Luanda - Será que os angolanos podem confiar nos seus tribunais? Jurista Serrote Simão Hebo admite que há uma quebra de confiança no setor e sublinha que é necessária uma "independência, de facto, dos tribunais" no país.

Fonte: DW

Vários escândalos têm abalado o coração da Justiça em Angola, sendo que o mais recente está relacionado com o afastamento da presidente do Tribunal de Contas de Angola, Exalgina Gambôa, que estará envolvida em vários escândalos de corrupção.

 

Também o Presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, tem estado associado a vários polémicas judiciais, sendo que a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), principal partido da oposição, já pediu a sua demissão.

 

Outro tema que tem perturbado o funcionamento da Justiça está relacionado com o ativismo político. Ativistas contrários ao regime do Presidente João Lourenço têm sido duramente perseguidos pela Justiça angolana, sendo que muitas vezes acabam libertados por falta de provas ou por esgotamento dos limites máximos de prisão preventiva.

 

Em entrevista à DW, o jurista Serrote Simão Hebo diz que há, de facto, uma quebra de confiança no setor, e defende que isso pode estar a ser motivado pelas tentativas de influência política nos magistrados.

 

DW África: Os angolanos podem confiar nos seus tribunais?

Serrote Simão Hebo (SSH): A confiança decaiu significativamente por parte dos cidadãos angolanos. Decaiu drasticamente porque o sistema, de um modo geral, não está a corresponder à expectativa. Está efetivamente a colocar em causa a confiança e a expectativa jurídica dos cidadãos. Quando isso ocorre, seguramente nenhum cidadão se vai rever neste tipo de sistema, o que quer dizer que é urgente e que se deve olhar para estas situações. Quer os tribunais cooperantes, que têm responsabilidade acrescida, têm de ter uma postura mais adequada; quer o próprio Executivo deve proporcionar as condições necessárias para que os tribunais funcionem na sua plenitude.

 

DW África: A abertura do ano judicial em Angola foi adiada sem nova data. Assistimos também ao afastamento da presidente do Tribunal de Contas. O que se está a passar na Justiça angolana?

SSH: Há durante este período de tempo uma discussão muito grande relativamente à justiça perante o sistema judicial angolano. O sistema tem-se estado a colocar em causa face a uma série de denúncias e também de reclamações - quer por parte dos oficiais de diligências de Justiça angolanos, quer por parte da população do modo geral, assim como por parte dos magistrados judiciais. Na verdade, o que acontece é o seguinte: estes órgãos dos tribunais superiores têm responsabilidades acrescidas na administração da Justiça angolana. Entretanto, para que se possa ter uma Justiça no país, é preciso que estes tribunais exerçam o seu papel nos termos da lei e da Constituição. O que acontece é que há situações em que há ingerência política no sistema judicial.

A primeira ingerência resulta por força do decreto 69/2021, de 16 de março. É um decreto que atribui aos magistrados - quer do Ministério Público, quer judicial - naqueles processos em que há envolvimento de bens vindos do erário público e que venham a trabalhar nestes processos, [o direito] a ter efetivamente 10% do valor. Este decreto é um elemento estranho ao sistema judicial e este elemento estranho, até certo ponto, compromete também o próprio sistema, porque o Estado, ao trazer este decreto, está aqui, por um lado, a intervir diretamente no sistema judicial e, por outro lado, está a criar uma situação de instabilidade no sistema judicial. Magistrados dos tribunais provinciais e também das comarcas não poderão julgar estes processos, o que quer dizer que estes não terão acesso a essas percentagens, o que já cria uma disparidade muito grande e um descontentamento muito forte ao nível dos magistrados judiciais.

 

DW África: De que forma é que se pode reformar o sistema judicial em Angola? O que é preciso fazer?

SSH: Precisamos de uma independência, de facto, dos tribunais. Por outro lado, é necessário que se estabeleçam as condições necessárias. Essas condições comprometem o próprio sistema judicial. Por outro lado, a forma da eleição dos magistrados também tem de se colocar muito em conta, porque hoje leva-se muito em consideração a confiança política. É preciso que aquele que, de facto, seja um magistrado judicial preencha meramente os requisitos legais. Não se pode olhar para a questão político-partidária. Nós tivemos o exemplo da presidente do Tribunal Constitucional [Exalgina Gambôa] que vinha do bureau político do MPLA e que depois renunciou à militância.