Maputo - Uma das últimas pessoas que falou com Azagaia, neste sábado, 9 de Março, foi Gina Pepa. Eram amigos desde os anos 90, eram amigos desde os tempos em que Dinastia Bantu e Rappers Unit faziam, de facto, parte do vocabulário da comunidade Hip-Hop em Moçambique.

Fonte: OPais

A rapper encontra-se a finalizar o seu álbum de estreia, que terá como título Missão cumprida, mesmo a condizer com o percurso artístico do amigo. Para o álbum, Azagaia concedeu um participação na música “Ironias da vida”. Gravada e acabada, a faixa musical deveria ter um vídeo-clip. Por isso mesmo, neste sábado, os dois amigos puseram-se a conversar sobre os pormenores necessários para as filmagens.

 

Como é habitual, no meio da conversa, Azagaia pôs-se a rir agradado em falar com a amiga para quem telefonou. Aliás, Gina Pepa pensa em Azagaia como um homem sorridente, divertido, de uma alegria contagiante. Portanto, quando falaram pela manhã de quinta-feira, interromperam a ligação porque cada um tinha de tocar o dia para frente.

 

Ainda assim, o rapper prometeu ligar novamente. O dia parecia longo. As horas passaram e Gina Pepa, ocupada com os afazeres, só se lembrou que Azagaia prometera ligar por volta das 19 horas, quando um certo jornalista contacto-a a querer confirmar o que as redes sociais já começam a divulgar. Aí, sim, Gina Pepa pressentiu que o seu amigo nunca mais voltaria a ligar. Então tomou a iniciativa. Telefonou ao celular que, do outro lado de Maputo, na Matola, chamou, mas ninguém atendeu. Ligou à esposa. Nada. A partir desse instante, as lágrimas da artista começaram a jorrar no seu rosto tão cheio de Hip-Hop. Mas ela precisava de uma confirmação. Percebendo, mas sem acreditar nas evidências, marcou no celular o número da irmã de Azagaia. Com ela finalmente conseguiu falar. A sentença final estava dada: Azagaia já não estava entre nós, afinal a sua missão na terra já estava cumprida. Quase como o álbum de Gina Pepa.

 

Inconformada com a morte do autor de Babalaze (2007), Cubaliwa (2013) e Só dever (2019), tanto quanto os seus admiradores, Gina Pepa pôs-se a pensar na amizade com o rapper de forma atabalhoada. A artista lembrou-se daquela voz vibrante, que cantou como ninguém; lembrou-se da sua frontalidade, sinceridade, inteligência e lealdade aos valores que defendia.

 

De nascimento Edson da Luz, 6 de Maio de 1984, Azagaia iluminou o raciocínio de muitos, intervindo, denunciando e criticando. Entre a música pimba, de fama fácil, Azagaia escolheu o mais difícil: estar do lado dos mais fracos, posicionando-se contra os políticos e os que têm força. Desse ponto de vista, Azagaia contrariou aquela ideia de um certo autor: “Beija a mão que não podes morder”. Azagaia mordeu essas mãos cheias de sangue e desordem. Picou e não soprou. De forma frontal, com recurso a uma composição contundente.

 

Desde os seus 20 anos de idade, Azagaia fez do RAP um fenómeno além da música. E essa vocação começou como que ocasionalmente. O rapper lança “As mentiras da verdade” e o tema logo se torna um hit. Na música, o artista convocou os moçambicanos a uma reflexão sobre a realidade social e política do país. Mexeu em temas considerados tabus e problematizou questões tornadas impronunciáveis, como o provável fim do primeiro Presidente da República, Samora Machel.

 

Depois de “As mentiras da verdade”, a forma de pensar a música mudou em Azagaia. No artista fortaleceu-se um sentido de causa, de luta, de ideal e de compromisso com o seu povo. Talvez, por isso, o rapper fez-se conhecido entre os moçambicanos, tornando-se, com cerca de 23 anos de idade, uma das figuras mais interventivas da realidade do país.

