Luanda - Acho que, em primeiro lugar, é fundamental esclarecer um pouco o significado real do termo o «saco azul», isso para entender melhor o teor, o fundo e o alcance desta abordagem. Logo, o saco azul significa um conjunto de recursos financeiros, geralmente de dinheiro público, proveniente de receitas eventuais e reservados para despesas não orçamentados. Ou seja, o saco azul é um conjunto de valores que não entram nos registos contabilísticos legais e é usado para fins ilícitos ou para fuga ao fisco. No português do Brasil o «saco azul» equivalente a «caixa dois».

Fonte:  Club-k.net

Em termos jurídicos, o «saco azul» é um conjunto das «despesas extraorçamentais», que não estão inclusas no Orçamento Geral do Estado e não entram na esfera do controlo e da fiscalização (artigos 161º e 162ª) do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas (artigo 182º), como reza a Constituição da República de Angola. As «despesas extraorçamentais», por sua natureza oculta, têm uma gestão opaca, danosa e ilícita, não respeitando os procedimentos, as leis internas e as normas internacionais da compliance e da transparência.


Na práctica o saco azul tem o significado muito amplo e abrange um leque de ilicitudes tais como: o enriquecimento ilícito, peculato, corrupção, fuga ao fisco, branqueamento de capitais, desvios de recursos públicos, fuga de capitais, colarinho branco, corrupção eleitoral, fraude eleitoral, suborno, sonegação fiscal, sonegação de impostos, tráfico de influências, bajulação, nepotismo, falsidade ideológica, etc.


Portanto, o Relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), tornado público no dia 23 de Fevereiro de 2023, chamou-me atenção, sobretudo da entrevista do seu Representante em Angola, Senhor Marcos Souto, no dia 24/02/2023, com Agência Lusa, que salientou o seguinte, que passo a citar: “As despesas que não estão no Orçamento Geral do Estado precisam de ser «contidas». Em todos os países, o que nós aconselhamos é que essas despesas todas passem pelo processo normal do Orçamento, depois de aprovadas pela Assembleia Nacional ser executadas pela Equipa do Governo. Só em casos muito extemporâneos, muito excepcionais, poderão haver questões que venham a requerer que uma despesa seja aprovada fora do OGE. Mas esses casos devem ser «uma excepção e não uma regra», e essa questão fiscal é bastante importante. Neste contexto, encorajamos também a continuar com as Reformas destinadas a melhorar a eficiência da gestão pública, assegurar o aumento das receitas, reforçar a administração das receitas e melhorar a gestão das finanças públicas.” Fim de citação.


O Relatório do FMI contém muitos dados importantes sobre a economia do nosso país, que nos permitem fazer uma leitura coerente e ter uma perspectiva realista do país e da conjuntura mundial. Somente, a realidade concreta do país nem sempre coincide com as projeções e perspectivas que têm sido feitas a nível das Instituições do Bretton Woods.


Isso acontece porque nos países do poder centralizado, autoritário e partidarizado, como Angola, as receitas não orçamentadas são enormes, e em muitos casos podem estar acima das receitas orçamentadas. O caso concreto é da Federação Rússia cujo PIB, no ranking mundial, tem sido calculado em baixo do PIB da Coreia do Sul. Ficando, deste modo, fora das 10 maiores economias do Mundo. Isso não corresponde a verdade tendo em consideração o potencial económico da Federação Rússia.


Por outro lado, a visão geoeconómica do Banco Mundial e do FMI está muito mais virada para as políticas macroeconómicos e estruturais, de olhar para o tudo, como todo, no contexto global. Essa visão macroeconómica, embora tenha em consideração a microeconomia, sendo uma parte integrante da doutrina capitalista, mas os aspectos da produção, da produtividade e da distribuição judiciosa da riqueza não têm sido vistos sob o prisma do combate à fome e à pobreza extrema dos Países do Sul de Sahara.


Geralmente, a macroeconomia, na base do liberalismo económico, favorece mais as grandes empresas multinacionais dos países industrializados, com o potencial financeiro, tecnológico e know-how, em detrimento dos sectores específicos vitais, que relacionam com a economia real, com o sector produtivo e com o sector social. Esses três sectores económicos, se fossem bem integrados dentro do conceito da macroeconomia, eles pudessem constituírem-se numa grande alavanca da produção de bens de consumo, em grande escala, para combater efectivamente a fome e a pobreza extrema que é o principal desafio da África Subsariana.


Infelizmente, a macroeconomia, como conceito do capitalismo liberal, não coloca, como prioridade, o combate à fome e à pobreza extrema em África. Mas sim, ela visa os lucros e os recursos minerais estratégicos para desenvolver as tecnologias de ponta. Usando os mecanismos da política fiscal, da política cambial, da política monetária e da política infraestrutural, com foco na criação de capacidades e vantagens competitivas, produtivas e tecnológicas. Por isso, fiquei espantado quando fiz a leitura do Relatório do FMI, que levanta, com maior acutilância, a questão das despesas extraorçamentais, que todos nós sabemos como sendo o cerne da Teoria da acumulação primitiva (ilícita) de capitais.


Como é sabido, a Teoria da acumulação primitiva (ilícita) de capitais foi formalmente aprovada pelos Órgãos de Direcçao do MPLA, e foi formalizada por Presidente José Eduardo dos Santos no seu informe da inauguração do novo edifício da Assembleia Nacional no dia 10 de Novembro de 2015. Este Conceito foi formalmente assumido por JES como sendo, «a forma mais segura e mais rápida de criar um grupo forte e leal de capitalistas angolanos capazes de assegurar o poder e defender a independência do país».


