11] João Lourenço afirma que gostava de ser o Xi Jinping de Angola. Dos Santos não aguentou a passada e partiu rápida e sorrateiramente, ao seu bom estilo, para Luanda com uma única palavra de ordem para o partido: “- Eu é que sou o dono do conjunto, parem já essa kizomba[12].” Reúne os mais que mais-velhos, anuncia que vem nzaji[13], manda chamar o filho da boa muxima[14] e mais do que aconselhar, pressiona. A candidatura à presidência da república de João Lourenço tinha de ser imediatamente abortada, haviam escolhido o pássaro errado, aquele não era benjamim, antes crocodilo e dos que voavam. Manuel Vicente tinha de regressar e arrematar o quadro de cem milhões; o pai chorava o regresso do filho pródigo, mas o filho pródigo não voltaria, pois que afinal foi a ele a quem coube o manto de corrupto.

E se crocodilo voa, também ouve. Numa Angola com mais chapas do que portas, tudo se sabe. O crocodilo soube que no gambito a Torre tinha regressado e havia de a fazer cair.

O resto é desfortuna: um Presidente a abrir o peito aos marimbondos[15] – nem que morra gente, nem que falte sal – a expulsar as zungueiras[16] do n’ovo, a tirar o passaporte do kandengue[17], a governar com o Fundo Monetário Internacional, a espezinhar os kotas do M, a jogar sozinho por não ver rival à altura, a praticar ilusionismo num país puxado a gerador. Dia 15 de outubro o Comandante-em-Chefe João Lourenço fará um discurso sobre o Estado da Nação. A esta altura já deve ter contados os mortos (os que matou e os que colocou no corredor) e calculado com que vivos vai a jogo. Quem é do povo levanta a mão: tunda![18]

[1] Mulheres angolanas com poder social

[2] Taxi

[3]Confusão

[4] De dar chochos; produzir sons de desagrado por meio da língua

[5] Cacarejar

[6] Ovo

[7] Galo

[8] Naturais de Luanda

[9] Jiboia

[10] Que comeu uma boa muamba (prato tradicional de Angola)

[11] Nosso irmão

[12] Festa

[13] Tempestade

[14] Filho querido, do coração

[15] Ladrão

[16] Comerciantes de rua

[17] Miúdo

[18] Fora