 

Azagaia ganhou respeito fazendo um ritmo que para muitos era de marginais. Fez-se ouvir e as pessoas passaram a prestar atenção nele, nas suas músicas, nas suas ideias e, consequentemente, no fenómeno Hip-Hop. Lírico e consciente. Com o microfone na mão, fez com que pessoas muito velhas do que ele passassem a apreciar a o Ritmo em Poesia. Naturalmente, a sua música levou-o ao patamar dos “eternos”, dos que com a música encontram uma morada além da existência. Em Moçambique, na região, nos PALOP e na CPLP.

 

A importância de Azagaia consolidou-se com o lançamento do álbum Babalaze, em 2007, é certo. Nessa altura, granjeou tantas simpatias quanto inimigos. Com temas como “A marcha” e “Alternativos”, o álbum foi verdadeiramente bem recebido no país e Azagaia quase tornou-se uma legião. A certa altura da sua carreira musical, passou a fazer concertos trajado de roupas aparentemente militares. Eufórico, com um fôlego único, o rapper fazia vibrar o palco e mexia com as pessoas nos seus concertos.

 

Azagaia foi amado, cantado, apoiado, mas nem tudo foi um mar cor-de-rosa nos seus 38 anos de vida intensa. Atento às vicissitudes sociais como sempre foi, em 2008, lançou uma das suas músicas mais populares: “Povo no poder”. Foi um estrondo! A música incomodou a muitos políticos. Na sequência desse tema inspirado na reacção popular a seguir à subida do preço do transporte, naquele ano, em pouco tempo, foi chamado à Procuradoria da República por suspeita de “atentar contra a segurança do Estado”. De lá saiu mais esclarecido e “Povo no poder” continuou a ser uma das principais composições musicais do país. “Cão de raça”, “Maçonaria”, “Calaste” e “A minha geração” (Cubaliwa) não ficaram muito atrás.

 

Com as suas músicas, Azagaia honrava o pseudónimo que tinha. Sem dever nada a ninguém. Mas Só dever é esse último EP que lançou ainda vivo.

 

Azagaia sempre soube que era incómodo. Talvez, por isso, a morte foi abordada nas suas músicas. Sem medo. Azagaia viveu combatendo pela verdade e contra o medo. Numa das suas composições, “Filhos da”, com N. Star, o rapper diz o seguinte, a certa altura, “Medrosos, quando morrem, não servem nem para estrume”.

 

Azagaia viveu de pé. Quando se apercebeu que poderia participar ainda mais na mudança, alinhou na lista do MDM para deputado na Assembleia da República. Mas essa eleição não aconteceu. Continuou a fazer música. Nem o tumor cerebral diagnosticado em 2014 fez-lhe confusão. Pelo contrário, Azagaia continuou lúcido e a fazer os seus concertos. O último (ou dos últimos) concerto aconteceu há poucos dias, na Beira, essa cidade que lhe permitiu ter o título para o seu segundo álbum, Cubaliwa.

 

Não morreu a tiro, como muitos temiam, não morreu na Índia, quando lá foi fazer cirurgia. Morreu em casa, num bairro humilde da Matola. As reacções à sua morte vieram de toda parte. O rapper Allan considerou, tal como Gina Pepa, que o país perdeu um herói e líder de uma geração de artistas. Simba Sitoi disse que a qualidade das suas líricas fará sempre falta. “Questionamo-nos agora sobre quem mais poderá ter o nível da sua qualidade poética”, disse Simba Sitoi. Já Kloro, defendeu a necessidade de se resgatar o Azagaia que cada um tem dentro de si, e continuar com a luta em prol da sociedade moçambicana e pela humanidade.

 

Em Portugal, Jimmy P., com quem gravou pelo menos uma música, desejo-lhe um eterno descanso. Valete destacou que “Morreu um dos maiores rappers de Língua Portuguesa. Um dos seres humanos que mais admirei em toda a minha vida. Um verdadeiro patriota. Amou África e Moçambique como poucos. O irmão que nunca tive”.

 

No Brasil, Gabriel, o Pensador, escreveu na sua rede social que “Nosso irmão Azagaia, ícone do rap lusófono, nos deixou hoje muito cedo, aos 38 anos, em sua casa em Moçambique. Grande perda para nossa música e cultura hip hop. Seu legado é eterno, mano, descanse em paz”.

 

Azagaia, homem temente a Deus e que rezava antes dos concertos, partiu. Coerente, deixando para trás uma mulher e duas princesinhas.