O objectivo estratégico desta Teoria consiste no seguinte: reformular e consolidar o sistema do Partido-Estado que seja controlado por uma classe capitalista restrita e forte, com capacidade de dominar o mercado interno; associar-se ao capital estrangeiro; reforçar a hegemonia política; e estabelecer o monopólio económico-financeiro.


Creio que, na minha leitura, olhando para o contexto actual do país, a visão económica do antigo Presidente do MPLA, José Eduardo dos Santos, embora não seja assumida formalmente pela liderança actual do Partido, mas ela continua intacta até hoje, com uma proporção muito superior do que do passado. As rivalidades internas que se verificam agora no seio da liderança do MPLA não têm nada a ver com esta doutrina, mas sim, com a criação do novo eixo do poder financeiro.


Para afirmar que, o sistema político, em referência, baseia-se na lógica de que, o poder político assenta no poder financeiro, e este último, tem poderes enormes para influenciar as potências mundiais através das multinacionais, que são detentores de capitais financeiros que sustentam os poderes políticos quer a nível dos Estados, quer a nível das Organizações Multilaterais, como as Nações Unidas.


Na base deste princípio, o poder político não depende do contexto interno do país, em termos do sufrágio universal; mas sim, dos factores exógenos, que são assegurados por interesses económicos e financeiros, vinculados aos grandes interesses das potências mundiais. Na base disso, o sistema político angolano ficou amarrado por forças ocultas, que mexem os cordelinhos, ditam as regras do jogo, alargam os seus sustentáculos, apertam o sistema do controlo, corrompem os círculos de influências, dominam a arena política interna e externa, e determinam o curso dos acontecimentos.


A guerra da Ucrânia revelou nitidamente como esses cordelinhos movem – como e quem tem a autoridade sobre o Poder Politico da Cidade Alta. Houve a ingenuidade por parte do Washington que comprometeu as eleições gerais de 24 de Agosto de 2022, afastando a parte vencedora, em troca da lealdade política da Cidade Alta. Como de costume, os cálculos errados do Washington terminam sempre em desaire.


Além disso, foi bem visto como o processo eleitoral de 24 de Agosto de 2022 foi forjado pela INDRA, gerando dividendos avultados, que tenham movimentado o Rei Filipe VI da Espanha a deslocar-se apressado à Luanda para celebrar o complô político. No meio de tudo isso, foi com muita fúria que o Senhor Sergey Lavrov apareceu em Luanda para restaurar a autoridade do Kremlin sobre a Cidade Alta. De facto, vimos como João Lourenço foi forçado abruptamente a corrigir o azimute nas Nações Unidas, dando o ombro frio ao Tio Sam.


Em súma, tenho quatro observações a fazer à luz da minha análise pessoal sobre esta matéria, do saco azul. Primeiro, acredito que, o Fundo Monetário Internacional, no final do Programa de Financiamento Ampliado (EFF), que deu inicio no dia 7 de Dezembro de 2018, tem o conhecimento muito profundo da economia angolana e do sistema político do país, que lhe permite fazer uma avaliação adequada. Por isso, os políticos angolanos, sobretudo da FPU, devem analisar bem o Relatório do FMI com muita prudência e acuidade.


Segundo, lendo o Relatório do FMI nas entrelinhas transparece a ideia de que, apesar da presença do FMI e da assessoria técnica prestada durante a implementação do Programa de Financiamento Ampliado, não tenha sido possível superar os vícios crónicos da má gestão das Finanças Públicas e da ineficácia dos mecanismos do controlo e da fiscalização do OGE.



Terceiro, o FMI teve muita coragem de apontar, de modo incisivo, embora diplomática, a problemática das despesas extraorçamentais, que é a fonte principal da corrupção em Angola. As inúmeras recomendações feitas neste Relatório são boas e compreensíveis, porque deixam uma certa clareza no fundo do túnel. Por isso, tenho muitas dúvidas como isso será superado dentro do próprio MPLA, que adoptou formalmente a Teoria da acumulação primitiva (ilícita) dos recursos públicos, como instrumento principal do Poder.


Quarto, na minha óptica, mesmo as receitas e as despesas orçamentadas não oferecem a transparência e a integridade; além disso, não existe os mecanismos eficazes para controlar e fiscalizar a gestão das receitas e das despesas orçamentadas. Pois, os órgãos competentes, como o Poder Legislativo e o Tribunal de Contas não estão fora da esfera do controlo e da influência do Poder Executivo, que manda em tudo e em todos.


Por isso, por mais esforços que sejam feitos, mas sem a mudança do sistema do Partido-Estado, que se manifesta na centralização e na partidarização excessiva dos poderes públicos, não vejo como será viável combater a corrupção, aumentar as receitas, melhorar a gestão das finanças públicas e aplicar, com maior rigor, os princípios da compliance e da transparência.


Neste contexto, as transformações internas dentro do regime, a nível dos Aparelhos do Estado, sejam quais forem as suas dimensões e os seus alcances, mas não terão a força anímica, em termos da ética e da moral, para alterar o quadro actual do país, caracterizado pela corrupção generalizada, sobretudo aos níveis mais elevados dos órgãos de soberania do Estado.


Enfim, não tenho dúvidas nenhumas de que, a Cidade Alta, como sempre, vai continuar a desviar os fundos públicos por variadíssimas formas dos sacos azuis, dentro ou fora do orçamento, inclusive por via da contratação directa sem licitação, com volumes avultados em beneficio do circulo interno do Poder. Veja que, as despesas extraorçamentais em Angola não é uma excepção, mas sim, é uma regra. Constitui o «Cerne» da Teoria da acumulação primitiva (ilícita) de capitais. Aliás, é a Alma e a Cultura do Partido no Poder.


Luanda, 03 de Março de 2023.