Luanda - Embora igualmente preocupante, pouco tenho a apontar em termos de crítica que já não tenha feito sobre a questão titulada, mas aqui vamos. Conversei com membros da sociedade civil alistados antes e depois das eleições. Disseram, a priori, não concordar com a tomada de posse e que, caso a FPU decidisse tomar posse, publicamente iriam demarcar-se desta decisão. Posteriormente, após a tomada de posse, voltamos a conversar e já não tinham o mesmo posicionamento. Não só estavam de acordo com a decisão, como com a razão apontada, ainda que pouco perceptível qual fosse. Mais grave foi ver o nível de adulação ao presidente da UNITA Adalberto Costa Júnior, a raiar os píncaros bajulatórios com que José Eduardo dos Santos era brindado.

Fonte: Club-k.net

Vejamos o tratamento dado ao actual presidente da UNITA e ao anterior para identificarmos as incoerências discursivas. Foi Isaías Samakuva quem cunhou o termo «engolir sapos» ao dizer que não iria mais engoli-los, isto em 2017. «O tempo de engolir sapos acabou», gritou na altura. A multidão eufórica atingiu o êxtase de tanto júbilo. Nem se lembrava que antes Samakuva tinha falado num «apito da alvorada» que não se ouviu.


Neste ano, com o presidente ACJ renascido como fénix da perseguição mordaz contra si levada a cabo pessoalmente por João Lourenço, que sem pejo mostra o seu desprezo visceral, houve um cerrar de fileiras a seu redor, com alistados da sociedade civil a declararem ser aquele o Messias de Angola que não iria engolir sapos.
Nas eleições de 2008, 2012 e 2017 houve denúncias fundamentadas de fraude eleitoral – quando a fraude até precede e sucede ao acto eleitoral (ver Luzia Moniz). Entretanto, Samakuva e a sua UNITA sempre acabaram tomando posse nos órgãos fraudulentos, o que por si representa contraditoriamente uma aceitação tácita dos resultados. Foi alvo de críticas por parte de membros da sociedade civil e também de insultos mesquinhos.

 

Ao deixar o comando da organização, uma reflexão se exigia fazer: Samakuva foi o comandante da transição eficaz e eficiente da UNITA-guerrilha para uma UNITA-partido, esta que foi mais responsável pelo não ressurgimento de um conflito civil, ao contrário do MPLA que sempre a instigou, inclusive com a morte de seus militantes e até mesmo ao ponto de ferir fisicamente o seu presidente. Foi engolidor de sapos, mas, mais do que isso, um excelente líder no tumultuoso processo de reorganização interna pós-Savimbi. Este seu empenho devia ser externamente destacado e elogiado pela liderança seguinte, mas não tem sido feito. Pelo contrário, a actual direcção da UNITA foi indiferente aos ataques que Samakuva sofreu de 2019 a 2022, sendo claro que tinha mecanismos directos e privilegiados para influenciar aqueles que o ofendiam e ameaçavam (chegou a este ponto) para que parassem de agir de tal forma.

 

Indo à comparação. Samakuva engoliu sapos, e a ACJ engoliu o primeiro sapo. Perguntado, dois membros da sociedade civil responderam que «faz sentido ACJ engolir sapos neste ano, mas em 2027 será diferente». Perguntado se nos anos anteriores Samakuva terá engolido sapos exactamente para evitar que o povo fosse massacrado pela ditadura, responderam que não foi, mas que ACJ neste ano engoliu e aceitou ser vilipendiado por amor ao povo.


Como se vê, sendo as mesmas premissas em questão, a avaliação é diferente em função da representação nas instituições (ler sobre ralé no artigo A corrupção da opinião pública). Suponhamos que em 2017 este grupo estivesse alistado, provavelmente defenderiam a decisão de ocupação dos lugares e se constituiriam em guarda pretoriana de Samakuva, como agora são de ACJ. É um aproveitamento do «momento de brilhar», como se passou a dizer na gíria.

 

ACJ dá a entender em seu artigo no Observador que acredita numa queda do regime por causas naturais, uma morte morrida, alegadamente porque «apesar de continuar na paisagem, a atual governação está a secar e a esgotar toda a água da nascente em que se alimenta», acrescentando que a mesma «foi derrotada pela sua própria atuação, e castigada nas urnas pelo Povo». A crença numa morte natural, como se fosse um corpo físico mortificado pelo tempo, pode ter imenso de ingenuidade como de perigoso.

 

O aspecto ingénuo reside na perspectiva semântica, segundo a qual quem assim procede actua sem malícia por desconhecimento, logo, na ignorância do mal que pode causar ou advir de outrem ou de si mesmo. A ignorância aqui não parece ser possível, visto que não só Adalberto, como a sua entourage, entre os quais Abel Chivukuvuku e Filomeno Vieira Lopes, serem personalidades que conhecem a história do PRI no México. Após 71 anos a governar perdeu o poder, mas não por simplesmente ter esgotado a sua «água da nascente», pelo contrário e sempre, porque os que lutaram pela instauração da democracia não tergiversaram, como tem sido apanágio da oposição angolana. E a perigosidade do seu discurso é exactamente a passividade que alimenta a longevidade de um regime em podridão, mas fisicamente em permanente renovação.

 

Quem também acreditava na queda natural era Samakuva. Ouvi de uma das suas mais leais apoiante dizer que o MPLA teria 50 anos de governação ininterrupta. Apontava a uma aliança internacional que não toleraria a manutenção do poder para além dos 50.


Estando claro que ambos toleram, e por isso refreiam a sua actuação, o certo é que se verifica reacções diferentes. Mas notemos, para concluir, que não é uma reacção inédita por parte do grupo de apoio ao actual presidente ACJ. Em 2017 a maioria deste mesmo grupo depositou esperanças ao presidente João Lourenço, com discursos públicos elogiosos, negligenciando completamente todo o seu historial, a começar pela participação integral e fundamental na estrutura política e governativa que levou o país ao estado apocalíptico em que se encontra.


Portanto, a incoerência discursiva não é novidade de tão reiterada.