Rio de Janeiro - Julgo ser de conhecimento público, especialmente àqueles que se interessam com as questões ligadas aos trágicos acontecimentos de 27 de Maio, que sou das pessoas que mais se bateu (e continua bater-se) para que o gravíssimo e complexo problema fosse discutido publicamente, sem tabus, para que se esclareçam os contornos que estiveram na base do levantamento daquele triste mas histórico dia, cujas consequências são as que se conhecem, interna e externamente. Daí que o meu foco é e será sempre o da descoberta da verdade do que realmente esteve na base daqueles trágicos acontecimentos. Não perco tempo com a quantidade de comentários que circulam na imprensa e nas redes sociais feitos por diversas pessoas, com a legitimidade que lhes assiste, sobre os trágicos acontecimentos.

Fonte: Club-k.net

Porém ultimamente constato, com alguma perplexidade, o lançamento de obras literárias supostamente escritas por indivíduos que estiveram direta ou indiretamente ligados ao massacre de 27 de Maio, cujo lançamento geralmente é precedido de entrevistas aos supostos autores nos canais radiofónicos de maior audiência na capital do País, fundamentalmente a prestigiada emissora Luanda Antena Comercial – LAC. É assim que na semana finda, ouvi, com alguma surpresa, a entrevista que o general Higino Carneiro concedeu à LAC, no Programa Café da Manhã, conduzida pelo prestigiado jornalista José Rodrigues. Na referida entrevista, o general disse alto e bom som, que foi ele quem prendeu Nito Alves, tendo-o encontrado pendurado numa palmeira, acrescentando ainda que quando o prendeu, Nito Alves suplicou dizendo “...camarada Higino não me prenda porque eu não fiz nada, o que respondi que não é a mim que deve justificar-se..., portanto vou levá-lo...” É sobre essa grosseira e abusiva mentira que me vejo forçado a reagir. Ignoro o rosário de inverdades vertidas na entrevista, cabendo a cada indivíduo minimamente lúcido, fazer seu juízo de valor. Importa, no entanto, questionar o seguinte:

 

Um indivíduo que na altura dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 tinha apenas 22 anos, como é que já exercia funções de tamanha relevância ao nível das FAPLA, a pontos de ter estado naquele trágico dia no Estado Maior General juntamente com altas patentes que citou na entrevista a “traçar a estratégia” de como haveriam de ir capturar Nito Alves e demais responsáveis que cita na entrevista?

 

Para quem é minimamente atento, facilmente se percebe que o general, ao longo da sua (desastrosa) entrevista não diz onde e quando se alistou nas fileiras das FAPLA para ser merecedor de tão meteórica ascensão na hierarquia militar das FAPLA naquela época. Vir a público vangloriar-se que na altura em que capturou Nito Alves, este lhe pediu implorando para que não o prendesse, só pode caber na cabeça de quem toma os outros por tolos, esquecendo-se que a tolice mora na sua própria cabeça. Sem medo de errar, presumo que o general nunca conheceu Nito Alves. Porque se o conhecesse minimamente, de certeza que não se atreveria em dizer a asneira que disse. Aconselho o general a inteirar-se bem sobre a firmeza de carácter de Nito Alves. Cumpre por isso informar ao senhor general que é em função da firmeza de carácter da pessoa que diz ter capturado pendurado numa palmeira, que ele preferiu morrer, com dignidade, do que ceder aos caprichos e interesses nunca confessados dos seus algozes, como o general. Aceito sim, que a ascensão meteórica do senhor general se deveu a sua activa e oportunista participação na repressão sangrenta de 27 de Maio, com especial realce na captura de Nito Alves; que fez tudo para que fosse filmado para que fosse publicamente visto como o artífice da captura, também é verdade; que participou da encenação que foi previamente programada pelos que planearam e dirigiram a repressão, onde obrigaram Nito Alves a subir numa árvore e não numa palmeira, como falsamente diz, sem sombra de dúvida é verdade. Há imagens nos arquivos da TPA que desmentem essa narrativa do general. Já agora desafio-o a exigir à TPA para que exiba as imagens da captura, de Nito Alves, onde o general visivelmente aparece esforçando-se ser visto como o artífice da captura, quando toda gente sabe que o responsável pela proeza foi o comandante Margoso, este que no entanto depois descartaram-se dele, relegando-o a um ostracismo estarrecedor, a pontos de em privado, o infeliz desencantado com o ostracismo a que foi votado, disse que se soubesse o que sabe na altura dos acontecimentos de 27 de Maio, nunca participaria na captura de Nito Alves. Como o mais velho Margoso são muitos os que foram atirados ao ostracismo, depois de terem sido instrumentalizados pelos que conceberam, planearam e executaram o plano macabro de eliminação selectiva de milhares de angolanos exatamente para que pudessem ter campo aberto para concretizar o plano que haviam concebido, que é o de se acapararem do poder real, sob a capa de Agostinho Neto. Conseguiram. Um dos que também foi descartado, é o falecido Comandante Ndozi, primeiro comandante da famosa Nona Brigada em que fui militar da Unidade de Reconhecimento e Blindados, por essa razão fui preso. Participou ativamente na repressão dos seus camaradas de luta, mas depois descartaram-se dele, a pontos de morrer desencantado de tanta humilhação a que foi submetido pelos seus subordinados na Brigada que dirigiu. Os que se beneficiaram com a repressão sangrenta são um grupo muito restrito de angolanos perfeitamente identificável, em que se inclui o general Higino Carneiro, com a sua ascensão meteórica.

 

A propósito do patriotismo que o senhor general se arroga ser um “soldado da Pátria”, importa elucidá-lo que, sobre essa matéria, vossa excelência está a anos luz, comparado com o patriotismo de Nito Alves. Sabe porquê? explico-me. É que Nito Alves, em função das suas profundas convicções político-ideológicas demonstradas ao longo da sua militância no MPLA e por isso foi morto, se estivesse em vida pode crer que não participaria no saque ao erário público em detrimento do povo como muitos governantes fizeram (e ainda fazem), servindo-se do povo em vez de servi-lo. Essa é a grande diferença entre o patriotismo do senhor general e o de Niito Alves. Haja limites, mesmo quando pretendemos humilhar alguém. Quem era o senhor General naquela altura ao lado de Nito Alves?

 

Mesmo que queira livrar-se das encrencas que voluntariamente se envolveu, procure outras alternativas e não a da humilhação de alguém mal conhece. A ânsia em ver a imagem de Nito Alves desqualificada junto da opinião pública interna e externamente é tanta, que até se ridiculariza. Compenetre-se, senhor general do seguinte: queira ou não, ele vai figurar na História de Angola como aquele que desinteressadamente se bateu para que o País fosse verdadeiramente livre e independente e, por via disso, resgataria a dignidade dos angolanos negada durante séculos pelo colonialismo português. Podem de forma concertada lançar os livros que quiserem, precedidas de entrevistas em que despejam a quantidade de mentiras sobre a sua figura, não conseguirão manchar a sua imagem. As novas gerações e as vindouras, saberão qualificar quem foram os que verdadeiramente lutaram por essa Angola assaltada por gente sem escrúpulos que em vez de servir o País, serviram-se dele.

Rio de Janeiro, 13 de Fevereiro de 2023.


Miguel Francisco “Michel”
(Sobrevivente do massacre de 27 de Maio).